O atendimento à mulher em processo de abortamento no hospital público pode ser tão humilhante quando inseguro. Mesmo que não seja possível dizer num primeiro momento se ela provocou ou não a interrupção da gravidez, espera-se que conte com a sorte de “cair” no plantão de profissionais que sejam mais humanos do que necessariamente “cristãos”. O policiamento começa ali mesmo no momento de maior vulnerabilidade de um ser humano com dor e medo. Além da negligência no socorro, está a postergação no atendimento como forma de punir a mulher “pecadora” e “criminosa”. Isso quando ela sobrevive ao submundo da clandestinidade. Na vida real, as mulheres pobres e negras pagam um preço alto pela falta de recursos, desinformação e são vítimas fáceis de intimidação e punição. O calvário que vai da clínica clandestina – ou soluções caseiras -, passando pela loteria do hospital público, à prisão, sem dúvidas não é alternativa para pessoas que só querem decidir sobre suas próprias vidas.

Para alguns legisladores brasileiros esse cenário não é suficiente. Não basta criminalizar o aborto, é preciso desconfiar, humilhar, retirar direitos, chamar mulheres de ardilosas mesmo quando são violentadas sexualmente e a opção pela interrupção da gravidez é um direito. É o que propõe o Projeto de Lei 5069 de 2013 que tem deixado as feministas mais “raivosas” do que possa supor aqueles que assim as rotulam. Aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), no final do ano passado, a matéria está pronta para ser votada em plenário.  A polêmica causada na Câmara Federal levou manifestantes às ruas em várias cidades do país, incluindo Florianópolis, num movimento sem precedentes chamado de Primavera Feminista.

É de autoria de Eduardo Cunha, mas tem o aval de uma bancada com sede de exterminar direitos humanos. Eles são em sua maioria cristãos que falam em nome de um Deus, mas abortam direitos das mulheres enquanto defendem uma vida abstrata. Como bem afirmou a filósofa Márcia Tiburi: “aborta-se as mulheres para que elas não abortem”,  em audiência pública interativa no Senado Federal,  em setembro do ano passado, que discutiu a interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana de gestação pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Já foram cinco audiências desde o início do ano passado, a última ocorreu em abril deste ano. Dificilmente a sugestão, que recebeu mais de 20 mil assinaturas, deverá alcançar o status de projeto de lei, a tirar pelo relator, o senador Magno Malta (PR) que se intitula “defensor da vida” (do feto).

O aborto é considerado crime no Brasil pelo Código Penal, elaborado na década de 40, não sendo criminalizado nos casos de gravidez de risco ou violência sexual. Graças a uma decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2012, passou a ser aceito também em diagnóstico de anencefalia fetal.

Depois de quase 50 anos, o direito previsto no código penal foi reconhecido com o lançamento da Norma Técnica “Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescente”, em 1999. Atualizada em 2005 e 2011, a norma deixa claro que o único documento necessário para a interrupção da gravidez decorrente de estupro é o relato por escrito da vítima. Porém, o PL muda o atendimento, exigindo uma comprovação do crime – o exame de corpo de delito -, para que mais uma vez, ela tenha seu corpo e dignidade violados. A exigência também fere o direito das vítimas de decidir pela denúncia à polícia, contribuindo para a desistência delas na busca pelo serviço legal. Levando em consideração que a grande maioria dos estupros no país é cometida por familiares ou conhecidos da vítima, a obrigatoriedade da denúncia seria mais uma barreira para o acesso aos direitos historicamente negados.

Segundo a Norma, caso a mulher demore a procurar o serviço de atendimento, e a pílula do dia seguinte não tenha mais eficácia, é informada sobre o seu direito à interrupção da gravidez. O projeto propõe que as informações sejam sonegadas ao excluir da Lei Nº 12.845 de 2013 a obrigatoriedade do profissional de saúde de falar à vítima sobre seus direitos, sobretudo à pílula do dia seguinte e ao aborto legal e gratuito pelo SUS. O silenciamento é o que querem eles, para que as vítimas não saibam que podem se prevenir da gravidez resultante de uma violência ou decidir por não mantê-la. Porque para esses legisladores, padres e pastores informar é induzir.

Com o argumento de que as mulheres mentem, inventam que foram estupradas para terem acesso ao aborto legal, são eles próprios, os defensores do projeto, que buscam caminhos, juntando no mesmo pacote criminalização e atendimento à vítima de violência, para driblar a lei e colocá-las no lugar de criminosas. Em suma, o PL de Cunha e da comunidade cristã que o respalda busca a ampliação da criminalização do aborto, até mesmo nos casos em que a escolha é um direito.

Caso seja aprovado em plenário, o futuro é de policiamento amplificado nos hospitais públicos e na sociedade como um todo. O profissional de saúde, que em seu exercício profissional e ético, orientar ou tirar a dúvida de qualquer paciente sobre o aborto pode ser condenado a cinco anos de prisão. No uso de sua liberdade de expressão, a mulher também pode ser condenada por manifestar-se favoravelmente à descriminalização do aborto. Caso uma mulher divida com sua colega uma experiência de clandestinidade “bem sucedida”, também pode ser considerada criminosa.

Todos que defendem esse projeto se orgulham em dizer que a maioria da população brasileira é contrária ao aborto, mas omitem a informação de que também a maioria já conheceu uma mulher que o praticou e não gostaria de vê-la na prisão. Isso porque há uma distorção no debate que propõe a cisão entre quem é favorável e quem é contrário. Ninguém defende que mulheres abortem. E nem aquelas que optam por interromper a gravidez o fazem porque deliberadamente “querem”. Existe dor, solidão, julgamento. Se todos são contra o aborto, a questão é “como resolver o problema, tratando-o como uma questão de saúde pública, ou criminalizando a mulher?”, como questionou o médico obstetra Olímpio Barbosa Moraes, também em audiência pública no Senado.

A defesa pela descriminalização e legalização é para que a mulher nesse momento difícil possa ser acolhida e receber um atendimento digno no hospital público, conforme propõem os principais tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, e a Organização Mundial de Saúde (OMS). Os países mais desenvolvidos entendem o aborto como uma questão de direito reprodutivo e de saúde pública, não de moral ou cárcere. O direito à interrupção da gravidez refere-se ao exercício da autonomia e cidadania de mulheres comuns que merecem ter sua decisão e integridades física e moral respeitadas.

Cerca de 800 mil mulheres recorrem ao aborto clandestino no Brasil todos os anos. Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto realizada pela cientista Débora Diniz, em 2010, uma em cada cinco mulheres já praticou aborto até os 40 anos de idade. Quase oito milhões de mulheres, entre 18 e 39 anos, já abortaram em algum momento da vida. A maioria casada e com filhos.  Deveriam elas estar no sistema penal brasileiro?

Católicas abortam, evangélicas também. É a vida concreta que se sobressai às falácias, ao moralismo e à doutrinação. Carregam a cruz e morrem nela pregadas as mulheres pobres e negras, aquelas que não podem viajar aos “países de primeiro mundo” ou pagar por uma clínica ou medicamentos aqui mesmo. Quem tem uma situação econômica confortável sequer responde a processos judiciais.

É preciso falar sobre a criminalização que acentua e promove a discriminação social e étnica num debate ético com a sociedade. O conveniente silêncio, resguardado pela hipocrisia social, não impede que as mulheres continuem a sangrar. Não é somente pelas 200 mortes evitáveis por ano, lutamos para que não haja morte em vida daquilo que é fundamental a qualquer pessoa: sua dignidade humana.

Publicado originalmente em Desacato como “As mulheres sangram e as ruas gritam contra a hipocrisia”, o artigo foi atualizado.

 

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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