Por Alicia Lobato Amazônia Real

Em 20 de maio, Silvana Magalhães, 35 anos, foi morta a pauladas pelo ex-marido. Silvana possuía uma medida protetiva expedida dois meses antes, mas isso não impediu Ednaldo de assassiná-la na frente do filho de dez anos do casal. Grávida de cinco meses de outro relacionamento, Juliana da Silva, de 20 anos, foi morta com uma facada no pescoço pelo ex-namorado, em 17 de julho na capital Boa Vista. Os dois casos de feminicídios, ocorridos em meio à pandemia do novo coronavírus, não geraram protestos na sociedade de Roraima. Em vez disso, o que se notou foi a ausência da discussão do tema pelos governantes.

O segundo monitoramento da violência contra a mulher da série Um vírus e duas guerras levantou esses dois casos de feminicídios, de Silvana e de Juliana, ocorridos no segundo quadrimestre do ano, de maio a agosto, em Roraima. Com essas mortes, Roraima ficou entre os 13 estados, de 20 analisados, com uma taxa acima da média de 0,34 feminicídio por 100 mil habitantes mulheres. 

A população feminina de Roraima é formada por 271 mil mulheres. A taxa do estado é de 0,74 feminicídios por 100 mil mulheres – acima de estados como Santa Catarina (0,71) e Bahia (0,63). 

Infográfico Fernando Alvarus

O monitoramento da violência doméstica durante a pandemia nas cinco regiões do País é uma parceria inédita entre as mídias independentes Amazônia Real, sediada no Amazonas; Agência Eco Nordeste, no Ceará; #Colabora, no Rio de Janeiro; Marco Zero Conteúdo, em Pernambuco, Portal Catarinas, em Santa Catarina; AzMina Ponte Jornalismo, em São Paulo. A série Um vírus e duas guerras tem o objetivo de visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil

O ciclo do silêncio

Protesto das ativistas do Núcleo de Mulheres de Roraima (Foto Namur)

A pandemia do novo coronavírus foi decretada em 11 de março pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que sugeriu a quarentena e isolamento social da população no período da incidência da doença. A OMS também alertou sobre o aumento da violência doméstica na pandemia da Covid-19. 

Em números absolutos, de janeiro a agosto deste ano, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) registrou quatro casos de feminicídios no estado contra três casos no mesmo período deste ano. Mas quando analisado o período da pandemia, os casos aumentaram: uma morte de mulher em maio e outra em junho.  Mulheres que se declaram parda foram as maiores vítimas, segundo os dados do governo, que não informa na estatística gênero e a escolaridade.

Infográfico Fernando Alvarus

Os casos de feminicídio são de mulheres que lutavam sair do ciclo abusivo, mas que acabaram por perder suas vidas para ex-companheiros. Esse mesmo ciclo de violência tem se repetido, muitas vezes em silêncio durante esse período de isolamento social, em muitas casas de Roraima. 

“Fomos procuradas por mulheres em situação de vulnerabilidade social, pois muitas ficaram completamente desassistidas”, afirma Andréa Vasconcelos, socióloga e integrante do Núcleo de Mulheres de Roraima, Numur. Ela percebeu, durante a pandemia da Covid-19, que houve um aumento na procura da organização por vítimas da violência doméstica

O coletivo feminista Numur discute ações em defesa dos direitos das mulheres e promoveu a campanha de solidariedade Emanas. A instituição criou um fundo solidário e distribuiu kits de higiene e cestas básicas para mulheres desempregadas e em situação de vulnerabilidade. Atendeu, desde então, mais de 100 mulheres.

“Algumas mulheres procuram ajuda, mas a violência ainda é um tabu e muitas têm vergonha, medo de denunciar e mesmo de falar sobre o que sofrem. O tema da violência é muito complexo”, explica a socióloga.

O tabu da violência contra a mulher

A violência contra a mulher ainda é um tabu por vários motivos, como explica Kézia Lima, historiadora e integrante de outro coletivo feminista, o Juntas. “Temos um fundamentalismo religioso muito forte que impede o avanço da pauta, porque misturam política e religião. O próprio Estado coloca a discussão como um tabu. Então a ausência de discussão sobre isso, gera na população a sensação de que é exagero ou desnecessário quando nós pautamos esse assunto.”

Kézia acrescenta que desde que a pandemia começou, e apesar dos alertas da sociedade civil, não houve proatividade dos órgãos em abordar essa questão com a população.

“As ações dessas figuras públicas são muito simbólicas para entendermos a dificuldade em acessar informações sobre casos de violência contra as mulheres e por termos um Estado com poucas ou nenhuma política pública de enfrentamento. Essa ausência é um reflexo direto de como os representantes do Estado vêem a situação da mulher: com descaso”, comenta.

Roraima já foi considerado o Estado mais letal para as mulheres no Brasil. Em 2015, a taxa feminicídio era de 11,4 mortes para cada 100 mil mulheres, ante a média nacional de 4,4 homicídios – que já era uma das mais elevadas do mundo. A organização não-governamental Human Rights Watch averiguou, dois anos depois, como o poder público pouco enfrentava a violência doméstica. Na ocasião, mulheres diziam que eram mandadas embora das delegacias e orientadas a só registrar o boletim de ocorrência na única Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), que fica na Casa da Mulher Brasileira, em Boa Vista.

Hoje, a Deam é chefiada pela delegada Verlania Silva de Assis, 50 anos, que afirma que o enfrentamento da violência doméstica durante a pandemia tem sido feito por meio de campanhas preventivas. Ela diz ainda que as políticas públicas estão avançando em Roraima, mas admite que ainda faltam projetos que atinjam essa mulher para que ela possa ter oportunidades de interromper o ciclo violento.

“Na questão do feminicídio, fazemos essas abordagens com a necessidade de ir identificando aquela violência que é gradativa, vai aumentando no ambiente doméstico, ver se aquela pessoa com quem ela está se envolvendo esta fazendo uso de constante substâncias químicas ou álcool, se ele está com um comportamento mais violento. A abordagem do feminicídio é você identificar essa violência, se a pessoa é possessiva, essas são as abordagens”, explica Verlania. 

A delegacia distribuiu cartilhas informativas para mulheres explicando as formas de se fazer uma denúncia. Para ela, é importante que a mulher se conscientize do problema do qual é vítima.

“Primeiramente entender que não deve suportar diariamente, vivenciar uma violência para a manutenção da família. Hoje oferecemos um acompanhamento psicossocial, a possibilidade de alojamento provisório. Fazemos esse alerta a mulher, informativos de que há possibilidade dela poder se libertar dessa dependência”, orienta a delegada.

Com a possibilidade de aumento dos casos da violência doméstica, a Deam continuou funcionando de modo presencial, além de oferecer a possibilidade do boletim de ocorrência online. O órgão atende apenas a capital do Estado. No interior, os atendimentos são de responsabilidade das delegacias localizadas nos municípios

A delegada Verlania Silva atribuiu o aumento nas ocorrências à abertura de outros canais de denúncia. “A delegacia atende todas as ocorrências dessas áreas de violência doméstica familiar e o feminicídio. Não temos nenhum caso de morte de mulher nessas duas circunstâncias de tipificação de homicídio, feminicídio, que não tenham sido levadas em conta”, garante.

Mas Andréa Vasconcelos afirma que a participação do Estado na luta contra o feminicídio e a violência doméstica ainda sofre pela ausência de um planejamento mais eficaz. “Faltam ações, projetos e programas de curto, médio e longo prazo para trabalhar efetivamente a prevenção. Na verdade, o Estado só atua depois que a violência aconteceu, as delegacias, as varas de enfrentamento”, diz a socióloga do Numur. “As próprias medidas protetivas enfrentam dificuldades reais de manter os agressores distantes. Mas a Lei Maria da Penha tem um rol de ações que devem ser implementadas para coibir e assim evitar que a violência aconteça.”

Discutir a violência doméstica abertamente

Kézia Lima – Coletivo Juntas, em Roraima/ Foto Arquivo pessoal)

A historiadora Kézia Lima, do coletivo Juntas, acredita que para o Estado alcançar melhores resultados deve criar espaços de debate nos bairros e com o uso das mídias. “Que o Estado promova de forma efetiva campanhas, não criminalize os espaços de discussão sobre gênero, normalizem o tema, principalmente nos espaços de formação. Que garanta abrigo para a mulher que é vítima de violência saia de casa após a denúncia. Isso pode motivar mulheres que são violentadas a denunciar, porque muitas vezes elas voltam para o mesmo ambiente por não terem para onde ir.” 

Andréa Vasconcelos enumera possíveis formas para o enfrentamento do problema: preparação e capacitação de profissionais que atuam no combate à violência; favorecer a educação para a não-violência e a educação sexual com professores capacitados para orientar as crianças e os adolescentes; ter verbas e orçamentos para as políticas de enfrentamento à violência; e a disponibilização de equipamentos sociais, como saúde, escola, creches, lavanderias, restaurantes populares, incentivos de cooperativismo para geração de renda, para que as mulheres possam ter um trabalho remunerado e se libertem da dependência econômica que, muitas vezes, as prendem aos seus algozes. Muitas delas não podem sequer contar com a ajuda da família.

A socióloga alerta para um agravante local: “a discussão sobre o tema da violência não é fácil em nenhum lugar. Mas em Roraima temos uma cultura da violência enraizada na sociedade que mantém vivo a lógica serviçal. O assistencialismo não vem somente de governos, mas tem uma lógica de ajuda; de trazer meninas indígenas para a cidade com um discurso ‘é como se fosse da família’, que no fundo perpetua relações de opressão e dominação”.

Para a delegada Verlania Silva, o objetivo do Estado deve ser o de promover a emancipação da mulher. “Nós não temos que focar na repressão da violência, nós não temos que pensar em punir o infrator. Temos que pensar em prevenir a violência, não  é interesse do Estado processar, condenar um ofensor. É interesse do Estado que aquela mulher não experimente a dor, o sofrimento, a angústia de viver em um ambiente violento.” E conclui “É por isso que é tão importante a questão do empoderamento da mulher, a sua autonomia financeira, porque ela vai ter um leque de escolhas. Muitas vezes, quando ela depende do companheiro do marido, namorado, do filho ela, acaba não tendo”.

Em julho, mulheres deixaram faixa em feira como protesto em Roraima / Foto Emanas

Leia a primeira reportagem da série Um vírus e duas guerras

Um vírus e duas guerras: uma mulher é vítima de feminicídio a cada 9h durante pandemia

A série Um Vírus e Duas Guerras vai monitorar até o final de 2020 os casos de feminicídio e de violência doméstica no período da pandemia. O objetivo é visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil. Parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia RealAzMina#ColaboraEco NordesteMarco Zero ConteúdoPortal Catarinas e Ponte Jornalismo.

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