A maior parte das denúncias é feita pelos próprios profissionais de saúde. Saiba como se proteger da falta de ética médica.

Em 2013, Catarina tinha 31 anos e estava divorciada há dois. Durante um relacionamento curto, ela descobriu uma gravidez de seis semanas. Ao contar para o então parceiro, ele a abandonou e, assim, começou o seu pesadelo, que duraria ainda muitos anos.

Católica e mãe de uma criança e de uma adolescente, Catarina passava por inúmeras dificuldades financeiras e não sabia como seria possível ter mais um filho naquela situação. Sozinha, sem contar para a família e sem encontrar solução, ela tomou a decisão mais difícil de sua vida: decidiu interromper a gestação.

Dois dias depois de ter feito o procedimento, ela sofreu uma queda de motocicleta, apresentou dores abdominais e sangramento vaginal, o que a levou a buscar a emergência médica de um hospital, no interior de Santa Catarina, onde vive. O que poderia ser tratado pelos profissionais de saúde como um acidente que resultou em aborto (pois foi verificado, em exame, que o colo do útero de Catarina estava aberto, com o produto de uma gestação de seis semanas), tornou-se um caso de polícia. A médica que a atendeu a ameaçou, dizendo que ela “poderia morrer” se não revelasse o que havia feito. Foi assim que conseguiu a confissão do uso do medicamento. Em seguida, a profissional de saúde, contrariando o Código de Ética Médica e seu juramento, pediu à enfermeira para chamar a polícia.

Catarina jamais imaginou que, do leito do hospital iria para o banco dos réus do Tribunal do Júri. Seu processo, a que o Portal Catarinas teve acesso, indica crime de quebra de sigilo médico por parte da médica e da enfermeira que a atenderam, e é repleto de erros e má conduta, tanto da gestão do hospital, da advogada contratada por ela, da promotora que ofereceu a denúncia e do juiz que dificultou sua defesa.

O procedimento de interrupção de uma gestação até 12 semanas com uso de medicamentos é muito seguro. O procedimento com misoprostol na quantidade adequada (12 comprimidos, de forma sublingual) é considerado mais seguro até mesmo que uma injeção de penicilina, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). No entanto, se for usada uma quantidade de medicamento inferior à necessária, é possível que o produto do aborto fique retido (não seja expelido), o que pode levar à necessidade de repetir o procedimento ou realizar uma Aspiração Manual Intrauterina (AMIU), disponível nos hospitais públicos.

No caso de Catarina, não foi esse o procedimento médico adotado. Ela foi internada e submetida a uma curetagem —procedimento invasivo de raspagem do colo do útero com um instrumento chamado cureta que, com a existência do AMIU, não tem sido mais recomendado por ser mais prejudicial à paciente. Depois disso, devido a um quadro de infecção percebido após a curetagem, de acordo com seu prontuário, precisou passar por cirurgias que a levaram a perder um ovário e uma trompa. 

Em depoimento colhido pelos policiais quando ainda estava no leito do hospital, como consta no processo, ela disse “que compreende que o que fez foi errado, mas naquela hora, diante de toda a situação, não viu outra alternativa. Que não possui advogado e não tem condições financeiras para pagar um. Tem muito medo de ser presa e destruir a vida de seus dois filhos e de sua mãe”.

O inquérito policial contra Catarina foi aberto, enviado ao Ministério Público, e acolhido por uma promotora que ofereceu a denúncia em 2015, dois anos depois do fato.

Durante os quatro anos seguintes, Catarina contratou uma advogada para fazer a sua defesa. No entanto, da mesma forma que a relação de confiança entre médica e paciente foi quebrada quando a médica a denunciou à polícia, a relação de confiança entre cliente e advogada jamais se estabeleceu no caso de Catarina.

De 2015 a 2019, a advogada contratada nada fez de efetivo por sua defesa. Na leitura do processo, chama a atenção o desinteresse e a falta de profissionalismo da advogada, que chegava a demorar mais de seis meses para responder às solicitações que eram feitas pelo juiz. Além disso, as manifestações sempre foram curtas e sem aprofundamento. Até janeiro de 2019, Catarina pagou honorários a uma pessoa que, efetivamente, não a estava defendendo.

Segundo Catarina, que conversou brevemente com a reportagem, a então advogada chegou a pedir R$ 18 mil para continuar no processo. Quando Catarina informou que não tinha esse dinheiro, a advogada renunciou a defesa, em fevereiro de 2019. A partir de então, ela passou a ser defendida por um advogado dativo, indicado pelo juiz. Este advogado tampouco chegou a entrar em contato com ela para explicar o andamento do processo. Após ter tentado recurso, que foi negado cerca de um ano e meio depois da troca de advogados, o segundo advogado também renunciou a sua defesa.

Em setembro de 2020, foi pronunciada pelo Tribunal do Júri – que é quando o juiz determina que ela deve ser julgada por um grupo de jurados. Com a renúncia do advogado, uma nova advogada dativa foi nomeada, em outubro de 2020.  

De acordo com o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, de 2015 a 2020, foram iniciadas 33 ações penais por crime de “Aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento”. Além destas, 12 inquéritos policiais estão em tramitação e podem ser denunciados pelo Ministério Público e virar ação penal. Já o Ministério Público informou que foram 47 as denúncias oferecidas de 2015 a 2020. Até 13 de setembro, quatro mulheres pronunciadas ao Tribunal do Júri aguardavam para serem levadas a julgamento popular.

O desdobramento do caso de Catarina, que terá seus detalhes omitidos para evitar a identificação das pessoas envolvidas, demonstra a situação de fragilidade imposta a uma pessoa que busca o serviço de saúde após um abortamento. O estigma sobre o aborto, os julgamentos morais e a falta de informação levam profissionais de saúde a abandonarem a ética, esquecerem seu juramento e a agirem ilegalmente, como juízes, realizando denúncias contra a paciente.

Ao mesmo tempo, o medo da criminalização leva a desfechos ruins para a vida de quem aborta: a demora em buscar atendimento é a principal razão do agravamento do quadro de saúde ou, até mesmo, da morte de quem passa por um aborto no Brasil.

Maior parte das denúncias de aborto provocado é feita por profissionais de saúde

Em 2013, quando Catarina procurou o atendimento de saúde, a médica plantonista que a atendeu não só quebrou o sigilo profissional ao pedir à enfermeira para ligar para a polícia, como levou outra profissional a cometer o mesmo crime.

De acordo com o relato de Catarina em interrogatório, a médica “a pressionou falando que colocaria um remédio nas veias e que se ela tivesse tomado algo para abortar, morreria na hora. Catarina disse que “imediatamente lembrou dos dois filhos que tem para criar. Que lembrou que se sua mãe soubesse, morreria. Que sabia que havia feito algo errado e se envergonhava muito do ocorrido. Que a polícia foi chamada e que ela pediu pelo amor de deus para que não a prendessem em flagrante, por causa de seu filho e sua mãe”.

Arte: Beatriz Lago.

A atitude da médica, não só pressionando, mas ameaçando e coagindo Catarina com tortura psicológica para que ela contasse se havia tomado algum medicamento para interromper a gestação é reveladora de como a ética médica é quebrada nos atendimentos de pessoas em processo de abortamento nos hospitais brasileiros.

A confiança e a boa relação entre médico/a e paciente, garantidas pela regra do sigilo médico, são essenciais na atividade médica, segundo Daniel Knabben Ortellado, presidente do Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina (CRM-SC). “O sigilo médico é um dos pilares da medicina. Desde a época de Hipócrates, o sigilo é muito importante. Tanto que no Código de Ética Médica, que é um Código que diz o que o médico pode fazer e o que o médico não pode fazer, tem um capítulo exclusivo, o 9, com sete artigos que falam exclusivamente sobre o sigilo profissional. Isso demonstra a importância do sigilo na atividade médica”, explica.

De acordo com Ana Rita Souza Prata, defensora pública de São Paulo, a maior parte das ações penais contra mulheres acusadas de provocarem um auto aborto, analisadas pela Defensoria Pública, desde 2017, são abertas após denúncias dos serviços de saúde ou de outros espaços, mas com contribuição do serviço de saúde.

“Nos dois casos há quebra do dever de sigilo que é posto a todos os profissionais de saúde e extensível a quem trabalha no serviço de saúde. A prova da prática de um aborto provocado vem desses serviços que deveriam cuidar das mulheres. A gente sabe que isso cria uma cultura que faz com que as mulheres se afastem ou não busquem os serviços e acabem morrendo, ou atrasem a busca e cheguem ao serviço numa condição de saúde muito mais agravada”, analisa a defensora.

De acordo com a legislação brasileira, o aborto é considerado crime, com exceção de três casos, conforme o artigo 128 do Código Penal (1940): “se não houver outra forma de salvar a vida da gestante (aborto necessário), ou “se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (Aborto no caso de gravidez resultante de estupro)”.

Em 2012, decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) diante da ADPF 54 considerou que também não é crime o aborto em casos de anencefalia fetal, ou seja, quando o feto não desenvolve o cérebro, condição que torna inviável sua vida fora do útero. Nos demais casos, o aborto é passível de punição, conforme os artigos 124, 125 e 126.

O art. 124 determina pena de detenção de 1 a 3 anos para quem “provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”. O art. 125 versa sobre o crime de “provocar aborto, sem o consentimento da gestante”, cuja pena é reclusão de 3 a 10 anos. Já o art. 126 se refere a “provocar aborto com consentimento da gestante”, e determina pena de reclusão de 1 a 4 anos.

A pena pela prática do aborto é agravada quando incorre em lesão corporal grave ou morte, conforme o art. 127: “As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte”.


Arte: Daniela Valenga.

Vanessa Fogaça Prateano, assessora jurídica do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Paraná, reitera que a maioria das mulheres criminalizadas por aborto no Brasil são aquelas que, ao buscarem atendimento médico devido à complicações de um aborto provocado, são denunciadas pela própria equipe de saúde. Esse cenário é evidenciado por estudos como os realizados pelas defensorias públicas do Rio de Janeiro e de São Paulo e por advogadas e pesquisadoras feministas. Há casos de mulheres a quem foi dada voz de prisão ainda no hospital, e que ficaram algemadas a uma maca, conforme reportamos nesta matéria.

“Acompanhei um caso em que a denúncia foi feita a um policial que estava no hospital para uma diligência. A mulher ainda estava sangrando e sentindo dores. Outro em que uma pessoa que trabalhava no hospital repassou a informação a um parente que atuava em uma delegacia, entre outros absurdos. Em minha pesquisa, tive contato ainda com uma situação em que o diretor do hospital repassou informações da mulher em uma entrevista ao vivo a uma emissora de TV, enquanto ela se encontrava em coma por conta de lacerações no útero causadas pelo procedimento”, relata Prateano, que também é pesquisadora a área de Criminologia Feminista no Núcleo de Criminologia e Política Criminal (NCPC/UFPR).

Arte: Beatriz Lago.

Para Mariana Prandini, advogada, pesquisadora e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), é preciso explicitar que, quando um/a profissional de saúde faz a denúncia, está se colocando na posição de quem julga, violentando e maltratando em função da possível causa do aborto. E esse não é o seu dever enquanto profissional de saúde. Além disso, o dano desse tipo de julgamento vai muito além da denúncia.

“Sabemos de pessoas que chegaram no pronto atendimento e foram maltratadas, passaram por retirada da placenta sem medicamento para a dor, foram mantidas no hospital por vários dias, sendo interrogadas por enfermeiros e assistentes sociais que perguntavam, questionavam se elas tinham induzido, o que tinham feito, o que tinham tomado. Isso porque quando chegam ao hospital, os profissionais suspeitam e acabam chamando polícia. Só que, ao fazer a denúncia, é o próprio profissional quem está violando o dever e, em última instância, cometendo um crime. Existe no próprio Código Penal o crime de violação de sigilo profissional”, argumenta Prandini.

Pelo menos 300 mulheres são criminalizadas por aborto por ano no Brasil

De acordo com levantamento feito por esta reportagem junto às Secretarias de Segurança Pública das 27 unidades da federação, considerando as 19 unidades federativas que responderam com dados, o Brasil registrou, em média, 300 boletins de ocorrência pelo crime de aborto por ano, entre os anos de 2015 e 2019. Em 2020, o levantamento foi feito considerando os meses de janeiro a agosto, por isso o número é parcial.

Oito estados não responderam com os dados. Rio Grande do Norte e Mato Grosso do Sul informaram que a Secretaria de Segurança Pública não dispõe dos dados. Amazonas, Rio de Janeiro, Roraima, Amapá, Maranhão e Alagoas não retornaram os nossos contatos.

No ranking, os estados com maior número absoluto de ocorrências registradas, somando todos os anos, foram: 1º São Paulo (512); 2º Rio Grande do Sul (203), 3º Minas Gerais (169); 4º Paraná (168); e 5º Santa Catarina (158).

De acordo com a legislação, as denúncias dos crimes registradas em Boletins de Ocorrência levam em conta todos os casos, isto é, tanto quando o aborto é provocado pela gestante com seu consentimento (Art. 124), quanto quando o aborto é provocado sem o consentimento da gestante (art. 125) e casos de aborto provocado em outrem com consentimento (Art. 126). Isto é, as pessoas criminalizadas não são somente as pessoas que interrompem a gestação, mas também aquelas que auxiliam no processo de abortamento ou que realizam um aborto sem o consentimento da gestante.

O levantamento está relacionado ao número de boletins de ocorrência relacionados ao crime de aborto registrados, por ano, em cada unidade da federação. A solicitação, enviada via assessoria e via LAI (Lei de Acesso à Informação), requeria os dados divididos por tipo penal, isto é, discriminados pelos artigos 124, 125, 126 e 127 — este último referente ao agravante por lesão corporal grave ou morte.

Embora tenhamos feito a solicitação dos dados discriminados, poucos estados retornaram com as especificações por tipo penal. Dez responderam com os números de denúncias referentes ao art. 124; cinco enviaram registros referentes ao art. 125; e sete enviaram especificando o art. 126.

Falta transparência e qualificação dos dados

São Paulo, por exemplo, registrou, respectivamente, 88 boletins de ocorrência por aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (art. 124), em 2015; 103 em 2016; 95 em 2017; 77 em 2018; 81 em 2019 e 38 até agosto de 2020. No total, dos 512 boletins registrados pelo Estado nos últimos seis anos, 482 são referentes a este artigo, isto é, em 94% das denúncias, a pessoa criminalizada foi a própria gestante que realiza o aborto ou permite que alguém realize. Os demais 40 registros são referentes ao Art. 126, que visa criminalizar pessoas que ajudaram a gestante a realizar o aborto.

Arte: Daniela Valenga.

De acordo com Ana Rita Souza Prata, defensora pública de São Paulo, a grande dificuldade de analisar esses números é que os dados não são qualificados. “A gente não tem segurança se esses dados são corretos, como é que eles classificam o tipo penal, se essa classificação se dá pelo relato da pessoa ou se há uma avaliação pela autoridade policial, então é muito difícil analisar. Tanto o Sistema de Segurança quanto o Sistema de Justiça não têm esse compromisso de qualificar os dados”, argumenta.

No caso de São Paulo, em que a Defensoria Pública faz o acompanhamento dos inquéritos e processos penais desde 2017, mesmo a Secretaria de Segurança disponibilizando os números, não se sabe como eles foram colhidos. “Então, eu não posso concluir que em 2020, até agosto, foram 42 denúncias de mulheres que praticaram aborto. Muitos ali podem ser boletins que a pessoa foi orientada a fazer para exercer o direito ao abortamento legal, ou pode ter sido a localização de um feto e a polícia lavra o BO por aborto, mas que não se sabe se, depois, na investigação, vai ser configurado como infanticídio ou pode ser que se descubra que foi um aborto natural”, explica.

A dificuldade de análise desses dados foi verificada pela Defensoria Pública de São Paulo em pesquisa realizada entre 2018 e 2019. Segundo dados da SSP/SP, foram registradas 77 denúncias pelo artigo 124 em São Paulo, em 2018. Porém, em resposta a um ofício encaminhado pela Defensoria para o Tribunal de Justiça de São Paulo, foram enviadas 16 ações penais sobre aborto. Destas, somente 6 eram de mulheres criminalizadas por auto aborto, as outras denúncias tinham origem em infanticídio, abortos praticados por terceiro — alguns decorrentes de violência doméstica — ou ainda em alvarás para abortamento em casos de má formação fetal.

Já em 2019, quando a SSP/SP registrou 81 boletins de ocorrência com o artigo 124, foram enviados 10 ações penais do TJ/SP, e nenhum deles era caso de auto aborto: três eram abortos praticados por terceiro e os demais eram alvarás para abortamento legal.

“Para além dos BOs, que a gente não sabe como são coletados e como são classificados o tipo penal, há uma grande peneira entre o BO, o inquérito e a ação penal. O acionamento do sistema penal, que começa com a polícia, é muito banalizado. A polícia não investiga tudo o que chega por falta de elementos e falta de contingente. Então, há muitos fatores para a gente considerar nessa peneira”, explica a defensora.

Prontuário médico usado como prova contra a paciente

Em Santa Catarina, que enviou somente os dados gerais, sem especificar o tipo penal, houve, nos últimos seis anos, ao menos 158 boletins de ocorrência relacionados ao aborto. Comparando com os dados disponibilizados pelo Ministério Público (MP/SC), 49 destes inquéritos se tornaram denúncias encaminhadas ao Tribunal de Justiça do estado, sendo 9, em 2015; 12 em 2016; 8 em 2017; 7 em 2018; 5 em 2019; 6 em 2020 e 2 em 2021.

Arte: Daniela Valenga.

O caso de Catarina, por exemplo, mesmo tendo ocorrido em 2013, foi acatado pelo Ministério Público em 2015, ano que iniciou o processo judicial. Diferente da maior parte das denúncias que acabam não se tornando processos criminais, Catarina não só teve o sigilo médico violado, mas também teve seu prontuário disponibilizado pela gestão do hospital para constar no inquérito policial. Mesmo estas provas sendo obtidas de forma ilegal, a promotora efetivou a denúncia e Catarina de paciente médica se tornou ré num processo criminal.

De acordo com o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, de 2015 a 2020, dos 51 inquéritos distribuídos, 39 foram encerrados sem evoluir para ação penal. Isso significa que ainda existem 12 inquéritos que podem ou não evoluir para ação penal, a depender do Ministério Público oferecer ou não a denúncia. Além destes, estão em tramitação 33 ações penais com o assunto “Aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento”.

O desamparo das denunciadas nos processos por aborto no Brasil

O perfil das mulheres criminalizadas por aborto no Brasil obedece à mesma regra de outros tipos de criminalização: geralmente são pessoas pobres, pretas ou pardas, sem acesso à educação e à saúde, que já têm filhos, vivem na periferia das cidades.

“A maioria dessas mulheres é pobre, mora em bairros afastados dos centros da cidade, em bairros humildes, provém de famílias carentes, e a maioria é preta ou parda. A grande parte é mãe, inclusive mãe de mais de uma criança, das quais geralmente é responsável sozinha, sem qualquer apoio do genitor”, enfatiza Vanessa Fogaça Prateano.

O contexto de vulnerabilidade social reflete também a forma como essas mulheres realizam os procedimentos de aborto. Diferente daquelas que possuem condições financeiras para realizar um aborto seguro, seja em casa com o auxílio de comprimidos, ou em clínicas clandestinas, as mulheres pobres fazem o procedimento frequentemente sozinhas, sem informação correta e, muitas vezes, são vítimas de golpes que as levam a utilizar medicamentos falsificados.

A vulnerabilidade também é evidenciada durante o processo de atendimento nos serviços de saúde e no processo criminal. Sem condições de contratar uma advogada de confiança, os processos contra elas geralmente são acompanhados por defensoras públicas ou advogadas dativas (quando não há defensoria pública na região), que o Estado indica e paga, como foi o caso de Catarina.

Arte: Beatriz Lago.

No entanto, de acordo com Luciana Boiteux, advogada, pesquisadora e professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), esse tipo de processo exige, minimamente, pessoas sensibilizadas para a questão. Como geralmente o processo é lento e corre em segredo de justiça, as investigadas muitas vezes não acompanham o seu andamento, nem sempre sabem quem são suas advogadas (quando o Estado indica), perdem o contato e a situação acaba se agravando.

“Nos casos de defesa de crime de aborto há muito preconceito, então o ideal é que as advogadas estejam sensibilizadas pela causa feminista. A advocacia feminista é muito importante porque vai conseguir trazer teses inovadoras para o casos, que podem gerar bons resultados. Uma advocacia feminista vai saber argumentar sobre a questão do sigilo profissional e vai poder dar um apoio no sentido de acionar uma rede de proteção, porque essa mulher também fica muito sensibilizada”, explica Boiteux.

A advogada também argumenta que nesse tipo de processo, as mulheres são vítimas do próprio Estado, que não lhe deu condições dignas de saúde e acolhimento.

“Nós entendemos essa mulher como vítima, mas o Estado a trata como criminosa. Por isso, usamos a argumentação, nos casos de Júri, de que a culpa é do Estado, pois a criminalização do aborto é que leva as mulheres a fazerem isso. A ilegalidade do aborto é que gera o crime. Essa mulher criminalizada é vítima da violação do sigilo e do desespero financeiro. Às vezes ela tem outros filhos e quer protege-los, está sozinha, o homem que a engravidou sumiu logo que ela descobriu que estava grávida, ela não tem apoio familiar ou de uma rede. Nesses casos, a mulher tem a defesa do estado de necessidade, que no direito penal é considerado como excludente de ilicitude”, explica.

Arte: Beatriz Lago

Quebra de sigilo médico pode levar à anulação das provas

Outra tese que advogadas e defensoras podem usar na defesa de mulheres criminalizadas é a ilicitude das provas obtidas por quebra de sigilo médico.

“Pode ser feito o pedido de nulidade das provas por ela ter sido ouvida no hospital sem advogada/o, que é ilegal, de ela ter sido denunciada pelo médico, que é ilegal, de terem sido enviado o prontuário sem ordem judicial, que é ilegal. Provas colhidas ilegalmente podem ser anuladas no processo”, explica Luciana Boiteux.

Ao acolher dois dos 30 pedidos de Habeas Corpus feitos pelo Núcleo Especializado de Proteção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), da Defensoria Pública de São Paulo, para trancamento de ações penais contra mulheres acusadas de praticar aborto, o Tribunal de Justiça de São Paulo considerou ilícitas as provas obtidas com violação de sigilo médico por profissional que denunciou caso de aborto.

A primeira decisão nesse sentido ocorreu em 2018, na 15ª Câmara de Direito Criminal. Por maioria de votos, o Tribunal trancou ação contra uma mulher de 21 anos que foi denunciada com base em relatos da própria médica que a atendeu em um hospital público. A segunda, de 21 de maio de 2021, foi tomada pela 12ª Câmara de Direito Criminal, cujo relator, desembargador Amable Lopez Soto, entendeu que é necessário que médicos respeitem o sigilo das informações do paciente.

De acordo com as alegações das defensoras públicas, “entender que o sigilo profissional não prevalece diante da persecução penal e que o médico tem o dever de noticiar a prática de crimes, mesmo contra o seu paciente, faria ruir por completo as normas constitucionais que protegem o direito à intimidade, o privilégio contra a autoincriminação e o direito à saúde”.

Arte: Beatriz Lago.

O “benefício” da suspensão condicional do processo em casos de aborto

Por se tratar de um crime doloso contra a vida, processos penais que envolvem o artigo 124 são submetidos a um Tribunal do Júri e vão a julgamento pelo Plenário do Júri. No entanto, a maior parte dos processos por aborto não chegam ao Plenário porque esse tipo de crime se enquadra naqueles em que pode ser ofertado o “benefício” da Lei 9.099 (art. 89), que prevê a suspensão condicional do processo.

“A suspensão condicional do processo, pela legislação, é um benefício, porque se a ré cumprir os requisitos, as condições no prazo de 2 anos, a ação penal é extinta e a pessoa não fica com nenhum antecedente. Caso e opte por não aceitar a suspensão condicional do processo, quando é ofertada, dá-se seguimento à ação penal até sair a decisão, num procedimento que vai a plenário de Júri”, explica a defensora pública Ana Rita Souza Prata.

Anne Teive, defensora pública de Santa Catarina, também explica que, como a pena prevista no artigo 124 é de 1 a 3 anos, “as rés têm direito à suspensão condicional do processo lá no início, que é um direito que se tem quando a ré ou o réu reúne os vários requisitos que a Lei Penal exige (como bons antecedentes e outros). Se ela cumprir as condições determinadas pelo juiz durante o período de prova (2 anos), o processo é arquivado”.

O “período de prova” exige o cumprimento de várias regras, que vão desde o pagamento de multa à proibição de sair da Comarca sem avisar o juiz, comparecimento mensal ou bimestralmente no Fórum para assinar um termo de que está presente, entre outras. Há casos de proibições de frequentar bares, bailes, de sair à noite, por exemplo, que segundo Ana Rita, acabam representado limitações à liberdade e ao direito de ir e vir.

“É uma falsa sensação de que não é uma responsabilização e de que é um benefício. Trata-se de um período de cumprimento de condições impostas pela Justiça Criminal. Do ponto de vista social, a pessoa está, sim, sendo submetida à restrições de direitos e pode, a qualquer momento, voltar a responder pelo crime que ela foi acusada. Também do ponto de vista psicológico, ela está purgando o que ela fez, geralmente sozinha sem poder contar para ninguém”, analisa a defensora.

Sigilo profissional é direito constitucional e dever ético da/o profissional de saúde

Em cada categoria profissional, há legislações e normas específicas que orientam as profissões. No caso dos profissionais de saúde não é diferente.

Na medicina, a boa relação entre médico/a e paciente é um dos pilares da profissão. Conforme recordou Daniel Knabben Ortellado, presidente do Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina (CRM-SC), o tratamento adequado depende dessa boa relação, que só é possível quando existe confiança, algo que é garantido por outro pilar da medicina: o sigilo profissional.

No Código de Ética Médica, há um capítulo exclusivo sobre sigilo profissional, determinando sua obrigatoriedade. No artigo 73, consta que é vedado ao médico “revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente”. No parágrafo único, explicita-se que a proibição se mantém mesmo que a/o médica/o seja convocada para ser testemunha de um processo, ou quando houver investigação de suspeita de crime.

Arte: Beatriz Lago.

Além da regulação específica, a própria Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais individuais, prevê, no inciso X, a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, assegurada a indenização pelo dano moral ou material decorrente da sua violação.

Assim, a quebra de sigilo ou a violação do segredo profissional, de acordo com o Artigo 154 do Código Penal, é, além de antiética, crime, cuja pena é a detenção de três meses a um ano, ou multa, para a/o médica/o ou profissional de saúde (psicóloga/o, assistente social ou enfermeira/o).

O Código de Processo Penal vai além, em seu art. 207, estabelece que são proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo. Assim, quando chamados como testemunhas de processos criminais, médicas/os e profissionais de saúde não são obrigados a dar o seu testemunho, ainda que o paciente o desobrigue do sigilo.

O novo Código de Processo Civil, no art. 388, II, e art. 404, IV, manteve previsão semelhante: a parte não é obrigada a depor sobre fatos a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo.

Segundo a lei, o médico não é obrigado a exibir em juízo o prontuário médico. Isto, pois, a exibição acarreta a divulgação de fatos a cujo respeito, pela profissão, o médico deve guardar segredo. Além do segredo profissional, existem normas técnicas para orientar as/os profissionais de saúde sobre como atender as pessoas em condições específicas. A Norma Técnica “Atenção Humanizada ao Abortamento”, publicada pelo Ministério da Saúde em 2005, é uma delas.


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  • Morgani Guzzo

    Jornalista, mestre em Letras (Unicentro/PR) e doutora em Estudos de Gênero pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Hu...

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