“Eles (policiais) chegaram de madrugada e quando acordei estava algemada. Tive que tomar banho de porta aberta. Não tinha policial mulher para me acompanhar. Mesmo que enfermeiras falassem que eu não poderia fugir, pois a janela do banheiro era muito pequena, eles ficavam me vigiando. No dia em que fui liberada, os policiais assinaram minha alta e me levaram para a delegacia. Depois do depoimento, o delegado disse que eu poderia ir para casa. Liguei do orelhão para minha mãe me buscar”. O relato entrecortado pelo choro é de uma jovem de 21 anos que foi levada à emergência de um hospital após passar por um aborto, em 2016, quando estava com 19 anos e cursava o ensino médio. A agente de telemarketing nos recebeu em sua casa, onde mora com os pais que trabalham com coleta de papelão para reciclagem. Contou que não sabia da gravidez, pois apesar do sobrepeso, menstruava regularmente no momento em que passou mal e foi socorrida em casa com dores e sangramento. Não identificaremos o caso a pedido da advogada, porque está sob investigação da polícia civil.

A série “Do pronto-socorro ao sistema penal” aborda casos de criminalização de mulheres por profissionais de saúde em atendimento emergencial por abortamento. Após meses de investigação, conseguimos entrevistar duas jovens que sofreram aborto, foram algemadas ao leito e vigiadas durante toda a internação. Uma delas relatou o que viveu nos dois dias em que ficou hospitalizada. Essas situações comuns a muitas brasileiras são silenciadas pelo estigma que se soma à discriminação social e étnica, à relação assimétrica entre profissionais de saúde e pacientes e à ausência de políticas públicas que assegurem direitos. Para monitorar esses casos em que uma paciente se transforma em criminosa quando busca socorro para não morrer, lançamos o Mapa Colaborativo da Criminalização por Aborto, produzido como um diagnóstico com base em matérias jornalísticas veiculadas na imprensa. A intenção é expandir a pesquisa com outras notícias não listadas e relatos de mulheres que foram criminalizadas enquanto recebiam cuidados médicos após um abortamento.

Ilustração: Flávia Fernandes

A criminalização de pacientes pela prática de autoaborto durante atendimentos emergenciais é uma das principais formas de entrada das brasileiras no sistema penal, como apontou estudo recente da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Em 65% dos casos, as acusadas foram denunciadas durante emergência médica. Em 20%, as denúncias foram feitas por familiares e vizinhos. “Um dos elementos que nos chocou é a frequente quebra do sigilo médico. A realidade constatada no Rio de Janeiro reproduz-se em outros estados. A mulher que responde processo por autoaborto é aquela que busca o hospital público, que já fez tentativa de abortamento e acaba passando mal. A maioria dos processos é de mulheres que estavam exatamente nessa situação e foram denunciadas por enfermeiras/os e médicas/os”, descreveu Arlanza Rebello, aposentada da coordenadoria Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. De acordo com o estudo da Defensoria, que identificou 136 processos entre 2005 e 2017, em algumas situações a denúncia do hospital ocorre relacionada a um pedido de remoção do feto. Há também registros de denúncia em postos de saúde e unidades de pronto atendimento (UPA). Em dois casos ocorridos na capital, o policial de plantão do hospital passou por assistente social, disse que estava para ajudar e, quando a mulher contou a história, deu-lhe voz de prisão.

De acordo com o estudo “Resultados da pesquisa mulheres incriminadas por aborto: um diagnóstico a partir dos dados da segurança pública”, divulgado pelo ISER (Instituto de Estudos da Religião) e Ipas (organização internacional em defesa dos direitos reprodutivos) em 2012, em mais de uma situação, a mulher denunciada foi algemada à maca do hospital público e, antes mesmo de se recuperar, o processo criminal estava curso. Enquanto o aborto é uma realidade da mulher brasileira, como revelou a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) de 2016, realizada pela Anis – Instituto de Bioética, o cárcere é para poucas. Conforme os levantamentos sobre criminalização, a maioria das mulheres denunciadas é negra, moradora de áreas periféricas, com filhos e sem antecedentes criminais. A marca da discriminação social e étnica é perpetuada no lugar onde a mulher busca socorro para não morrer, depois de um procedimento feito com pouca ou nenhuma segurança.

O retrato dos danos da criminalização às mulheres pela Defensoria do Rio de Janeiro foi apresentado na Ação de Descumprimento de Preceito Institucional (ADPF) 442 que reivindica a descriminalização do aborto até os três primeiros meses de gestação ao Supremo Tribunal Federal (STF). A ação que contesta a constitucionalidade da criminalização bateu recorde de pedidos de “Amicus Curiae” (que em latim significa “Amigo da Corte”) para participar da discussão, apresentando argumentos aos ministros. São 39 pedidos, 28 favoráveis, entre eles o da Defensoria, e 11 contrários. “A criminalização do aborto, mais uma vez confirma o racismo institucional em patamar sistêmico, não só reforçando a vulnerabilidade da mulher negra no sistema de saúde, mas também no sistema de justiça criminal”, argumentou a advogada Lia Manso, no Amicus Curiae proposto pela organização Criola, voltada aos direitos das mulheres negras.

Duas situações em que consultas médicas de emergência se transformaram em investigação policial, apuradas pelo Portal Catarinas, são citadas na ADPF. Em uma delas, a mulher fora escoltada pela polícia durante o atendimento médico depois de sofrer um abortamento espontâneo em casa, demonstrando que a nocividade da criminalização não se limita a atingir aquelas que provocam a interrupção da gestação. “Essas mulheres desconhecem seus direitos. Uma mulher que teve a privacidade violada porque foi denunciada e o prontuário usado contra ela, pode entrar na justiça contra essa equipe de saúde. Não estamos ativando isso de uma forma estratégica. É uma questão de avançar a advocacia em relação a isso no país”, afirma Beatriz Galli, assessora de políticas para a América Latina do Ipas. Ainda, conforme a advogada, ao constatar que uma unidade de saúde viola sistematicamente os direitos das mulheres, o Ministério Público pode ser acionado para que apure ou intervenha de alguma forma.

Uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), em 8 de março deste ano, abriu precedente contra a criminalização de mulheres durante atendimento no sistema de saúde, demarcando a ilegalidade da criminalização quando resulta de violação do direito ao sigilo médico. A Corte aceitou o argumento da Defensoria Pública do estado de que as provas utilizadas para incriminar uma jovem de 21 anos, além de insuficientes, eram ilícitas, pois foram obtidas após a denúncia da médica que a atendeu num hospital público. O pedido integra um conjunto de 30 habeas corpus impetrados em favor de mulheres acusadas de aborto.

A relatora do habeas corpus, desembargadora Kenarik Boujikian, acolheu o argumento da inconstitucionalidade da criminalização e classificou a prática da denúncia como constrangimento ilegal. “A conduta da médica, ao violar os princípios fundantes da medicina por publicizar os fatos que tinha conhecimento em razão do exercício profissional, sem estar em qualquer das hipóteses permissivas, deixa esta relatora, deveras, chocada”, escreveu no acórdão.

Mesmo que a prática do aborto seja crime, o atendimento humano e sigiloso no socorro à mulher que recorre a ela é direito, como orienta a Norma Técnica “Atenção humanizada ao Abortamento” do Ministério da Saúde:

“A prática do aborto não deveria ser crime no Brasil, mas é. Porém, a quebra de sigilo também é. Então nenhuma mulher pode ser criminalizada por meio da violação de seu direito. É preciso que seja processada dentro da legalidade, que a regra do jogo seja respeitada. As mulheres podem ser punidas a qualquer custo? Não. As regras e os princípios garantidores do direito precisam ser respeitados”, argumenta Ana Rita Prata, coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo, uma das responsáveis pelo pedido.

Tendência de criminalização
Em 2017, 18 estados brasileiros registraram 331 processos pela prática do autoaborto, crime tipificado no artigo 124 do Código Penal: “provocar aborto ou permitir que outra pessoa provoque”. Um aumento de 15,3% em relação ao ano anterior. Conforme o estudo produzido pelo Portal Catarinas em parceria com a organização GHS Brasil, São Paulo é o estado com o maior número de processos por aborto provocado pela gestante do Brasil: ao todo, foram 250 entre 2015 a 2017, um aumento de 25% no período.

De acordo com o estudo “Delatando as mulheres: o dever de cada prestador de serviços de denunciar”, publicado pelo Ipas em 2016, profissionais de saúde na América Latina tornaram-se o ponto de entrada de meninas e mulheres no sistema jurídico, forçando-as a escolher entre a prisão ou a morte. “A relação de confidencialidade entre prestador de serviços e paciente está se deteriorando silenciosamente. Muitos países agora exigem, protegem ou encorajam que médicos não cumpram seu dever de confidencialidade quando atendem a mulheres que precisam de cuidados pós-aborto”, diz o relatório.

A advogada Beatriz Galli analisa que há uma tendência maior de denúncias nos hospitais devido ao contexto político de estigma e criminalização em relação ao aborto. “Existe um movimento no Congresso Nacional que está propondo projetos de lei que criminalizam ainda mais a prática, e um aumento da religiosidade misturada com políticas de saúde. As pessoas acham que é dever delas denunciar. Outro fator que influencia é o próprio desconhecimento sobre o marco legal”, avalia.

A pesquisa “Criminalização das jovens pela prática de aborto: análise do sistema de segurança pública e do sistema de justiça do Rio de Janeiro”, realizada pelo Ipas e Iser em 2012, indicou que 20,2% dos processos sobre crimes de aborto tramitavam no âmbito da justiça juvenil. “Em tese, menores de 14 são vítimas de violência sexual e têm direito ao aborto legal. Mas, não há um esforço para apurar a violência que elas sofreram. Não existe essa sensibilidade, pelo contrário, há julgamento moral sobre o exercício da sexualidade”, argumenta Beatriz que atuou no estudo.

* A série “Do pronto-socorro ao sistema penal” segue com uma publicação a cada dia.

Capítulo 2: Quando o hospital se transforma em cárcere: relato de uma jovem algemada ao leito

Capítulo 3: A justificativa do hospital que denunciou uma paciente por aborto

Capítulo 4: O “caso das dez mil” e a suspeita permanente sobre as mulheres

Capítulo 5 : A ilegalidade das provas contra mulheres criminalizadas por aborto

Capítulo 6: Respeitar, acolher e cuidar da paciente que passou por um abortamento

 

 

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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