Passava das 10 horas da noite de sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017, quando a jovem Elisa* de 27 anos chegou ao Hospital Universitário Evangélico de Curitiba com cólicas e sangramento. Ela havia ingerido medicamentos abortivos e junto com o namorado buscou socorro a 30 quilômetros de sua casa, para que os moradores do bairro não soubessem o que estava acontecendo. A distância, no entanto, não evitou que sua intimidade fosse devassada e que a família e vizinhos a vissem no noticiário de uma emissora de televisão. Ela passou 60 horas no hospital, onde policiais e profissionais de saúde se revezavam em julgá-la. Não há um dia em que Elisa não se lembre das algemas que prenderam seus pés ao leito do hospital, e de toda humilhação que passou.

O caso foi reportado pelo Portal Catarinas em 2017. Em abril deste ano conversamos pessoalmente com a jovem em Curitiba.

Cheguei com muita dor no hospital e disse ‘estou perdendo meu filho’. Eu queria esconder porque sei que é crime. Eles me abandonaram numa maca por 40 minutos. Comecei a chorar de dor. O médico e a enfermeira não ligaram pra mim, até que resolvi falar a verdade, que havia tomado remédio abortivo, porque senão eu ia acabar morrendo e ninguém faria nada”. O relato sobre o estado de saúde, protegido pelo direito ao sigilo na relação médico paciente, foi recebido por profissionais daquele plantão como confissão de um crime. Além da denúncia à polícia, a punição, segundo conta Elisa, sobressaltava em falas, tom de voz e olhares, durante o atendimento.

“O médico me levou para uma sala e aplicou uma injeção. Viu que o coração ainda tava batendo. Ele e a enfermeira me olharam com uma cara de raiva e disseram ‘nossa, ele tá vivo ainda’. Me deixaram mais uma hora morrendo de dor. Colocaram uma roupa em mim e disseram para eu andar até outra sala. Lá deitei numa maca e me deixaram abandonada por mais duas horas. Comecei a sangrar muito. Vieram uma médica e umas quatro enfermeiras e pediram para eu fazer força. Eu fazia força, mas não saía nada. A maca ficou cheia de sangue. Uma enfermeira que enfiava a mão em mim disse ‘não era isso o que você queria? Agora faça força’. Ela viu que eu não ia conseguir. Me levaram para outra sala, aplicaram anestesia e fizeram a cirurgia. Acordei meio sedada, tonta, e o quarto estava cheio de policiais em volta de mim, junto com a assistente social. Eles fizeram perguntas, um policial algemou minhas pernas ao leito, e me deixaram ao lado de uma mãe que tinha acabado de ganhar bebê, acho que para me maltratar. Depois me levaram para o quarto, onde eu ficaria internada. Os policiais voltaram e continuaram a fazer perguntas. Perguntavam por que eu tinha feito aquilo, por que eu não tinha doado, já que havia muita gente querendo adotar. Eram perguntas maldosas. Me deixaram durante um período com as algemas, até que um policial disse que não precisava e as tirou”.

Elisa ficou vigiada todo o tempo por uma escolta policial. “Fiquei trancada no quarto sem receber visitas e a cada três horas mudavam os policiais que estavam de plantão do lado de fora. Eles batiam na porta a cada 30 minutos para saber se eu não tinha pulado a janela. Conversavam alto para eu escutar, lembro-me de uma enfermeira que falou ‘nossa, como é que pode, porque ela não doou, porque não deu’. Me incomodavam 24 horas. Nesses dias que fiquei lá foi assim”. A cada troca de plantão, um novo policial entrava na sala. “O que teu namorado faz? Por que você fez isso? Por que você não deixou na adoção?”, perguntavam, segundo o relato da jovem. Sem direito a receber visitas, pediu ao então namorado, por telefone, que levasse para ela uma sacola com roupas. Ele foi orientado a deixar na portaria do hospital, mas a encomenda não foi entregue.

Na segunda-feira, dia da alta, Elisa saiu do leito direto para o cárcere da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). “Na saída do hospital, me levaram no carro da polícia, com todo mundo olhando”, conta. Presa, ela teve os pés algemados enquanto aguardava o pagamento da fiança no valor de R$ 900, pelo namorado. “Eles ligavam para o meu namorado dizendo que se não pagasse rápido eu ficaria presa. Fiquei por mais de quatro horas numa sala nojenta, com os pés algemados a uma cadeira. O lugar fedia, era horrível”. Quando descobriram que ela estava com um celular, ameaçaram ligar para cada contato da lista até encontrar a pessoa que tinha vendido o abortivo. “Falei-lhes quem tinha vendido e onde o encontrariam. Mostraram a foto e eu o reconheci”. Na volta para casa, a família já sabia o que tinha acontecido. Sua irmã assistiu à notícia na televisão que trazia imagens da jovem na delegacia. A família, no entanto, a apoiou e concordou com a decisão. “No bairro da minha mãe todo mundo ficou sabendo, por isso passei um tempo sem aparecer. Morei durante meses na casa do meu namorado, bem longe”.

Decisão acertada
Elisa achava que estava protegida de uma gravidez. Sem nunca ter consultado uma ginecologista, passou a tomar com frequência a pílula do dia seguinte. Só mais tarde descobriu que o medicamento perdia a eficácia quando usado repetidamente. “Não engravidei porque quis. Eu tomava a pílula do dia seguinte e achava que estava me prevenindo. Tinha medo de tomar injeção e me esquecia de tomar o anticoncepcional”. A menstruação irregular fez com que descobrisse tardiamente a gravidez. “Descobri a gravidez quando desmaiei no ônibus depois de fazer uma escova progressiva no cabelo. Pensei, ‘só posso estar grávida’. Fiz a ultrassonografia, já estava de quase cinco meses. Tinha um dinheiro guardado, não pensei duas vezes”. A jovem fez o procedimento medicamentoso sozinha em casa. Cinco horas depois de ingerir as pílulas, sentiu forte cólica e foi ao hospital com o namorado.

Elisa mora com a mãe, que é diarista, em um dos bairros mais pobres da região metropolitana de Curitiba. Concluiu o ensino médio e faz trabalhos temporários como manicure, ajudante de cabeleireira e babá. O ex-namorado de 29 anos chegou a afirmar, em entrevista na época, que gostaria que ela mantivesse a gravidez. “Me imaginei depois da gravidez e pensei ‘isso não vai prestar’. Ele acha que é assim ter filho. Dizer que quer ter filhos é fácil, quero ver criar. Ele ganhava uma miséria e dava R$ 300 para a filha de oito anos. Imagine como seria. Ele queria ter para a criança passar fome, e eu nunca aceitaria isso. Eu pensava ‘meu filho não vai sofrer dessa forma, nunca, jamais’. Achei melhor interromper a gravidez do que passar necessidade”.

Suspensão do processo penal
A cada dois meses a jovem precisa pegar quatro linhas de ônibus para chegar ao Fórum Criminal de Santa Cândida e assinar o documento que garante a suspensão condicional do processo. Sob condições como comparecimento periódico à justiça, a suspensão impede que o processo tenha seguimento na Vara do Júri. Mesmo que o mérito fosse julgado, a pena para quem comete o crime de aborto, de um a três anos de detenção, geralmente é convertida em prestação de serviços à comunidade.

Elisa só teve conhecimento de seu direito a uma advogada quando compareceu ao fórum no início da ação penal. O contato com a defensora dativa, que lhe informou sobre a oferta da suspensão condicional do processo pelo Ministério Público, ocorreu por mensagem telefônica dias antes da audiência. Na sessão de audiência, cinco meses depois do flagrante, a advogada pouco conversou com a cliente. “Só disse que eu teria que assinar o documento por dois anos”.

Desde que o atendimento de saúde a levou para o sistema penal, a rotina dela é relembrar cada detalhe do que viveu naqueles dias. “Nesse ano eu parei. Sinto muita tristeza com tudo, nem gosto mais de sair de casa, saio só quando muito necessário. Uns dizem que estou com depressão. Até peguei anemia depois do que aconteceu. Minha rotina é ficar em casa chorando o dia todo. Quando eu lembro de tudo, quero só ficar sozinha e trancada”.

*Nome fictício para proteger e resguardar a identidade da entrevistada.

Esta publicação faz parte da série “Do pronto socorro ao sistema penal” com textos inéditos a cada dia. Acompanhe.

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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