O sentido de verdade tem relação com a característica daquilo que é merecedor de confiança, por ter uma estreita relação com o que é real. No contexto desta série de artigos sobre as Pioneiras do Cinema, a propriedade do que é verdadeiro torna-se vital quanto à historiografia da área específica, e na mesma urgência, para as demais áreas do conhecimento que se encontram inevitavelmente implicadas na justa inclusão da História das Mulheres, para uma versão mais realista dos acontecimentos históricos.

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“As transformações na historiografia, articuladas à explosão do feminismo, a partir de fins da década de 1960, tiveram papel decisivo no processo em que as mulheres são alçadas à condição de objeto e sujeito da História, marcando a emergência da História das Mulheres”, assinalam as pesquisadoras Rachel Soihet e Joana Maria Pedro, no artigo A emergência da pesquisa da História das Mulheres e das Relações de Gênero, publicado na edição número 54, da Revista Brasileira de História.

O mesmo texto ainda aponta a fragilidade do “domínio que os historiadores tinham do passado” frente à constatação da falta de representatividade do feminino: “Fato, este, necessariamente demolidor para uma realidade que definia a ‘história e seus agentes já estabelecidos como verdadeiros, ou pelo menos, como reflexões acuradas sobre o que teve importância no passado’”, aqui citando Joan Scott e seu emblemático escrito Gênero: uma categoria útil de análise histórica, no qual aponta que “uma das mais importantes contribuições das historiadoras feministas foi o descrédito das correntes historiográficas polarizadas para um sujeito humano universal”, sujeito este que não soube, ou não quis, representar a realidade feminina até que as próprias tomassem para si a sua constituição.

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Neste mesmo sentido a pesquisadora Madalena Zaccara aponta que ao ser escrita por homens “a narrativa histórica se absteve de incorporar às suas preocupações o sujeito feminino”. Não sendo este silêncio uma prerrogativa da historiografia brasileira ou latino-americana, mas “uma atitude constante inclusive em países hegemônicos onde a preocupação com os direitos femininos e o reconhecimento da sua condição subalterna cronologicamente se processou mais cedo”, diz a autora. A teórica faz considerações sobre a relação entre arte, gênero e lutas feministas, adensando estudos que colocam a historiografia tradicional em confronto com a verdade histórica que foi ignorada em todos os setores da sociedade: a da participação feminina para além do âmbito do privado.

A ressalva historiográfica se dá no aspecto de analisar a representação do feminino nas telas, teorias a respeito da “imagem da mulher”, que já era tema de abordagens feministas na crítica cinematográfica a partir da década de 70. A forma como a mulher foi apresentada às plateias, suas personagens recorrentes, os diálogos a elas atribuídos, a criação e reiteração de estereótipos, a hierarquização social nas tramas e uma infinidade de outras perspectivas do retrato social da mulher feito pela cinematografia mundial, foram estudados e documentadas para responder a questionamentos sobre identidade e representação.

Elizabeth Ann Kaplan é uma das fundadoras da abordagem feminista na crítica cinematográfica, ainda nos anos 70, e é considerada pioneira no estudo da mulher no cinema e da produção cinematográfica feminista. Naquele contexto inicial seus campos de pesquisa incluíam estudos sobre mulheres e gênero, teoria feminista do cinema, cultura popular e pós-modernismo, além de pós-colonialismo no cinema e na mídia.

“Essa crítica feminista do cinema evoluiu a partir do próprio movimento feminista e de suas preocupações e, naturalmente, iniciou-se com uma metodologia sociológica e política. À medida que as inadequações dessas abordagens tornaram-se evidentes, as feministas passaram a usar o estruturalismo, a psicanálise e a semiologia em suas análises teóricas”, aponta Kaplan na introdução do livro A Mulher e o Cinema: Os dois lados da câmera, escrito em 1983 e lançado no Brasil quase uma década mais tarde, em 1995. Na delimitação de seu universo de pesquisa, a teórica opta por analisar “o olhar masculino reproduzido no cinema, que pretende dominar e reprimir a mulher, por seu poder controlador sobre o discurso e o desejo femininos”, relegando as mulheres “à marginalidade, ao silêncio ou a ausência”.

Teóricas como Laura Mulvey, Mary Ann Doane, Janet Bergstrom, Claire Johnston estão entre os nomes que também se debruçaram sobre estas questões emergentes que diziam respeito à representação dos femininos nas telas do cinema. Sobre a crítica e cineasta Laura Mulvey no artigo Políticas do olhar: feminismo e cinema em Laura Mulvey, assinado por Sônia Maluf, Cecilia Antakly de Mello e Vanessa Pedro, lê-se: “A produção intelectual de Laura Mulvey, em seus escritos e nos filmes que realizou, pode ser resumida a partir de uma preocupação central, a produção de uma crítica feminista ao cinema narrativo tradicional e a ruptura com seus regimes de prazer visual, única possibilidade de construção de um contra cinema. Seus principais trabalhos se desenvolveram em duas grandes vertentes: a crítica à relação entre imagem e olhar predominante no cinema narrativo clássico e a construção de outras possibilidades de olhar e de outras linguagens do desejo, a partir do projeto de um cinema de vanguarda, ou contra cinema – incluindo aí a ideia de um cinema feminista. Foi, no entanto, a primeira vertente de sua crítica – a crítica ao olhar masculino – que acabou ganhando mais visibilidade”. O texto foi publicado na Revista Estudos Feministas em 2005.

Mary Ann Doane também tem uma rica produção teórica, mas é bastante conhecida por suas reflexões sobre o uso da voz como instrumento para naturalizar o discurso hegemônico dominante a partir da predominância masculina neste recurso, além de configurar a “voz do saber” sob o mesmo argumento. Doane publicou também uma coleção de ensaios reunidos no seu livro inaugural Femmes Fatales: Feminismo, Teoria Cinematográfica, Psicanálise, no qual expõe como a visão do espectador dominou e regeu o cinema clássico de Hollywood, sendo as personagens femininas uma representação relegada aos desejos ou medos da audiência e uma tentativa de dominá-la como sujeito histórico.

A pesquisadora Ana Maria Veiga aponta que: “Foi no final dos anos 1980 e começo dos 1990 que surgiu com força na crítica teórica do cinema o conceito de gênero, tendo como uma de suas inspiradoras a italiana Teresa De Lauretis. A autora denunciava o aparato cinematográfico como aquilo que passou a denominar ‘tecnologia do gênero’”, no artigo Gênero e cinema, uma história de teorias e desafios, publicado em 2017, na Revista de Estudos Feministas.

É por essa série de motivos que reunir a diversidade dos aportes femininos à cinematografia torna-se tão importante e premente. A tarefa no entanto não é simples, principalmente, pelo número de contribuições que as mulheres ofereceram e seguem oferecendo ao meio cinematográfico e que foram e seguem sendo negligenciadas pelo discurso dominante.

A jornalista e editora Luísa Pécora, idealizadora do site Mulher no Cinema, aponta a desigualdade de gênero no setor como motivação para criar esse espaço no qual “celebra o trabalho das mulheres nas telas”, dando ênfase aos trabalhos realizados por elas atrás das câmeras. Os dados que levaram à criação de conteúdo a este respeito mensuram o quanto ainda temos que avançar na realidade atual: “Só 16% dos filmes brasileiros lançados nos cinemas em 2017 foram dirigidos exclusivamente por mulheres – nenhuma delas negra.

Criado em 1946, o Festival de Cannes só premiou uma diretora com a Palma de Ouro. Estudos apontam que personagens femininas em geral têm menos falas e mais cenas de nudez do que personagens masculinos. Halle Berry continua sendo a única mulher negra a ganhar o Oscar de melhor atriz e Viola Davis, a única a ganhar o Emmy de atriz de drama. Da mesma forma, no cinema brasileiro mulheres negras são o grupo menos representado em frente e por trás das câmeras”, diz o texto de apresentação do site.

Em postagem recente a respeito da premiação do Oscar de 2020 ressoa o alerta de que as condições para a visibilidade dos feitos femininos na cinematografia, pouco mudaram desde que Alice Guy-Blaché entrou no estúdio da Gaumont, num domingo de 1896, acompanhada de amigas e “fora de seu horário de trabalho” (como lhe foi recomendado por seu chefe), para nos brindar com o primeiro filme narrativo da história ou simplesmente o primeiro filme do que hoje entendemos por cinema ficcional.

Lê-se na publicação de Mulher no Cinema: “Quem ainda duvida de que a desigualdade de gênero seja uma realidade no Oscar só precisa olhar para a categoria de direção para mudar de ideia. Os números, aqui, são bem claros: nos 92 anos em que a premiação existe, apenas cinco mulheres foram indicadas ao prêmio – e apenas uma ganhou”. Será esta a constatação de que há pouco talento, dedicação, pertinência, estudo, domínio ou genialidade nas realizadoras femininas? Ou é uma crua evidência de que este apagamento é sintomático de uma sociedade regida por homens?

Lugar de mulher também é atrás das telas

Os contextos de produção dos primórdios do cinema fizeram com que diversas realizadoras atuassem em quase todos os setores e etapas de um filme, o que não raramente ocasionou em acúmulo de funções, o que por sua vez resultou na falta de créditos em muitas obras ou na atribuição do mérito a colegas homens, nos estúdios correspondentes. Aos poucos, e como resultado de imensos esforços, as pesquisas vão preenchendo lacunas e modificando o conhecimento que oficialmente tem se disseminado, tanto no cenário dos estudos formais sobre esta arte quanto na circulação de dados em meios informativos e mesmo junto à crítica especializada.

Felizmente, a partir da década de 70, estudos e aprofundamentos mais sistemáticos trouxeram à tona verdades que permaneciam perdidas ou camufladas e estão paulatinamente inscrevendo corretamente os feitos destas mulheres realizadoras, que participaram ativamente da construção do cinema como arte, entretenimento e indústria.

Um exemplo deste panorama é o dado apontado pela jornalista Rafaella Rodinistzky, em artigo publicado no Delirium Nerd, um site colaborativo escrito por mulheres, com matérias sobre cultura, comportamento e representação feminina: “Entre 1912 e 1919, contabiliza-se cerca de 11 diretoras mulheres na folha de pagamento da Universal Studios, somando aproximadamente 170 filmes realizados no período”. Até a segunda metade da década de 90 são escassíssimas as publicações que fazem menção ao trabalho de mulheres atrás das câmeras, e mesmo os registros dedicados àquelas que estiveram à frente das lentes são incompletos ou parciais.

Inúmeros nomes ficaram fora do apanhado que foi feito para esta série de artigos preparados especialmente para o Portal Catarinas, porém é possível que a partir deste resumo se tenha a dimensão de quão urgente e necessária se faz a revisão do cânone para a justa inclusão das realizações, invenções e nomes das responsáveis. Neste escrito que finaliza a série foi ainda mais desafiador escolher as criadoras abordadas e parte de suas trajetórias.

O critério aqui foi o da diversidade, mas também buscou-se a abrangência de pioneiras sobre as quais há apenas informações iniciais e que ainda demandarão muita investigação. A escolha também se deu em função de realizações ainda consideradas inusitadas para a participação feminina, como é o caso do experimentalismo de linguagem ou das áreas técnicas, ampliando assim o conjunto de informações a respeito destas pioneiras.

Nesse sentido o filme E A Mulher Criou Hollywood (The Women who run Hollywood), documentário de 2015, realizado pelas irmãs Clara e Julia Kuperberg é uma obra fílmica inaugural no sentido do resgate das trajetórias femininas na cinematografia mundial. Estas realizadoras francesas “apaixonadas pela história do cinema”, como se apresentam no site de sua produtora a Wichita Films, produziram e dirigiram esta obra fundamental para entender melhor os motivos subjacentes ao apagamento dos nomes e das realizações femininas no cinema.

Em artigo sobre este documentário, a crítica de cinema Susy Freitas, que integra a equipe do site Cine Set, destaca “a importância do trabalho coletivo das mulheres na cadeia produtiva cinematográfica (…) como quando observamos que não apenas na direção, mas em áreas diversas como produção, roteiro, montagem e atuação havia uma liga que dava unidade para a presença e sucesso dessas mulheres na área”. Esta afirmação encontra respaldo na maioria das biografias e trajetórias pesquisadas, nas quais sobram testemunhos e relatos a respeito das constantes colaborações e oportunidades que umas ofereciam às outras, constituindo fortes elos nas relações de trabalho que provavelmente aportaram para que estas pioneiras tivessem o espaço que chegaram a dividir até o começo do cinema sonoro.

Em cartaz: mais nomes esquecidos

“Nossas emoções são as melhores coisas que temos”. Maude Adams

A americana Maude Adams foi uma atriz de sucesso no teatro e declarou que suas interpretações preferidas eram Peter Pan, peça estrelada por ela no ano de 1905, na Broadway, e o galo Chantecler, também num espetáculo teatral de grande impacto de público, entre outros papeis em que protagonizou personagens masculinos. Esta preferência rendeu-lhe diversas críticas, como lembra Naomi Watkins, em artigo publicado no site da Better Days, uma organização sem fins lucrativos dedicada a popularizar a história das mulheres de Utah, sendo a atriz nascida na cidade de Salt Lake City.

Maude Adams como Peter Pan, 1905/Foto: Wikimedia Commons.

O texto descreve a insatisfação da crítica em relação à atriz: “Eles não gostavam do desempenho de Maude especialmente porque ela era uma mulher. ‘Chantecler é essencialmente um papel masculino… e Miss Adams é essencialmente uma atriz feminina’, escreveu um crítico. ‘Nada poderia ser mais incongruente do que o ensaio de uma mulher para interpretar um personagem cuja força e valor dependem da virilidade masculina’, escreveu outro”.

No texto a pesquisadora segue descrevendo outras participações da atriz em papeis masculinos naquelas que “eram conhecidas como ‘produções de calças’, em referência às atrizes que usavam calças masculinas nessas performances” e acrescenta que a atriz também interpretou fortes protagonistas femininas como Joana d’Arc.

No artigo Maude Adams: A Working Woman In Breeches, escrito por David G. Pace, para o site Utah Humanities, o pesquisador cita que Adams “era uma artista de cross-dressing cuja escolha de peças de teatro rotineiramente rompia os papéis de gênero”, acrescentando que a atriz era cuidadosa na escolha de seus papeis e que “usou sua popularidade para moldar uma carreira que se tornaria o prólogo do empoderamento feminino e LGBT nas próximas gerações”.

A controversa Mude Adams, a despeito de seus críticos, expandiu sua inadequação para além das atuações masculinas e chegou ao campo da técnica na engenharia elétrica e na iluminação incandescente. Inicialmente para palcos de teatro e posteriormente “para a indústria cinematográfica, com suas luzes finalmente se tornando padrão da indústria em Hollywood com a chegada do som no final da década de 1920”, como afirma Vicky Jackson, em artigo para o Women Film Pioneers Project – um recurso acadêmico da Universidade de Columbia que explora o envolvimento mundial das mulheres em todos os níveis da produção cinematográfica durante a era do cinema mudo –, comprovando a importante contribuição de suas investigações técnicas.

“Ela foi responsável pela coordenação de pesquisas para desenvolver tecnologia de iluminação, inicialmente para espetáculos de palco, e logo especificamente para o cinema em cores”. O texto prossegue, destacando que a atriz estabeleceu e financiou sua própria equipe de pesquisa e que esta foi promissora a ponto do grupo conseguir “formar colaborações com a General Electric e a Eastman Kodak, que resultaram na fabricação da então maior lâmpada incandescente do mundo”, complementa Naomi Watkins.

Maude Adams com a lâmpada incandescente, 1922.

No entanto, as duas pesquisadoras ressaltam que Mude Adams não patenteou suas ideias e também não recebeu retorno financeiro por seu trabalho inovador com a iluminação. “Desde então, seu nome foi amplamente apagado das contas oficiais da General Electric e do arquivo sobrevivente”, diz Jackson, complementada por Watkins que diz “Maude nunca recebeu crédito por suas invenções e, embora seu advogado tenha aconselhado que ela processasse, ela não o fez. Mais tarde, ela se arrependeu dessa decisão e, sempre que via suas luzes serem utilizadas, dizia: ‘Essas são minhas lâmpadas’”.

A atriz tinha explicita preferência pelo cinema em cores e na busca por uma iluminação que tivesse resultados mais satisfatórios em filmes coloridos suas lâmpadas acabaram tornando-se padrão na indústria hollywoodiana do final da década de 20 pelo ótimo desempenho que apresentavam, sendo as pesquisas promovidas por Adams durante mais de uma década, particularmente inestimáveis ​​nas filmagens coloridas sob iluminação artificial.

O consultor de engenharia elétrica e de iluminação Bassett Jones, seu colaborador com as investigações e testes nessa área, disse a seu respeito: “Ela reformulou completamente toda a arte da encenação – cenário e iluminação… Na minha opinião, Maude Adams foi a maior artista de produção que este país já viu”. Provavelmente Jones tinha razão, pois ela desenvolveu inúmeros novos efeitos com iluminação, como uma ponte de luz “que continha sete refletores incandescentes que poderiam ser usados durante uma performance”, documentava o The New York Times, em 1908.

No ano de 1926, participando de experimentos em filmes coloridos com o Kodachrome, numa colaboração com o cineasta Robert J. Flaherty, “produziram filmes de teste com cerâmica e vitrais no Metropolitan Museum of Art, de acordo com o Film Daily, em 1926. No entanto, o museu não possui registros desses filmes sendo produzidos”, documenta Vicky Jackson, em artigo já citado.

May Blayney (esquerda) e Maude Adams (direita) em Chantecler/Foto: Biblioteca do Congresso.

Mude Adams tornou-se professora de dramaturgia e aos 65 “assumiu o cargo de diretora do departamento de teatro do Stephens College, em Columbia, Missouri”, conta Watkins. Ela continuou lecionando até os 78 anos, morrendo três anos mais tarde de ataque cardíaco. “O que é particularmente impressionante no trabalho de Adams é sua abordagem colaborativa. Ela não era engenheira e não podia desenvolver a tecnologia sozinha, mas tinha uma visão do que queria e reuniu pessoas que poderiam ajudar na realização”. A pesquisadora também comenta que tendo sido sua carreira teatral muito exitosa nos palcos o fato “lhe proporcionou influência, dinheiro e reputação por trabalhar em inovação técnica”.

A revolução nas escadarias de Odessa

Seguimos para o outro lado do mundo para perguntar: você sabia que Nina Agadzhanova foi a criadora do argumento e roteiro original do famoso filme Encouraçado Potemkin, dirigido por Serguei Eisenstein e considerado um marco na cinematografia mundial na era do cinema mudo? O diretor adaptou um dos episódios retratados em outro filme chamado O Ano de 1905, um roteiro que reunia diversos acontecimentos históricos relacionados a ações revolucionárias, e que foi encomendado à diretora e roteirista pelo Partido Comunista da União Soviética, para a celebração da Primeira Revolução Russa.

Encouraçado Potemkin, 1925.

Incrivelmente, depois de terem trabalhado lado a lado para o desenvolvimento do roteiro deste filme emblemático para a história da linguagem cinematográfica, Eisenstein e Agadzhanova travaram embates legais pelo direito ao crédito da roteirização e dos rendimentos financeiros do filme a partir da função de roteirista. Legalmente ambos foram considerados os autores oficiais do roteiro do filme, embora Eisenstein tenha sido aceito como “autor principal, pelo menos aos olhos da comunidade cinematográfica”, conforme afirma Natalie Ryabchikova no artigo intitulado Nina Agadzhanova-Shutko para o Women Film Pioneers Project.

Tendo estudado história, literatura e música, foi somente depois de 17 anos de dedicação ao Partido que ela teve direito a se aposentar, podendo assim se dedicar totalmente à roteirização e à literatura, um sonho antigo. Agadzhanova também lecionou e orientou trabalhos de roteirização.

“Eu repito essas palavras incessantemente,
‘visual, visualmente, vista, olho’”. Germaine Dulac

Para finalizar voltamos à França de Alice Guy-Blaché, onde tudo começou, relembrando alguns momentos da trajetória de Germaine Dulac, uma realizadora que também era poeta, artista, pensadora, literata e que iniciou a estética surrealista no cinema antes do conhecido Um Cão Andaluz, filme de 1929, dirigido por Luis Buñuel e Salvador Dali, e que equivocadamente é tido por muitos como o primeiro filme surrealista da história.

Germaine Dulac inaugurou uma tradição: pelo menos uma mulher sempre dirige no cinema francês.

Em 1928 a cineasta estreia sua obra A Concha e o Clérigo (La Coquille et le Clergyman), filme que em função do seu experimentalismo e erotismo evidente não foi bem recebido pelas plateias. Em sua primeira apresentação grande parte da audiência, incluindo também alguns de seus amigos intelectuais, abandonaram a exibição antes da finalização do filme.

A obra conta com o argumento original homônimo e a cenografia do dramaturgo, poeta, ator, diretor, roteirista e pensador Antonin Artaud, e conta-se que houve diversas divergências entre a diretora e o dramaturgo a respeito do desenvolvimento do filme, a ponto de André Breton, autor do Manifesto Surrealista – que ao ser publicado em 1924 marcou o início do surrealismo –, declarar que Germaine Dulac havia “traído Artaud e ‘feminizado’ o roteiro”, conforme relata Renata de Pina Costa, no artigo A Concha e o Clérigo: aproximações e divergências entre Antonin Artaud e o Surrealismo, publicado na Revista Anagrama.

“Alguns sugeriram que as críticas eram dirigidas ao próprio Artaud. Acredita-se que as afinidades entre Dulac e Artaud eram maiores do que as desavenças e que todo esse conflito foi fabricado por alguns surrealistas que se colocaram contra o esteticismo da vanguarda e utilizaram a ambos como bodes expiatórios para aprofundar suas próprias desavenças em relação à Artaud”, que algum tempo depois deixou o movimento, aponta Donia Mounsef, autora do texto Women Filmmakers and the Avant-Garde: From Dulac to Duras, trazendo ainda mais complexidade ao acontecimento.

A concha e o clérigo, 1928.

À margem das possíveis desavenças ou conflitos a realização pode ser entendida como uma convergência de proposições artísticas na qual “Através de um filme altamente experimental, Germaine Dulac consegue trazer ao roteiro de Antonin Artaud toda a carga crítica (explícita e implícita, através da forma e/ou do conteúdo) de uma época, e criar um filme que contivesse elementos de sobra para a semeadura do surrealismo no cinema.

A Concha e o Clérigo é bem mais que um filme surrealista. É uma transição-junção de diversas vanguardas recentes àquele início de século XX, que ganha um toque completamente novo, crítico e simbólico, e que dali para frente, se propagaria pela Sétima Arte. Com A Concha e o Clérigo, Germaine Dulac denunciou, escreveu, mostrou e demonstrou uma Era, do mesmo modo que anunciava e dava os primeiros passos para o nascimento de outra”, explica o texto Germaine Dulac e a gênese do surrealismo no cinema, publicado no site Mnemocine, ferramenta de apoio a professores, estudantes e todos aqueles que se interessam pela história do cinema.

No mesmo escrito são mencionadas as semelhanças entre Um Cão Andaluz e o filme de Dulac, “Ambos os filmes são perturbadores, conseguem a atmosfera de sonho e incorporam quebras e cenas que provocam impacto sobre o espectador. Pode-se seguramente comparar a antológica cena dos olhos no cão Andaluz com a exposição dos seios da mulher em A Concha e o Clérigo”. Donia Mounsef conclui dizendo que “A Concha e o Clérigo continua sendo uma das obras mais fundamentais da era do cinema mudo e a falácia da controvérsia entre Artaud e Dulac apenas deixa explícita (além do ataque a Artaud) uma política de gênero (ou política do “clube do Bolinha”) cujo objetivo era marginalizar as mulheres da primeira vanguarda do cinema”.

A concha e o clérigo, 1928.

Sobre o episódio o teórico Gilles Deleuze menciona em Cinema 2: A Imagem-Tempo que “Artaud lembrará constantemente que este é o primeiro filme surrealista; e criticará Buñuel e [Jean] Cocteau por se contentarem com o arbitrário do sonho (…). Parece que o que ele critica em Germaine Dulac é ter dado a A Concha e o Clérigo o sentido de um mero sonho”.

Roberto Acioli de Oliveira publicou na RUA – Revista Universitária do Audiovisual, da UFSCAR, o artigo A Vanguarda Feminina no Cinema Francês, no qual elenca informações e reflexões sobre diversos filmes de Germaine Dulac. Entre os apontamentos relata que a cineasta começou a trabalhar com cinema ainda durante a Primeira Guerra Mundial e “seu interesse pelo ponto de vista feminino será transposto para a tela principalmente através de técnicas experimentais.

Apesar do boicote que sua carreira sofreu por parte dos seus pares masculinos, ela amava o cinema a ponto de ajudar Henri Langlois a esconder filmes durante a Segunda Guerra Mundial, para que não fossem destruídos na França ocupada pelos nazistas”, citando a crítica, roteirista e autora do livro A Short History of Cahiers du Cinéma, Emilie Bickerton. Ainda no mesmo texto Oliveira identifica a cineasta como uma representante da primeira vanguarda artística que compreendia os movimentos surrealista, dadaísta e o futurismo e cita que Elizabeth Ann Kaplan afirma que “o trabalho de Dulac, ainda sem apontar qualquer alternativa, teve o mérito de expor a posição da mulher no patriarcado”.

Inúmeras verdades ainda estão por vir

O Anthology Film Archives é um centro internacional sediado em Nova Iorque, que se ocupa da preservação, estudo e exibição de filmes e vídeos, com foco especial no cinema independente, experimental e de vanguarda. Em 2016, na apresentação de uma mostra reunindo filmes das pioneiras do cinema que atuaram antes de 1950, o centro resume o contexto atual em relação a elas: “Apesar das notáveis realizações dessas primeiras realizadoras, muitas delas permanecem pouco conhecidas ou estudadas até hoje, uma indicação de que as forças sociais e econômicas mobilizadas contra elas não apenas continuam a existir, mas também se estendem ao campo dos estudos cinematográficos. No entanto, a década passada viu um aumento no interesse acadêmico por essa história negligenciada”.

Nina Agadzhánova.

As tristes constatações não cessam de aparecer e reiterar quão premeditado foi o apagamento das criações de inúmeras mulheres pioneiras, como podemos ver num trecho do texto já citado de Donia Mounsef, que dá conta de mais um motivo para tal prática, o fato de que o cinema virou indústria e, como tal, seguiu as lógicas do mercado e do modelo hegemônico: “Às mulheres cineastas que se recusaram a entrar no jogo comercial foi negado acesso aos meios de produção enquanto, ao mesmo tempo, suas realizações eram ameaçadas por abandono histórico e falta de reconhecimento. O melhor exemplo é Alice Guy-Blaché que, ao retornar à França após trabalhar quinze anos nos Estados Unidos, encontrou sua carreira sabotada pela política do cinema comercial na década de 20”.

As mulheres pioneiras do cinema foram subestimadas com a intenção de torná-las ausentes como sujeitos históricos. A verdade, no entanto, não pretende se aliar a qualquer interesse que esteja longe da realidade dos fatos!

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  • Claudia Aguiyrre

    Claudia Aguiyrre é cineasta, artista multimeios, educadora e pesquisadora, graduada em Comunicação Social – Habilitação...

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