“Mãe, o que é aborto?”, perguntou Camila* aos oito anos, depois de assistir a uma notícia sobre o tema na televisão. A mãe tentou explicar e revelou que já tinha feito um. “Não conta pra ninguém, tá?”, certificou-se ela ao fim da conversa. Camila tem uma memória como poucas pessoas. Ela lembra-se de que aos quatro anos viu sua mãe desmaiada ao lado de uma poça de sangue no banheiro. Foi nesse dia que a mulher enterrou o feto com a ajuda da irmã no quintal da casa. Aos 29 anos de idade, a jovem recebeu a visita da mãe:
_ Camila, é verdade que você já fez um aborto?
_ Sim, mãe. Eu fiz.
_ Minha filha, eu sei o que você passou.

As duas se abraçaram por alguns segundos e choraram juntas. Depois da revelação, mãe e filha nunca mais tocaram no assunto. O silêncio sobre o aborto é muito comum, não somente pelo tabu que representa. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outro o provoque pode levar a mulher que o praticou a três anos de prisão. Mais comum ainda é a sua prática que perpassa gerações: no Brasil, uma em cada cinco mulheres já realizou pelo menos um aborto até os 40 anos, como indica a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), realizada em 2010 pela Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.

Elaborado na década de 40, o código penal não prevê pena para “aborto necessário”, quando a gravidez coloca em risco a vida da mulher, e “aborto de gravidez resultante de estupro”. Em 2012, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) tornou possível a interrupção também em caso de diagnóstico de anencefalia fetal. Acontece que, até mesmo nesses casos, seu acesso é dificultado – conforme o estudo “Serviços de aborto legal no Brasil” publicado neste ano também pela Anis e reportagem recente do Diário Catarinense- demonstrando que o estigma ultrapassa a esfera da legalidade.

Bem diferente do perfil que figura no imaginário social, a mulher que aborta no Brasil, assim como Camila e sua mãe, é casada, religiosa, tem filhos e costuma carregar sozinha o peso de sua decisão. Quando optam por interromper a gravidez num país com leis restritivas como o Brasil, as clandestinas não só cometem um crime, como colocam em risco a integridade física e a própria vida. Sobre essa experiência solitária falam quatro mulheres entrevistadas por Catarinas. Suas identidades foram preservadas para que não sejam perseguidas como criminosas.

Mesmo sem direito à interrupção legal e segura, elas tomaram decisões. Suas histórias colocam a vida real acima de debates simplistas e trazem à tona a necessidade de discutir os direitos à autonomia, à saúde, à vida e à dignidade humana, previstos nos principais tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, e também na Constituição Federal. Romper o silêncio é o primeiro passo para um debate ético sobre o aborto no Brasil.

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Pós-aborto: terceiro procedimento mais realizado pelo SUS
No último ano, cerca de 200 mil mulheres foram internadas em função de complicações relacionadas ao aborto no Brasil, gerando um custo de mais de R$ 35 milhões, segundo o DataSUS, banco de dados do Ministério da Saúde. Menos de 25% dessas mulheres se declararam brancas e mais de 70% têm idades entre 20 a 39 anos. Santa Catarina contabilizou mais de 6 mil internações, apenas 5% delas para aspiração a vácuo, também conhecida como Aspiração Manual Intra-Uterina (Amiu) e o restante para curetagem pós-abortamento, seguindo a média nacional.

Apesar de considerada obsoleta pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a curetagem foi o terceiro procedimento mais realizado pelo SUS de 2014 até 2016, com 438,8 mil cirurgias, atrás apenas do parto cesariano, com 1,5 milhão, e do tratamento com cirurgias múltiplas, com 442,1 mil. “A sociedade paga um preço alto por essas internações. Sem falar nas sequelas e mortes que não aconteceriam se houvesse acesso aos procedimentos médicos”, afirma a primeira estudiosa brasileira a pesquisar o aborto inseguro, Hildete Pereira de Melo, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Segundo a especialista, a média de internações por complicações de aborto clandestino no Brasil é de dois a três dias, enquanto nos países onde é permitido, o atendimento dura até quatro horas e a mulher só volta ao hospital para avaliar se há necessidade de esvaziamento do útero. “A criminalização faz com que um procedimento tão simples permaneça com esse peso na nossa sociedade que se julga dona do corpo da mulher”, afirma.

Halana Faria, ginecologista e integrante do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, alerta que a raspagem do útero com a cureta, feita no procedimento da curetagem, traz sérios riscos à saúde da mulher. Segundo ela, a técnica do esvaziamento a vácuo além de mais segura é menos dolorosa e, dependendo do período de gravidez, requer somente anestesia local. “Há riscos de perfuração do útero, sinéquias, infecção, perda de sangue e infertilidade. A recuperação também é mais demorada. Fico impressionada que um procedimento tão simples como a Amiu seja tão subutilizado”, afirma.

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Submundo produz sub-registro
Com os dados apontados pela PNA é possível estimar que 7.4 milhões de mulheres com idade entre 18 e 39 anos já interromperam a gravidez em algum momento da vida. O submundo da clandestinidade, porém, não permite saber quantos abortos são realizados todos os anos no país, assim como o número de mulheres que morrem ou ficam com sequelas. De acordo com Suzana Cavenaghi, demógrafa da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, o número de aborto provocado pode ser muito maior do que apontam as pesquisas, já que as pessoas temem responder “sim” a uma prática que, além de estigmatizada, é crime. Por dificuldades similares, é comum também o sub-registro no banco de dados do SUS, o DataSUS – única fonte direta – especialmente quando se trata de sequelas como infertilidade e outras morbidades. “Não é possível nem mesmo afirmar com exatidão qual posição o aborto ocupa nas causas de mortalidade materna, pois além de falhas no registro, o cálculo é realizado de maneira indireta por modelo sobre o número de mortes relacionadas ao parto e puerpério”, destaca.

Prêmio Nobel de Medicina para as brasileiras
Graças a um comprimido usado para tratar úlceras, as mulheres brasileiras passaram a ter acesso a uma solução menos insegura no abortamento. O medicamento é usado nos hospitais para a interrupção legal e induzimento do parto. Mais do que tratar úlceras, o Misoprostol vem salvando a vida de mulheres pobres desde a sua chegada ao Brasil, no final da década de 80. Aos poucos, as clandestinas abandonaram objetos perfurantes, como cabos de guarda chuva, arame, sonda com ácido, agulhas e eventos provocados, como quedas de escadas. O médico obstetra Olímpio Barbosa Moraes, diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), em Recife, diz que o aborto já foi a segunda causa de morte entre as mulheres atendidas na maternidade.

“O medicamento fez pelas mulheres do Brasil muito mais que qualquer política pública”, afirma ele, que é ex-diretor da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). Segundo Olímpio, com a ajuda de farmacêuticos, as brasileiras descobriram que o medicamento era contraindicado na gravidez porque poderia provocar aborto e a notícia se espalhou pelo mundo. O Brasil é um dos poucos países que proíbem a comercialização do medicamento na farmácia.

“Ninguém conhecia o uso do Misoprostol em obstetrícia. Hoje, o mundo todo usa o medicamento tanto para indução do aborto quanto para antecipação do parto. As pobres do Brasil merecem o Prêmio Nobel de Medicina, evitaram a morte de cinco milhões de mulheres no mundo”, afirma.

Cerca de metade das mulheres que fizeram aborto utilizaram algum tipo de medicamento para induzi-lo, conforme indica a PNA. “Os abortos ilegais realizados com medicamentos tendem a ser mais seguros que os que utilizam outros meios, em particular quando o medicamento usado é o Misoprostol”, aponta o estudo. No site do Ministério da Saúde, o documento “Protocolo Uso do Misoprostol em Obstetrícia”, voltado a profissionais de saúde, orienta como realizar procedimentos de aborto ou parto induzido; e qual a quantidade de comprido para cada caso de acordo com o tempo de gestação. Os efeitos esperados do uso são sangramento e cólicas mais fortes do que uma menstruação normal. Ainda que o medicamento tenha diminuído a insegurança no abortamento, ele ainda é uma realidade distante de mulheres mais pobres, como acredita a pesquisadora da Anis, Débora Diniz.

“O abortamento ilegal, porém seguro, existe no Brasil. Mas é restrito a quem pode pagar por ele, seja em clínicas bem equipadas, seja tendo acesso a um medicamento no mercado ilegal, com a segurança de que não seja adulterado ou falsificado”, afirma a estudiosa.

Organizações espalhadas pelo mundo, como a Women Help Women, sediada em Portugal, e a Socorristas em Red, na Argentina, prestam orientações de como fazer um aborto medicamentoso (e seguro) para mulheres que vivem em países onde a prática é proibida. “Toda mulher deveria poder orientar outra sobre como fazer isso de forma segura”, pontua a médica Halana.

Vale notar que o uso de artefatos caseiros para interromper a gravidez ainda persiste entre as classes mais pobres, cujo acesso ao medicamento é mais difícil. Conforme relato de uma obstetra que não quis se identificar, há cerca de dois anos uma mulher buscou socorro na emergência do Hospital Regional de São José com uma perfuração no útero causada pela introdução de uma tesoura.

Entre o hospital e o cárcere
Um estudo realizado em 2014 em 22 unidades da federação revelou que as denúncias que levaram a prisões de mulheres pelo crime de aborto partiram de hospitais: feitas por médicos que quebraram o sigilo e informaram a polícia. Mesmo que a prática do aborto seja frequente, não há dados nacionais sobre esse tipo de ocorrência no Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Nos Tribunais de Santa Catarina, a maioria dos processos relacionados ao crime tramita em segredo de justiça e não há levantamento no estado que ajude a mapear de onde partiu a acusação.

Ainda que não ocorra a denúncia, é comum a punição da mulher “criminosa” por meio de negligência, demora e humilhação no atendimento. “Olha só o que você fez!”, disse, segurando os restos do abortamento, o profissional de saúde à paciente, conforme relatos na pesquisa “Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado”, realizada pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o Serviço Social do Comércio (SESC), em 2010. O estudo apontou que mais de 50% das mulheres que declararam ter provocado aborto e procuraram os hospitais sofreram algum tipo de violência no atendimento.

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Quando o médico é polícia
Em fevereiro do ano passado, J., de 19 anos, após tomar remédio para abortar procurou atendimento e foi denunciada pelo médico. A jovem ficou detida no hospital, vigiada pelos policiais, e foi liberada depois de pagar fiança de R$ 1 mil no dia seguinte. Depois da denúncia, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) abriu uma sindicância para apurar o caso.

A ginecologista Halana, mulher branca, também denunciou recentemente a conduta de um médico ao Ministério Público de São Paulo. Ela foi vítima de policiamento quando buscou socorro em um hospital, em São Paulo, para tratar um abortamento espontâneo. “Eu estava super fragilizada, me identifiquei como colega de profissão e, mesmo assim, o médico ficou procurando material no meu útero. É muita frieza, falta de preparo e até de empatia para lidar com uma pessoa em situação de sofrimento”, afirmou.

Punição em hospital de Florianópolis
A doula Laura*, 30 anos, mulher branca, sabe o que é ser punida mesmo que não tenha se tornado um caso de polícia. Ela sangrava muito quando procurou a Maternidade Carmela Dutra, em Florianópolis, com a pequena Sofia no colo. Relata que não havia ninguém para ser atendido no seu lugar e cada novo paciente era chamado na sua frente.

“Depois de horas de espera, com a cria e a calça toda cheia de sangue peguei uma carona e fui à delegacia denunciar a falta de atendimento. Estava aos prantos já”, relembra.

Passava da uma da madrugada quando a doula saiu do hospital para denunciar o caso na delegacia. Laura voltou para o atendimento numa viatura depois que a delegada ligou para questionar o motivo da demora e recebeu como resposta que a mulher seria a próxima da “fila”. “Durante todo o tempo, a médica me perguntou se eu tinha feito o aborto e me ironizou. Ela deveria ter me atendido com respeito”, afirma.

Laura provocou o aborto, mas poderia ter sofrido um espontaneamente, como acontece, em média, com 15% das gestantes brasileiras, conforme indicou Pesquisa Nacional de Saúde, realizada em 2013 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde.

Denúncia é “eticamente inaceitável”
clair“É eticamente inaceitável que um profissional de saúde julgue uma mulher que chega ao serviço com o aborto em andamento. O juízo de valor tem que ser guardado para si. O profissional só tem que atender, para isso que ele está lá”, afirma Clair Castilhos, secretária executiva da Rede Feminista de Saúde.

A criminalização do aborto é eficaz para violar os direitos das mulheres muito antes da punição formal pelo sistema de justiça, como analisa a pesquisadora Débora Diniz. “As mulheres são punidas ao serem submetidas à gravidez compulsória, punidas ao serem empurradas à clandestinidade, muitas vezes punidas com graves sequelas à saúde ou a morte em procedimentos inseguros. Não é preciso haver a prisão para que as mulheres sejam violentadas pela lei.”

No Código de Ética da Medicina, diante de um abortamento, seja ele natural ou provocado, médicxs são proibidxs de comunicar o fato à polícia ou à Justiça. “Nós seguimos princípios bioéticos como a beneficência, justiça e autonomia. O sigilo só pode ser quebrado para beneficiar a paciente, nunca para prejudicar”, afirma o obstetra Olímpio. O médico explica que não é possível saber num primeiro momento se a interrupção foi provocada, só depois com a avaliação se houver lesão no útero ou vagina, ou mesmo infecção – raras em casos de aborto espontâneo – ou restos de comprimido abortivo na vagina.

Denunciar é crime
A lei está do lado de Laura, como explica Maria Cecília Heckrath, coordenadora do “Comitê de Violência Doméstica, Sexual e outras Violências”, articulado pela Secretaria de Estado da Saúde. Segundo ela, não cabe aos profissionais do SUS indagarem a paciente.

“Segundo os princípios do SUS, o sistema de saúde não tem o direito de julgar. Precisamos intervir se determinado hospital faz policiamento ou julgamento como prática institucional. Qualquer tipo de discriminação deve ser denunciada como violência obstétrica e institucional”, enfatiza.

O Ministério de Saúde tenta reverter o que chama de “atendimento desumanizado” nos hospitais próprios e privados que mantém convênio com o SUS. Na Norma Técnica “Atenção Humanizada ao Abortamento”, lançada em 2004 e aprimorada em 2011, informa que o sigilo na prática profissional da assistência à saúde é um dever legal e ético. Denunciar a paciente à autoridade policial, judicial, ou ao Ministério Público, além de ferir o código de ética médica, viola a constituição federal e é um crime previsto no artigo 154 do código penal. “O não cumprimento da norma legal pode ensejar procedimento criminal, civil e ético-profissional contra quem revelou a informação, respondendo por todos os danos causados à mulher”, diz o texto.

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Promotor defende denúncia nos hospitais
Contrariando o que diz a Norma Técnica do MS, Jadel da Silva, coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal (CCR) do MPSC, defende que os profissionais de saúde denunciem a paciente à polícia em situação de suspeita de aborto. “Caso não denuncie, o profissional estará acobertando um crime,” diz. Jadel explica, entretanto, que o flagrante só se configura com a prisão no momento da realização da interrupção, como por exemplo em casos de descobertas de clínicas clandestinas. Como a pena fixada para o crime é de até três anos para a mulher que praticou ou consentiu, geralmente a privação de liberdade é substituída por restrição de direitos.“Para esse tipo de conduta, o código penal prevê penas brandas de até três anos, as quais não autorizam a condenação em prisão. As condenadas cumprem pena em regime aberto que pode incluir prestação de determinados serviços à comunidade, conforme critério do juiz”, detalha o promotor.

Ainda que a ré seja absolvida em primeira instância, a maioria dxs promotorx do estado recorre da decisão, como assinala o coordenador. “A concepção legalista é bem marcante na promotoria. Os fatores ideológicos interferem na interpretação da lei pelo promotor, que em geral é um sujeito conservador e, muitas vezes, até acrítico”, afirma.

Sobre a criminalização, o promotor posiciona-se:

“…é seletiva e simbólica, serve apenas para atender uma exigência religiosa e conservadora da sociedade. A prática do aborto revela a inoperância e ineficácia da criminalização, que sequer chega às camadas mais altas, cujos casos são mantidos em sigilo. Essas pessoas se blindam, se valem de outros países e mecanismos que a grande maioria não tem acesso.”

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Para delegada denúncia é compulsória
Para Patrícia Zimmermann D’Ávila, coordenadora das Delegacias de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso (Dpcami), mesmo que as prisões não sejam tão frequentes, a criminalização é concreta. “A mulher que provoca aborto é considerada uma criminosa pela lei. Mulheres, médicxs e outros envolvidxs nos crimes contra a vida são indicados e julgados”, assegura.

A delegada acredita que os casos de suspeita de aborto devem ser notificados de forma compulsória pelo profissional de saúde. Ela destaca que dificilmente uma mulher de classe social elevada é denunciada. “Mulheres ricas acessam clínicas particulares. As denunciadas, em sua grande maioria, são mulheres pobres”, assegura.

Peso da criminalização para mulheres negras
Cristiane Mare da Silva, da União de Negros pela Igualdade (Unegro), lembra que a criminalização é ainda mais pesada para as mulheres negras tanto na porta do cárcere quanto no hospital. “Se as mulheres afrodescendentes já são as maiores vítimas de violência obstétrica na hora do parto imagine em um processo de ilegalidade, como o aborto”, propõe a reflexão. Para ela, ao criminalizar o aborto o Estado trata a questão como privada, como se fosse um problema das mulheres e não de políticas públicas.

“Quando o Estado criminaliza, tapas os olhos para uma questão que lhe diz respeito: a morte dessas mulheres. Sem falar nas cicatrizes psíquicas, fico pensando quando serão superadas? As clandestinas precisam saber que não estão sozinhas. Elas precisam tirar esse fardo das costas”, defende Cristiane.

Lógica da cultura do estupro
O aborto é uma realidade do universo feminino, entretanto a condição econômica determina o que vai acontecer à mulher, como pondera a advogada Daniela Felix do Coletivo Catarina de Advocacia Popular. A criminalização, como afirma, é uma “política violenta” de controle do corpo das mulheres pelo Estado. “Mulheres que não chegaram a um patamar mínimo de garantias de direitos recebem como resposta o sistema criminal. Trata-se de uma criminalização seletiva por amostragem que acaba por infelicidade no próprio sistema de saúde. Uma falácia do campo jurídico sobre corpos de mulheres pobres e negras”, analisa.

Sônia Correa, coordenadora do Sexuality Policy Watch (Observatório de Sexualidade e Política), acredita que a lógica do estupro é a mesma da criminalização do aborto. “A criminalização faz parte de um sistema organizado para que mulheres não tenham autonomia para decidir sobre seus corpos. O Estado estabelece regras no âmbito da reprodução, as quais evidenciam que a mulher não é dona de si”, afirma.

Belas, recatadas e do lar também abortam
O estudo “Práticas proibidas: práticas costumeiras de aborto e infanticídio no século 20”,  coordenado por Joana Maria Pedro, professora do Departamento de História da UFSC, revelou que mulheres catarinenses trocavam entre si informações sobre os métodos, muitas vezes ineficazes, a que recorriam quando a menstruação atrasava.

“Nas décadas anteriores à difusão da pílula, era comum a transmissão desses conhecimentos entre as casadas. Rachar lenha, jogar-se da escada, arrastar guarda-roupa, introduzir agulha de tricô e varão de guarda chuva no útero, tomar chás e até comer cinza eram os ‘métodos’ utilizados”, afirma a pesquisadora.

Em “Mulheres Honestas e Mulheres Faladas uma Questão de Classe”, que também virou livro, Joana estudou a construção de dois perfis distintos de mulheres da então Desterro dos séculos 19 e 20. O aborto estava entre as práticas que constituíam o imaginário sobre as “faladas”. Ainda que com outras roupagens, a categoria ainda serve para desqualificar aquelas que optam pela interrupção. “Há um consenso equivocado de que as mulheres que fazem aborto são jovens, inconsequentes e permissivas. Isso é uma desonestidade intelectual”, acredita a professora.

Para a pesquisadora, a manutenção da criminalização defendida por setores conservadores da sociedade antes de ser uma questão de ordem religiosa, trata-se de biopoder: “Espiritualidade passa por outro percurso. Isso não é religião, é política, é poder, é controle do corpo pelo Estado”, critica.

Discussão pautada por dogmas
Enquanto que para religiosos, a decisão pela interrupção da gravidez é um crime equivalente ao homicídio, ou até de maior gravidade por se tratar de um sujeito inofensivo, para feministas e especialistas em direitos humanos, é uma questão de autonomia e de saúde pública. Sob os dois pontos de vistas conflitantes foram travadas as cinco audiências públicas interativas, no Senado Federal, em que especialistas e religiosos discutiram a regulação da interrupção da gravidez até a décima segunda semana de gestação pelo SUS.

Conforme Angela Freitas da Frente Nacional, os debates que iniciaram no ano passado, têm sido uma oportunidade para “descortinar os contrastes entre o discurso e a realidade”. Porém, dificilmente a sugestão se transformará em projeto de lei, a tirar pelo relator, o senador, Magno Malta (PR), que se intitula “defensor da vida” (do feto). “De um lado estavam discursos baseados em princípios da democracia e em estudos científicos. De outro, a prevalência do marco fundamentalista-religioso e do apelo emocional, colocando sobre a mesa dados não comprovados e desligados da realidade brasileira. Uma realidade em que as mulheres abortam. A criminalização só tem alimentado a hipocrisia, pois as pessoas que se dizem contra o aborto, recorrem ao aborto”, afirma a ativista.

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Principal reivindicação das mulheres
Ao recomendar a revisão da legislação nos países com leis restritivas, a Conferência Mundial sobre a Mulher (CMM), realizada em 1995, em Beijing, representou um marco para o reconhecimento da autonomia das mulheres e afirmação do aborto inseguro como questão de saúde pública. A representante da Rede Feminista de Saúde, Clair Castilhos, participou do encontro histórico que resultou na chamada “Declaração e Plataforma de Ação de Pequim”.

Para ela, o direito à interrupção da gravidez é, depois da conquista do voto, a principal reivindicação do movimento feminista. “É central na questão da autonomia ao próprio corpo. Até a possibilidade de decidir sobre questões de foro íntimo nos foi tirada. É a mulher quem sabe se pode ou não ter filhxs, se quer ou não ter e quais são as condições de amar aquelx filhx”, afirma.

Integrante do movimento sanitarista que deu origem ao SUS e primeira vereadora mulher de Florianópolis, ela acredita que a mudança virá pela atuação dos movimentos, nos conselhos de saúde e de direitos das mulheres. “Precisamos exigir que poderes e governos cumpram o acesso aos permissivos legais e que avancem no atendimento à saúde da mulher como um todo. Não se diminui números de aborto por meio de restrição, só com prevenção de gravidez indesejada e serviços de saúde que funcionem”, assegura.

Direito ao aborto é empoderamento feminino
Recentemente, um relatório dirigido ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, reafirmou que a criminalização só leva mulheres a buscarem soluções inseguras. “O empoderamento feminino está intrinsecamente ligado à capacidade de as mulheres controlarem suas vidas reprodutivas”, dizem os especialistas no texto. Conforme estudo publicado em maio deste ano pela organização e Instituto Guttmacher, as taxas de aborto diminuíram desde 1990 somente nos países onde é legal – redução de 40%. Por esses e outros motivos a OMS defende o abortamento seguro. Para a organização, o advento da pílula anticoncepcional reduziu a quantidade de gravidezes não desejadas, porém não eliminou a necessidade do acesso a um abortamento seguro: a cada ano 33 milhões de mulheres engravidam no mundo mesmo fazendo uso de contraceptivo.

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Brasil parou no tempo
Sônia Corrêa lembra que em 1940 quando na maior parte dos países da região o aborto era aceito apenas no caso de risco de morte para a mulher, o Brasil elaborou um Código Penal adiantado para a época com o permissivo legal também nos casos de estupro. Entretanto, enquanto a legislação nos outros países avançou, o Brasil parou no tempo. A única mudança decorreu na decisão do STF em 2012 no caso de anencefalia. “O consenso global é o direito e acesso ao aborto por demanda das mulheres até 12 semanas. Em geral, o aborto nos casos de risco de vida pode ser feito até muito mais tarde. Mas há países que autorizam abortos bem mais tardios, sob condições específicas, como em estupros”, esclarece a pesquisadora.

Conforme a estudiosa, projetos em tramitação no congresso nacional buscam barrar os três permissivos existentes. Outros se valem de manobras para dificultar o acesso ao aborto legal em caso de estupro, como o PL 5.069 de 2013, do ex-deputado federal Eduardo Cunha (PMDB/RJ). “Corremos o risco de andar para trás, se propostas legislativas em debate no Congresso forem aprovadas, como é o caso, mais especialmente do Estatuto do Nascituro, ou da Emenda Constitucional de Defesa dos Direitos à vida desde a Concepção”, afirma a feminista.

Nesse cenário, Sonia destaca como positiva a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) apresentada ao STF pela Anis e Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep) que busca garantir os direitos de planejamento reprodutivo e proteção social, incluindo a interrupção da gestação às mulheres afetadas pelo vírus Zika. “A ação constituiu um passo muito importante ao incluir a demanda pelo direito das mulheres de optar pela interrupção da gestação para proteção de sua saúde mental”, afirma a pesquisadora. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, enviou parecer favorável à autorização do aborto nesses casos. A previsão é que o julgamento ocorra ainda neste ano.

Contra ou a favor?
Tão simplista quanto reduzir a questão do aborto ao debate “contra ou a favor” é responder “sou contra”, como acredita Débora Diniz. “A pergunta só confunde o debate, porque nada diz sobre práticas. A pergunta que deve ser feita é: quantas mulheres fazem aborto ilegal no Brasil? Aí sim temos a magnitude do problema”, diz a pesquisadora.

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Quando uma pessoa diz “sou contra o aborto”, ela está em geral apenas recorrendo a uma resposta “simples e melhor aceita socialmente”. É o que acredita a professora Flávia de Mattos Motta do Laboratório de Relações de Gênero e Família (LabGeF) da Udesc. “Não quer dizer que a pessoa não admita o aborto em certas circunstâncias, não tenha feito um, não tenha participado ou ajudado alguém na prática, ou mesmo que não vá fazer um dia”, pondera.

Autora do livro “Sonoro Silêncio: história e etnografia do aborto”, Flávia estudou como a prática passou a ser vista e vivenciada por mulheres de uma comunidade periférica de Florianópolis, com o advento do Misoprostol.

“O fato é que as mulheres, independente de serem contra ou a favor, recorrem ao aborto numa escolha difícil, delicada que exige toda uma negociação ética interna e, na maioria das vezes, solitária e sempre secreta. A elaboração posterior é também complexa e cheia de contradições”, afirma.

A pesquisadora conta que ao final de cada relato das mulheres, era comum ouvir a mesma frase usada pela mãe da entrevistada Camila ao compartilhar a experiência com a filha: “não conta pra ninguém, tá?”. A essa sentença recorrem tantas brasileiras para quebrar momentaneamente o silêncio. E ainda que silenciem por completo, suas histórias não podem ser sonegadas: estão inscritas em cada mulher que se recuse a levar adiante uma gravidez não desejada. Elas são muitas. Somos muitas.

 

 

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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