Por Roberta Brandão, da Amazônia Real*.

De janeiro a agosto, foram 53 assassinatos de mulheres, ante as 25 mortes registradas nos oito primeiros meses de 2019

Belém (PA) – Era manhã, em Paragominas, região sudeste do Pará, quando Fátima Gomes, 36 anos, caminhava com a filha no colo e foi morta pelo ex-companheiro. Também era dia quando no município de Abaetetuba, nordeste paraense, Andreza Vilhena, 22, ia para a academia e teve sua vida interrompida a mando do ex-namorado. Em Altamira, sudoeste do Estado, Janaína Vitória estava dormindo em casa, quando o então companheiro deformou seu rosto com socos. No mesmo município, Ana Clara Rodrigues, 17, foi amarrada, degolada e há indícios de violência sexual. Em Tailândia, nordeste do Pará, a professora Rosângela Vidal Araújo foi se divertir em um bar e terminou morta a pauladas, com o rosto queimado pelo assassino. Também houve suspeita de estupro. Na capital Belém, uma cabo da Polícia Rodoviária Estadual morreu após ser baleada pelo marido, soldado da Polícia Militar. 

De janeiro a agosto deste ano foram 53 feminicídios registrados no Pará, mais que o dobro das 25 mortes registradas nos oito primeiros meses de 2019. Os números foram levantados pelo monitoramento da violência contra a mulher da série Um vírus e duas guerras, que traz dados de 19 Estados e mais o Distrito Federal. A maior parte desses assassinatos aconteceu durante a pandemia que colocou a região Norte na liderança de mortes pelo novo coronavírus.

Ilustração: Fernando Alvarus.

O monitoramento realizado nas cinco regiões do País é uma parceria inédita entre as mídias independentes Amazônia Real, sediada no Amazonas; Agência Eco Nordeste, no Ceará; #Colabora, no Rio de Janeiro; Marco Zero Conteúdo, em Pernambuco, Portal Catarinas, em Santa Catarina; AzMina e Ponte Jornalismo, em São Paulo. A série Um vírus e duas guerras tem o objetivo de visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil. 

O primeiro monitoramento da série mostrou que o crime de feminicídio no Pará saltou de cinco para dez casos entre março, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) decreta a pandemia globalmente, e abril. Já no quadrimestre de maio a agosto, foram 27 mortes, um aumento de 59% em relação aos 17 assassinatos de mulheres no mesmo período de 2019. Esses dados da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup), em números absolutos, colocam o Pará como o Estado que mais matou mulheres no confinamento da pandemia.

A taxa proporcional de feminicídios é liderada pelo Mato Grosso com uma taxa de 1,72 assassinatos por 100 mil habitantes mulheres. No Pará, com 4,3 milhões de mulheres, a proporção é de 0,62 feminicídios por 100 mil mulheres no segundo quadrimestre do ano, colocando-o a 6a. posição nacional desse ranking de 13 estados com mais crimes por ódio ao gênero feminino. 

Infográfico: Fernando Alvarus.

Houve 6.145 denúncias de violência doméstica no Pará de 18 de março até 25 de agosto, ante as 7.356 ocorrências em mesmo período de 2019, representando uma queda de 16%. Essa redução paraense chama a atenção, porque em outros Estados houve um aumento desse crime, já que o isolamento social obrigou as vítimas a conviverem com seus agressores. Pode, assim, estar havendo subnotificação e a própria pandemia ser um impeditivo para as denúncias.

Mulheres trans são invisíveis

Neste segundo monitoramento, a agência Amazônia Real solicitou à Segup uma qualificação dos dados para fazer uma radiografia de quem são a mulheres mortas pelo crime de ódio baseada no gênero. A secretaria informou que no boletim de ocorrência, quando é registrado pela primeira vez o crime, não há informações sobre etnia, orientação sexual e identidade de gênero. Mulheres que são trans, assim, são invisíveis na estatística.

As informações da Segup também não esclarecem a idade, escolaridade, raça e profissão das mulheres. “A maioria das vítimas tinha entre 35 a 64 anos de idade, possuía o ensino fundamental incompleto ou completo. A maior parte era empregada doméstica e dona de casa. Do total de registros, somente uma vítima se declarou como parda e as demais não informaram”, relata, genericamente, o governo. 

Essas informações, segundo a Segup, são solicitadas pelo Formulário Nacional de Avaliação de Risco de Violência Doméstica Familiar contra a mulher quando solicitado a medida protetiva, para a avaliação dos juízes. “Esse formulário começou a ser usado em meados do ano passado. Ainda não temos esses dados de raça de classe social tabulados. Não temos como fornecer qual é o número de mulheres negras, pardas, brancas e de outras etnias”, afirmou a juíza Reijjane de Oliveira, da Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid) do Tribunal de Justiça do Pará.

O formulário de avaliação de risco é utilizado pelos magistrados para medir a questão de risco e decidir qual será a medida de proteção adequada. “Sabemos por dados de outros institutos, como o Geledés, que trabalham o recorte racial, que a maioria das mulheres que sofrem violência de gênero são negras, mas eu não gosto de dar isso como um dado do Judiciário”, esclarece a juíza Reijjane.

Mulheres trans também têm seus direitos preservados e estão inclusas na Lei Maria da Penha, como explica a advogada Karla Furtado, sócia-fundadora do primeiro escritório de advocacia feminista, antirracista e anti-LGBTfobia de Belém, MCF. Em vigor desde 2006, a Lei Maria da Penha não é só para mulheres, independente se são trans ou não, e atende idosos, crianças e adolescentes dentro do contexto familiar ou de relacionamento, acrescenta Karla. 

A advogada do MCF lembra que nem é preciso ser mais familiar e cita, como exemplo, situações de um ex-namorado com quem tem ou teve relação íntima. “Se meu ex-companheiro me insulta, me agride, comete algum crime contra a minha pessoa, ele se enquadra na Lei Maria da Penha porque depende da relação pessoal que existe”, explica Karla. No texto da lei, em seu parágrafo 2º, entende-se por âmbito familiar “a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”.

Na prática, as delegacias da capital paraense têm atendido as mulheres transgêneros e gerado medidas protetivas, como afirmou em entrevista para a Amazônia Real a coordenadora do Grupo de Residência de Travestis e Transexuais da Amazônia, Renata Taylor de Andrade. Ela acompanhou o caso de uma jovem de 27 anos, que mora sozinha com o pai e é muito humilde, e teve um relacionamento de dois anos. “Graças a Deus deu tudo certo. Como viu que ela denunciou, teve medida e se ele se aproximasse iria ser preso, denunciado, então a deixou em paz. A Justiça funcionou e o agressor ficou com medo”, explica a ativista que acompanha pessoas LGBTQI+ em situação de vulnerabilidade.                                       

A morte da modelo Andressa

Protesto contra a violência, em Belém/PA. Foto: Júnior Lemos/Amazônia Real.

Na manhã de 16 de agosto, Andressa Vilhena estava a caminho da academia, na travessa Tiradente, no bairro de Algodoal de Abaetetuba, quando foi surpreendida por dois homens. Um deles disparou duas vezes contra a vítima, na cabeça e no abdômen. Andressa era filha de um policial, modelo e tinha um filho.

Naquele mesmo dia, a amiga Paula Bittencourt foi a um mercadinho e ouviu um homem comentando sobre mais uma morte violenta. “O dono do mercadinho tentava me explicar quem era, quando gritei a ‘Andressa? Neta do Pedro?’ Ele disse que sim, então eu travei, quando ele soltou a frase ‘ela morreu e eu não comi ela, ela era muito gostosinha’. Eu queria matar ele. Mas tudo bem, é um ser desprezível”, recorda-se a massoterapeuta. Em seguida, ela foi à casa do irmão da Andressa, que disse que ainda estava viva, na UPA. Mas uma hora depois, às 9h19, a morte foi confirmada. Paula conta que no funeral de Andressa o comerciante que proferiu as palavras machistas foi visto acompanhado da mulher. 

Cleysson Benedito da Silva, ex-companheiro de Andressa, e Samuel Cardoso Rodrigues, seu cúmplice, foram acusados pela morte da modelo. Eles foram mortos em uma troca de tiros com policiais, três dias após o crime de feminicídio. “Ele era louco. Já tinha feito outras maldades, não era boa pessoa. O olhar, os comentários que fazia, o jeito dele. Mas quando a gente gosta de alguém, tapamos a visão e nos jogamos de cabeça”, lamenta a amiga.

Câmeras de segurança registraram o assassinato e as imagens foram divulgadas pelo portal de notícias DOL, que não teve preocupação em alertar sobre a extrema violência das cenas. A partir desse dramático episódio, Paula Bittencourt decidiu criar o coletivo “Ela tem voz” e realizou uma caminhada contra o feminicídio no dia 16 de julho.“Eu estava com ódio. Queria gritar. Queria que as pessoas ouvissem minha revolta”, lembra a amiga. Ela publicou um post no Facebook e várias pessoas se manifestaram.  A passeata nas ruas de Abaetetuba reuniu inúmeras pessoas.

“Depois que isso aconteceu, muitas mulheres me procuram, e criei o coletivo recentemente. Para dar um apoio maior às vítimas. Todo dia da minha vida é dar assistência para mulheres. Grande parte só quer desabafar, ser ouvida. Algumas me procuram para ajudar na separação, a denunciar, para contar casos de estupros e abusos”, diz Paula.

Depoimento da repórter

Silenciadas ou interrompidas?

Ensaio fotográfico sobre a violência contra a mulher. Foto: Nay Jinknss/Amazônia Real/2020.

Os casos apresentados no primeiro parágrafo desta reportagem são literalmente um mapa de sangue de mulheres derramado pelo Pará durante o segundo trimestre de 2020. Escrevo esses casos com angústia, lágrimas e medo. Até onde vai o dever da jornalista e até onde vai o medo de ser mulher e morar em uma região onde o crime de feminicídio aumentou 112% no segundo semestre deste ano: 53 mortes em 2020 ante as 25 de 2019. 

Foram quatro mortes por dia nos últimos oito meses no Pará: 241 dias de sangue.

Paro de escrever o texto e avalio que preciso comprar trancas para as portas. Minha casa que moro há seis anos nunca havia sido roubada. Após a recente saída do meu ex-companheiro sofri a primeira tentativa de arrombamento. Sinto que alguém percebeu que agora moro só com o meu filho. Ou será só coincidência? Medos, que apenas uma mulher sabe o que é passar. Comecei a comentar com a vizinhança que agora meu irmão dorme aqui. Mesmo isso não sendo verdade.

Escrevo me questionando para que servem minhas palavras, se as histórias se repetem e o número de mulheres que morrem apenas por serem mulheres aumenta. Lembro do quanto escrever a primeira etapa do monitoramento foi decisivo na minha separação matrimonial. Não que eu tivesse chegado a sofrer violência. Mas quantas violências fazemos conosco para sustentarmos o peso do patriarcado  para casar e alcançar a família de comercial margarina? Se as palavras deste texto libertarem uma mulher, que seja. Como ouvir outras repartindo suas vivências e violências me libertaram, talvez essas séries de denúncias tenham um sentido. 

Soraia, uma vítima entrevistada na primeira etapa da série “Um vírus e duas guerras”, chegou a afirmar que acha que não valeu a pena denunciar o ex-namorado que a agrediu e a manteve em cárcere privado em julho . “Não aconteceu nada com ele, a única coisa foi que eu consegui a medida protetiva então ele não pode se aproximar”, afirmava a pedagoga. 

Entretanto, quando Soraia conta em uma nova entrevista para a Amazônia Real que arranjou um novo emprego, uma nova morada e até mesmo um novo relacionamento, acho que aquele post-denúncia publicado pela vítima em suas redes sociais garantiu a seguridade  para que pudesse recontar inúmeras histórias. 

Andressa, Ana Clara, Rosângela e tantas outras não silenciaram. Elas foram interrompidas. Mesmo nestas lutas essas mulheres não foram derrotadas, pois insistiram em ser. Ser livres . Não foram derrotadas porque demonstraram sua resistência ao dizer não a um relacionamento indesejado, ao ir a um bar só para se divertir ou ao andar nas ruas sozinhas. Pois ser mulher no Brasil, mais ainda no norte do país, é resistir. 

Leia a reportagem de abertura do segundo monitoramento:

Uma mulher é morta a cada nove horas durante a pandemia no Brasil

* A série Um Vírus e Duas Guerras vai monitorar até o final de 2020 os casos de feminicídio e de violência doméstica no período da pandemia. O objetivo é visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil. Parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia RealAzMina#ColaboraEco NordesteMarco Zero ConteúdoPortal Catarinas e Ponte Jornalismo.

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