A investigação contou com o apoio da ativista Alexandra Lopes da Costa.

Cerca de 200 mil mulheres com aborto incompleto buscam a emergência dos hospitais públicos todos os anos no Brasil, segundo o Datasus – Banco de Dados do SUS. Contrariando a  Norma Técnica do Ministério da Saúde (MS) “Atenção Humanizada ao Abortamento” e o próprio código de ética da categoria, profissionais de saúde têm feito papel de polícia. Foi o que aconteceu na última semana em Campo Grande/MS, no socorro a uma mulher de 30 anos pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). O feto de 16 semanas, encontrado sem cabeça no vaso sanitário de sua casa motivou a escolta policial até o Hospital Regional de Mato Grosso do Sul, onde a paciente continuou vigiada. Com cólicas e sangramento, ela passou por procedimento cirúrgico para retirada dos restos do aborto e só recebeu alta depois de ser interrogada, na manhã do dia seguinte. Por falta de evidências que sustentassem o crime, a prisão em flagrante foi descartada.

Ainda que não menstruasse desde novembro, quando fez o primeiro teste de gravidez e resultou negativo, a mulher não sabia da gestação. Segundo relatos da paciente a profissionais de saúde e policiais, ela sentiu fortes cólicas e começou a sangrar quando percebeu que se tratava de um aborto.

Único do estado a oferecer o serviço de aborto legal – previsto por lei nos casos de estupro, feto anencéfalo e gravidez de risco – o hospital informou em nota que: “a paciente foi trazida pelo Samu (juntamente já com o feto sem o crânio) com relato de dor em baixo ventre, seguida de sangramento vaginal, com saída de feto via vaginal, no vaso sanitário de sua própria residência. Relata que tracionou o feto para auxiliar a saída. A paciente ficou sob sedação e escolta policial, uma vez que houve denúncia do fato”.

Um médico do setor de obstetrícia, que não quis se identificar, contou que o policiamento gerou desconfiança entre médicas/os e enfermeiras/os que não sabiam de onde havia partido a denúncia. “Ela já chegou escoltada e durante o atendimento houve rotatividade de policiais. Horas antes da alta, uma delegada inquiriu a paciente dentro do hospital”, relata.

Contradições
A assessoria de imprensa da polícia militar afirmou que não houve escolta e que sequer há registro da ocorrência no sistema. A assessoria da Secretaria Municipal de Saúde de Campo Grande, à qual o Samu está vinculado, não confirmou se a denúncia partiu do serviço, porém defendeu que o aviso à polícia militar é um procedimento de rotina em caso de “suspeita de crime”, conforme a Portaria 2.048/02, do Ministério da Saúde, que estabelece regras para o funcionamento dos serviços de urgência e emergência. “Havendo suspeita de crime, a equipe deverá preservar as evidências e aguardar a chegada de autoridade policial competente previamente comunicada. Neste caso, a confidência, que é um princípio básico na relação médico paciente, pode ser ‘quebrada’. O Socorrista deve comunicar imediatamente a existência da ocorrência à Central de Regulação Médica de Urgências”, respondeu em nota.

No entanto, a portaria não faz menção à obrigatoriedade de denúncia, pelo contrário prevê o sigilo como pré-requisito para o exercício profissional. “Velar para que todos os envolvidos na atenção pré-hospitalar observem, rigorosamente, a ética e o sigilo profissional, mesmo nas comunicações radiotelefônicas”.

“Foi feita uma interpretação enviesada e altamente subjetiva de uma norma que não fala em crime. Há uma lógica criminal impregnada no atendimento à mulher em situação aborto incompleto, totalmente contrária ao que diz o código de ética profissional e a norma técnica do Ministério da Saúde. Partem do pressuposto de que toda mulher que sofre aborto é criminosa. Outro aspecto grave é a denúncia de um crime feita sem nenhuma evidência. Para haver um crime é preciso ter provas como, por exemplo, a existência de medicamento abortivo”, afirma Sonia Corrêa, co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW, sigla em inglês).

Para a ativista, socorristas deveriam se guiar pela Norma Técnica do Abortamento Humanizado, segundo a qual o julgamento e a denúncia pode ensejar procedimento criminal, civil e ético-profissional contra quem revelou a informação. “Diante de abortamento espontâneo ou provocado, o(a) médico(a) ou qualquer profissional de saúde não pode comunicar o fato à autoridade policial, judicial, nem ao Ministério Público, pois o sigilo na prática profissional da assistência à saúde é um dever legal e ético, salvo para proteção da usuária e com o seu consentimento”, diz a norma.

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Relatório da Anistia Internacional denuncia a criminalização da saúde das mulheres em El Salvador/Foto: capa da publicação

De acordo com Sonia, a criminalização da saúde, ancorada na suspeita completa das mulheres, tem levado salvadorenhas à prisão, mesmo quando sofrem aborto espontâneo, como denunciou a Anistia Internacional no relatório “À beira da morte: a violência contra a mulher e a proibição do aborto em El Salvador” . El Salvador, Nicarágua, Chile e Honduras se destacam como os países da América Latina onde o aborto é totalmente ilegal.

A norma técnica Regulação Médica das Urgências também reafirma o sigilo como fundamental ao exercício da profissão e orienta que só poderá ser quebrado por “justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente”. A denúncia só se justifica em favor da paciente e em caso de prejuízo ou dano à coletividade, conforme entrevista recente da presidenta da Comissão sobre Violência de Gênero da OAB/PR, Sandra Bazzo, sobre a prisão de uma paciente no Hospital Evangélico de Curitiba.

Histórico de abortos espontâneos
De acordo com o delegado da 5ª Delegacia de Polícia de Campo Grande, João Reis Belo, a mulher foi ouvida no próprio hospital e a delegada de plantão, Marina Lemos, não fez atuação em flagrante, porque não havia elementos suficientes que indicassem o crime.

O caso tratado como “morte a esclarecer” continua sob investigação.  O resultado da análise dos restos fetais pelo Instituto de Medicina e Odontologia Legal (IMOL) deve sair nos próximos quinze dias. A mulher, o marido e os médicos que a atenderam terão que prestar depoimento. “A mulher e o companheiro informaram que ela tem um histórico de três abortos espontâneos. O médico dela já havia alertado sobre o risco de novas situações. A polícia não descarta a possibilidade de autoaborto, mas admite que a chance de ter sido espontâneo é muito grande”, esclarece o delegado ao telefone.

O policial pede cuidado no relato do caso para não promover julgamento prévio pela opinião pública e incitar violência contra a mulher. “É preciso cautela e prudência para não pré-julgar e condenar a pessoa. Vi muitos jornais demonizando a menina que pode vir a ser vítima de violência”. Segundo ele, nesta semana também em Campo Grande, uma menor que teria sido orientada pela mãe a provocar aborto teve a casa apedrejada depois que o feto foi encontrado enterrado no quintal.

Acionada pelo portal Catarinas, a defensora pública de Mato Grosso do Sul, Edmeiry Silara Broch Festi, coordenadora do Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem), não tinha conhecimento da situação. “Nós pedimos para que a assistente social do hospital nos coloque em contato com a mulher, uma vez que a atuação da Defensoria Pública deve ser provocada. Em que pese a necessidade de provocação, entendemos que cabe uma maior investigação pelos órgãos responsáveis para saber quem fez a denúncia de aborto”, explica em nota enviada por e-mail.

Caso das dez mil
Mato Grosso do Sul é marcado pelo “caso das dez mil”, ocorrido em 2007, em Campo Grande, no qual a polícia violou a privacidade de quase dez mil mulheres ao fechar uma clínica de planejamento familiar e tornar público seus prontuários médicos. “Pacientes tiveram sua privacidade violada, seja porque decidiram interromper uma gravidez indesejada ou simplesmente fizeram uma consulta. Embora 1.500 mulheres tenham sido indiciadas, não é exagero afirmar que todas as quase dez mil mulheres tiveram seus direitos violados, na medida em que nem o sigilo médico nem sua privacidade foram respeitados”, analisa a pesquisadora Alexandra Lopes da Costa, no artigo “Inquisição Contemporânea: uma história de perseguição criminal, exposição da intimidade e violação de direitos no Brasil”, publicado na Revista Internacional de Direitos Humanos. Na época não havia nenhum serviço de aborto legal no estado, mesmo com a garantia do direito desde o código penal de 1940.

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