“Não há nada relativo à realização de um filme que uma mulher não possa fazer tão facilmente quanto um homem, e não há razão para que ela não possa dominar completamente todos os detalhes técnicos dessa arte”.

A frase inspiradoramente feminina é de autoria de Alice Guy-Blaché, a primeira diretora de cinema da história. Responsável pela realização de mais de mil filmes, Alice Guy também foi a primeira roteirista, produtora e diretora de um estúdio cinematográfico e, para além destes feitos pioneiros, deixou também uma herança inestimável à cinematografia mundial com a estética e os temas abordados em suas realizações. Seu legado fez também enorme diferença para outras pioneiras que seguiram alargando caminhos na realização de filmes e na construção de uma linguagem específica para esta expressão criativa.

Incrivelmente, ainda nos dias de hoje, a história do cinema negligencia os nomes e o legado de muitas mulheres – mas muitas mesmo –, que contribuíram para o desenvolvimento da arte e da indústria cinematográfica. Nos primórdios e na chamada Era Clássica do Cinema há incontáveis mulheres das quais nunca tivemos notícias até que as próprias mulheres se ocupassem de trazer estas contribuições à luz, não só do cinematógrafo, mas também da história social e cultural humana. É sobre estas realizadoras e pensadoras do cinema que a atual série de artigos pretende se debruçar, sem, no entanto, ter a intenção de esgotar o tema ou dar conta de todas as trajetórias daquelas que colaboraram para transformar o cinema numa arte popular.

Alice Guy Blache dirigindo/Imagem: acervo

A cinematografia como a conhecemos na atualidade foi pensada, praticada e aperfeiçoada por inúmeras mulheres desde o seu surgimento, a ponto de ter sido a francesa Alice Guy-Blaché a primeira pessoa a dirigir um filme narrativo e ficcional, ao contrário do que comumente se acreditava ao conferir este acontecimento ao seu conterrâneo, o ilusionista e diretor Georges Méliès, reconhecido pelo emblemático Viagem à Lua, filme de 1902.

O primeiro filme a desenvolver uma história de forma narrativa foi na realidade A Fada dos Repolhos, concebido, produzido e dirigido por Alice Guy, que adaptou uma tradicional fábula francesa sobre a origem dos bebês. Antes desta realização os registros feitos pelas primeiras invenções, que permitiram capturar imagens em movimento, eram de caráter documental, como foram os impressionantes filmes projetados pelos irmãos Lumiére no Grand Café du Boulevard des Capucines, em Paris, no ano de 1895. Na ocasião o público viu, pela primeira vez, as históricas imagens dos A Saída dos Operários da Fábrica Lumière e A Chegada do Trem na Estação, que encantam plateias até hoje.

O filme dirigido por Alice Guy, cujo título original é La Fee aux Choux, foi estrelado pela sua amiga Yvonne Serrand, que interpretava a fada na versão fílmica do conhecido conto popular francês. A diretora contou com a ajuda de outras amigas para a realização que teve que ser produzida aos domingos, nos horários de folga do seu trabalho como secretária de Léon Gaumont. Aos 21 anos Alice foi admitida pelo proprietário da empresa Gaumont, que àquela data dedicava-se à comercialização de equipamentos e suprimentos fotográficos, para depois tornar-se uma companhia de produção cinematográfica em atividade até os nossos dias. Ela havia feito um curso de taquigrafia para poder garantir seu sustento depois do falecimento do pai e da falência das livrarias da família.

O lançamento daquela pequena produção de menos de um minuto de duração deu-se pouco tempo antes da estreia de Le Manoir du diable, primeiro filme dirigido por Georges Méliès, no ano de 1896. Por muito tempo este diretor foi considerado erroneamente como o precursor do cinema de ficção, deixando patente que a história oficial do cinema foi escrita sob um olhar masculino e que ainda temos muito a descobrir sobre a participação feminina na cinematografia mundial.

Cena do filme “A Fada dos Repolhos”, de 1986/Foto: acervo

A experimentação como criadora 

“Com essa invenção a morte não será mais absoluta. As pessoas que vimos na tela estarão conosco movendo-se e vivas, mesmo após a sua morte”, exclamava o entusiasmado artigo no jornal La Poste, referindo-se a primeira apresentação do cinema em público realizada por Louis e Auguste Lumière, naquele final de século. Era o cinematógrafo: uma câmera que fazia as fotografias fixas ganharem movimento.

Foi exatamente a possibilidade de tornar perenes as imagens captadas pelas primeiras invenções cinematográficas que despertou em Alice Guy-Blaché a vontade de experimentar como criadora. Com o argumento de promover o equipamento posteriormente aprimorado pela Gaumont, Alice convenceu seu chefe de que pequenos filmes promocionais poderiam impulsionar as vendas do aparelho e da nova tecnologia, ampliando os negócios da companhia.

A sagacidade da pioneira para os negócios viu nos filmes documentais sobre o cotidiano da cidade um potencial que ia além do uso doméstico e científico: ela previu que os filmes seriam um espetáculo de entretenimento massivo e propôs ao seu patrão que investisse nos equipamentos apresentados naquela histórica exibição.

Foto: acervo

Dias antes daquela projeção pública Gaumont havia sido convidado por Louis Lumiére para uma demonstração privada daquilo que seria levado para a que foi a primeira sessão de cinema de que se tem notícia. Alice Guy também estava entre o seleto grupo de convidados acompanhando o empresário e ficou encantada com as possibilidades que vislumbrou para contar histórias.

Muito possivelmente a tendência narrativa demonstrada por Alice desde seus primeiros filmes deve-se ao fato de ter sido filha de um livreiro empreendedor que lhe legou o gosto pela literatura e o tino comercial. Alice criava filmes com uma trama que se desenvolvia. León Gaumont ficou tão entusiasmado com o resultado de Alice em seu primeiro filme que criou um departamento de cinema narrativo que ficou a cargo da diretora.

Pioneirismo nas veias

Depois de A Fada dos Repolhos Alice Guy realizou muitos outros filmes, ainda aos domingos, e aos poucos foi demonstrando a incrível capacidade de gerenciamento que a levou posteriormente a ser a chefe de todos os diretores da companhia tornando-se assim a primeira produtora executiva da história. Ela também foi responsável por treinar vários outros diretores e cinegrafistas, inclusive Herbert Blaché, com quem se casaria e viajaria para os Estados Unidos, onde montaram um novo estúdio cinematográfico: a Solax Company.

Alice Guy-Blaché levava o pioneirismo nas veias fazendo com que colecionasse feitos em sua trajetória. Durante um período de 24 anos, de 1896 a 1920, ela dirigiu todo tipo de narrativa: westerns, dramas, comédias e até ficção científica. Foram centenas de curtas-metragens (incluindo mais de 100 filmes sonoros sincronizados) e 22 longas-metragens. Alice também filmou vários Phonoscènes (o precursor dos videoclipes), com cantores famosos da Belle Époque fazendo Lip Sync ou sincronização labial. Sua direção ajudou a transformar atrizes de palco como Olga Petrova, Alla Nazimova e Bessie Love em estrelas de cinema. Ela espalhava placas pelo estúdio com o lema: Be Natural (Seja Natural), se opondo às práticas da época que preferiam as atuações caricatas e exageradas que caracterizaram o cinema mudo.

Foto: acervo

A diretora também fez uso de técnicas de máscara assim como de dupla exposição. Utilizou sequências invertidas e truques cinematográficos como a inversão do negativo, truques e técnicas que acabaram atribuídas equivocadamente a Méliès. Alice Guy foi a primeira pessoa a utilizar sobre impressões como no filme O Natal do Pierrot, assim como a projeção ao contrario na produção Uma Casa Demolida e Reconstruída.

Alice Guy-Blaché era sem dúvida uma mulher à frente de seu tempo e seus filmes traziam temáticas como o feminismo, a homossexualidade, a maternidade e o papel das mulheres na sociedade levantando questões de gênero em suas realizações, sempre incorporando visão crítica e ironia ao debater grandes conflitos de sua época.

Em 1912, por exemplo, ela dirigiu A Fool and His Money (Um Tolo e Seu Dinheiro), o primeiro filme só com atores afro-americanos, em tempos de segregação racial e dos famosos Black Face, atores brancos com os rostos pintados de preto com carvão para parecerem negros, como se vê em O Nascimento de uma Nação (1915) dirigido pelo renomado D. W. Griffith. A diretora também foi pioneira no uso de efeitos especiais: “Méliès nunca ocultou sua influência”, frisou o jornal espanhol El Periódico em matéria especial sobre a realizadora.

Alice em teste de elenco de Fra Diavolo (1912)/Foto: acervo

Coube-lhe também o reconhecimento de ter realizado o primeiro blockbuster da história, um filme de 1906 que tratava da vida de Cristo. La Vie du Christ, possivelmente o mais notável filme em seu período na Gaumont, é um média-metragem de pouco mais de meia hora que contou com 25 cenários, além de numerosas locações externas e mais de 300 figurantes fora do elenco principal, e foi considerado um sucesso de bilheteria e crítica.

Entre seus filmes de maior destaque se encontra o título As Consequências do Feminismo (Les Résultats du Féminisme), uma comédia ácida sobre uma sociedade em que os papéis de gênero foram trocados entre homens e mulheres.

Cena do filme Les résultats du féminisme – as consequências do feminismo, em 1906/Foto: acervo

Ironicamente, Alice se separou de seu marido litigiosamente depois que este quebrou a companhia Solax ao ficar à frente dos negócios para que Alice pudesse se dedicar à direção de filmes. Ela voltou para a França com os filhos do casal, desempregada, falida e nunca mais esteve sequer próxima de um estúdio de cinema. Coube à uma Alice já avó o resgate de suas realizações em solo americano e é graças a este seu último esforço que hoje podemos ter acesso ao seu inestimável legado cinematográfico, para diminuir em parte a grande injustiça histórica da qual ainda é vítima.

Alice foi excluída de grande parte dos registros históricos, a exemplo de inúmeras outras realizadoras, pelos homens que passaram a comandar a lucrativa indústria cinematográfica mundial. Até Léon Gaumont omitiu a participação de Alice no livro que escreveu sobre a história do seu estúdio, erro que foi corrigido pelo seu filho, Louis Gaumont, somente em 1954.

Em 1976 família Blaché lança o livro de memórias de Alice sob o título Autobiographie d’une Pionnière du Cinéma (Autobiografia de Uma Pioneira do Cinema), relançado em 1986, nos Estados Unidos, por Anthony Slide, com o título: The Memoirs of Alice Guy-Blaché (As Memórias de Alice Guy-Blaché). A diretora canadense Marquise Lepage lançou em 1995 o documentário The Lost Garden: The Life and Cinema of Alice Guy-Blaché (O Jardim Perdido: A Vida e o Cinema de Alice Guy-Blaché).

Recentemente, em 2018, foi lançado com sucesso em Cannes o filme Be Natural: The Untold Story of Alice Guy-Blaché cujo título em português é Seja Natural: A História Não Contada de Alice Guy-Blaché, dirigido por Pamela B. Green e que contou com a narração de Jodie Foster, além da participação de várias celebridades e figuras importantes da indústria do cinema.

A vida e a carreira de Alice Guy-Blaché pede uma releitura atenta da história do cinema e do desenvolvimento da narrativa cinematográfica, e sem dúvida é grande aporte para uma teoria do filme feminista. Foi dedicada, talentosa, inventiva, visionária e ainda permanece injustiçada pela sétima arte.

Acompanhe os próximos quatro capítulos da série que serão publicados semanalmente. 

*Claudia é cineasta, artista multimeios, educadora e pesquisadora, graduada em Comunicação Social – Habilitação Jornalismo e pós-graduada em Estudos Culturais, ambas pela UFSC. Trabalhou por 15 anos como docente em cursos de Cinema e Realização Audiovisual, Comunicação Social, nas habilitações de Jornalismo e Publicidade e Propaganda. Sua experiência mais extensa é como documentarista, dentre as realizações encontra-se o documentário mata… céu… e negros, que recebeu os prêmios Revelando os Brasis, 2005 e Melhor Documentário, Direção e Trilha Sonora Original em outros festivais. O filme foi veiculado pelo Canal Futura e pelo SESC TV. O filme foi um dos 16 selecionados pela Mostra Brasil Plural 9, o maior festival itinerante de cinema brasileiro pela Europa, que percorreu países como a Alemanha, Áustria e Suíça, entre os anos de 2006 e 2007. Já dirigiu e roteirizou mais de 15 documentários desde 1989.

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  • Claudia Aguiyrre

    Claudia Aguiyrre é cineasta, artista multimeios, educadora e pesquisadora, graduada em Comunicação Social – Habilitação...

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