“Quando fui trabalhar em um estúdio, peguei meu orgulho, fiz uma bela bola e joguei pela janela”, teria dito Dorothy Arzner segundo sua amiga Adela Rogers.

É um dado emblemático que a carreira de Dorothy Arzner, uma das mais bem sucedidas diretoras de Hollywood até a década de 40, tenha começado de modo muito semelhante à trajetória de Alice Guy-Blaché, hoje reconhecida com justiça como a verdadeira “mãe do cinema”: Arzner foi contratada como estenógrafa do estúdio Famous Players Lasky Corporation, que mais tarde se tornaria a Paramount Pictures. Muitas das pioneiras do cinema começaram em funções administrativas ou de secretariado, tendo que conquistar espaço, mesmo em atividades pouco visadas pelos homens, em função do então incerto desenvolvimento econômico do ramo cinematográfico.

Foi nesse terreno, no qual os homens ainda não tinham uma ambição definida, que mulheres como Alice e Dorothy puderam desenvolver suas carreiras, mesmo com o posterior apagamento parcial ou completo destas participações femininas. Com uma história profissional brilhante, Arzner foi durante anos a única mulher membro do Director’s Guild of America e seu trabalho inovador no cinema foi determinante para o sistema de produção que vigora até hoje nos grandes estúdios, assim como aparentemente de forma paradoxal, também o é para a história do filme de gênero, além do desenvolvimento de tecnologia para a captação de som e contribuições à linguagem sonora do cinema.

As mulheres eram presença constante nas salas de montagem/Foto: reprodução

Nos primórdios do cinema o roteiro e a montagem eram etapas na realização de um filme nas quais era possível encontrar mulheres desenvolvendo alguma função. Embora houvesse diversas mulheres nas salas de montagem, a maioria limitava-se a seguir as orientações dos produtores e diretores para efetuar o corte e as emendas nos negativos, tendo as mãos pequenas o suficiente para executar tais atividades com minúcia e destreza, além da função de colorização manual dos filmes.

Com o passar do tempo, e o constante e visível aprendizado de Arzner, ela foi promovida de roteirista a técnica de montagem, em seu caso específico com poder de decisão sobre a narrativa, atividade que lhe permitiu montar mais de 50 filmes, tendo muitos deles alcançado enorme sucesso comercial e de crítica. Seguindo numa trajetória de permanente evolução e inventividade Dorothy Arzner torna-se diretora consagrada, tendo dirigido filmes para diversos estúdios, sempre lembrada pela sua técnica impecável e rigor formal, mas especialmente, por sua postura engajada em temas relativos às vivências femininas na sociedade.

Os temas abordados em sua filmografia sempre privilegiaram narrativas relacionadas ao universo feminino e não se furtaram a críticas comportamentais em relação aos papéis determinados social e culturalmente para as mulheres.

Rudolph Valentino em “Blood and Sand”, filme de 1922/Foto: reprodução

Arzner começa a dirigir efetivamente ao ser encarregada de filmar algumas sequências do roteiro de Blood and Sand de 1922, protagonizado pelo astro Rudolph Valentino, o que lhe confere o reconhecimento necessário para seguir na função de diretora. Destaca-se nesta realização pela originalidade e pelo domínio do ofício, mas mesmo com esta estreia auspiciosa e uma evidente vocação para o cargo de diretora cinematográfica, foi preciso que a artista recebesse uma oferta de trabalho da Columbia Pictures para que a Paramount cedesse aos repetidos pedidos da realizadora para assinar a direção de um filme.

Assim, somente anos mais tarde, em 1927, a pioneira assina a direção integral de Fashions for Women, um sucesso de bilheteira da era dos filmes mudos. Esta realização foi definitiva para a sua trajetória como diretora de cinema, função que desempenhou durante 15 dos 24 anos dedicados à realização cinematográfica, entre os anos de 1919 e 1943.

Dorothy Arzner nas filmagens de “Fashions For Women”/Foto: reprodução

Dorothy Arzner também enfrentou preconceito de gênero por parte de alguns atores, como foi o caso da estrela Clara Bow ao relutar em ser dirigida por uma mulher no filme Get Your Man (1927), porém a realizadora logo ganhou o respeito da atriz, a ponto de pouco tempo depois ser encarregada pela Paramount para dirigir a it girl em sua estreia no cinema sonoro. Este fato aconteceu em 1929 ao ser encarregada de dirigir The Wild Party, a primeira realização sonora do estúdio Paramount, filme que já existia em versão muda e que havia sido montado por Arzner.

Tornou-se assim a primeira mulher a realizar um filme com som sincronizado e uma das maiores pioneiras do cinema sonoro, incorporando soluções para conferir maior mobilidade aos atores em cena. Uma de suas contribuições mais significativas foi a de inventar o sistema operacional do microfone boom, já que no início do cinema sonoro os microfones eram comumente escondidos no cenário, obrigando os atores a ficarem próximos aos equipamentos de captação de som, limitando os movimentos e os deslocamentos pelas ambientações.

A diretora então apareceu no estúdio com uma vara de pesca e pediu ao operador de som que pendurasse nela o microfone, para que o aparelho pudesse ficar suspenso sobre os atores, liberando assim não só o elenco, mas também a câmera, para uma maior movimentação durante as filmagens. Estava assim criada a ideia do microfone boom, equipamento utilizado até hoje para a gravação de som direto no cinema e com o mesmo princípio operacional imaginado por Arzner.

Dorothy Arzner e Clara Bow no set de “The Wild Party”/Foto: reprodução

O filme The Wild Party foi significativo para a trajetória da diretora não só pelo desenvolvimento de técnicas de filmagem e captação de som, mas principalmente por ser uma obra na qual era possível perceber a intenção de provocar uma quebra na ideologia hegemonia dominante no cinema hollywoodiano, que ainda hoje é essencialmente masculina.

Embora a postura feminista seja uma característica que marcou a vida e a filmografia desta realizadora, a crítica feminista atual divide-se no entendimento de que Arzner era uma mulher que atuava no privilegiado sistema de produção dos grandes estúdios, e por isso, de algum modo, rendia-se a certas condições. Enquanto por outro lado há a percepção de que a diretora realizava efetivamente filmes protofeministas, dentro do seu contexto de realização.

The Wild Party se passa numa faculdade para mulheres e coloca em pauta alguns temas lésbicos, circunstância que logo na sequência já não seria mais possível com a implantação do chamado Código Hays, um conjunto de normas morais aplicadas pelos grandes estúdios cinematográficos aos filmes lançados nos Estados Unidos entre os anos de 1930 e 1968.

As realizações dos três anos que se seguiram àquele filme exemplificam bem a ousadia que a realizadora mantinha no que diz respeito às temáticas femininas. Anybody’s Woman, filme de 1930, aborda as consequências de uma noite selvagem para a garota de um coro vivida pela atriz Ruth Chatterton. Lançado em 1931 o drama de longa-metragem Working Girls é um relato pungente da realidade de mulheres que tentam sobreviver na cidade de Nova Iorque durante os anos da grande depressão econômica norte-americana.

É inegável que questões relativas à vida privada e pública das mulheres ficam evidenciadas também nos títulos Sarah and SonCraig’s Wife e The Bride Wore Red. “Historiadores do cinema feminista, usando modelos revisionistas literários feministas, estabelecidos por mulheres como Sandra Gilbert e Susan Gubar, redescobriram a obra de Dorothy Arzner em suas tentativas de recuperar mulheres do passado como parte do projeto maior de estudos feministas do cinema”, diz Theresa L. Geller, em artigo dedicado à realizadora no portal Senses of Cinema.

A lendária crítica Pauline Kael descreveu o filme Christopher Strong – dirigido por Arzner em 1933 e estrelado por Katherine Hepburn, interpretando uma aviadora –, como “um dos raros filmes contados do ponto de vista sexual de uma mulher”, cita Damon Wise no artigo Festival Lumière: Dorothy Arzner, uma pioneira em Hollywood, sobre a homenagem francesa recebida pela criadora.

Sarah and Son/Foto: reprodução

Os projetos de historiografia feminista, por vezes também denominada de herstory – usando um trocadilho em inglês que sugere a oposição à história oficial denominada history, termo entendido como “história dele”, valendo-se da troca entre os pronomes possessivos his (dele) e her (dela) – buscam captar as instâncias histórica e culturalmente específicas das ações autodefinidas de mulheres libertas das normas patriarcais.

Arzner era assumidamente lésbica e comumente trajava terno e gravata, assumia publicamente sua orientação sexual e a identidade das companheiras com quem dividiu a vida, embora fosse reconhecidamente reservada.

“Judith Mayne, teórica do cinema queer, tem estado na vanguarda da recuperação dos textos cinematográficos de Arzner e da imagem fetichista feminista da própria Arzner, para mostrar que a figura da lésbica, particularmente o butch, perturba as pretensões heterossexuais características de um olhar masculino”, destaca Geller, no artigo já mencionado.

Neste sentido, a realizadora foi um dos poucos nomes femininos do cinema que mereceram estudos acadêmicos específicos com base nas teorias feministas, assim como de teóricos queer, entendendo queer como aquele que se diz ou é dito como indivíduo fora das normas heterossexuais e binárias, comuns à sociedade patriarcal em relação ao comportamento sexual.

Dorothy Arzner na direção de “Craig’s Wife”/Foto: reprodução

Arzner merece atenção por evidenciar a convergência de disciplinas como historiografia, cinema, estudos culturais, estudos de gênero, estudos feministas e teorias queer, devido às temáticas abordadas em suas realizações, sendo por isso considerada como uma das maiores contribuições para o chamado cinema de gênero. É significativo salientar a importância do uso do termo gênero como uma categoria de análise essencial para rever os feitos de muitas mulheres não só no cinema, mas em quase toda a historiografia que conhecemos.

É fundamental entender gênero como “um termo proposto por aquelas que defendiam que a pesquisa sobre mulheres transformaria fundamentalmente os paradigmas no seio de cada disciplina. As pesquisadoras feministas assinalaram muito cedo que o estudo das mulheres acrescentaria não só novos temas, como também iria impor uma reavaliação crítica das premissas e critérios do trabalho científico existente”, ressalta a historiadora americana Joan Scott, no artigo Gênero: uma categoria útil para a análise histórica.

Scott é reconhecida por seus aportes para os estudos de gênero e adepta desta metodologia que “implica não apenas em uma nova história das mulheres, mas em uma nova história”, o que decididamente está acontecendo com a história da cinematografia.

Dorothy Arzner era reconhecida pelo profissionalismo/Foto: reprodução

Ao deixar os estúdios Arzner havia realizado dezessete longas-metragens e seus últimos dois filmes antes da saída da Paramount ressaltam a convicção de que era preciso ser coerente e tratar diante das câmeras o que se pensava distante delas, sendo o musical de 1940, Dança, Rapariga, Dança considerado mais um importante filme protofeminista e incrivelmente pouco entendido pelo público e pela crítica.

Depois de sua saída da Paramount, por motivos até hoje pouco esclarecidos, a criadora seguiu produzindo para estúdios menores desenvolvendo projetos educativos, logo trabalhou em teatro, rádio e publicidade até tonar-se professora de cinema.

Como professora de Cinema na Universidade de Los Angeles lecionou para mais de uma geração importante no cinema americano, como é o caso de seu aluno Francis Ford Coppola, entre diversos que citam sua influência: Quando eu era estudante de graduação, tinha uma professora maravilhosa que admirava – uma diretora mulher, de fato, a única diretora de Hollywood. O nome dela era Dorothy Arzner. Ela foi muito encorajadora para mim no momento em que eu precisava de incentivo. Então, eu me lembro dela muito favoravelmente”, declarou Coppola em entrevista à Academy of Achievement.

Dorothy Arzner, cortesia do British Film Institute/Foto: reprodução

Dorothy Arzner foi e segue inspiradora para quem conhece seu legado. Ela morreu aos 82 anos em 1979 sem receber um Oscar em seu nome. Foi homenageada no Festival Lumière da França com uma retrospectiva no História Permanente das Mulheres Cineastas, edição de 2016, iniciativa que propõe revisitar a filmografia de mulheres que fizeram história nesta arte.

Destacou-se na homenagem a atualidade dos temas tratados por Arzner ainda nos primórdios do cinema. Mesmo sendo uma das mais interessantes, significativas e influentes personalidades artísticas da chamada Era de Ouro do cinema americano, o que marca sua memória em Hollywood, indústria que ajudou a criar, é uma singela estrela na Calçada da Fama.

“Não é maravilhoso que você tenha tido uma carreira tão boa, quando (na sociedade da época) não se tinha o direito a ter uma carreira?”, escreve Katharine Hepburn em telegrama enviado à amiga diretora quando Dorothy Arzner foi homenageada pela DGA – Directors Guild of American, o sindicato dos diretores americanos, em 1975.

Inscrever as mulheres na história do cinema não será tarefa fácil, mas sem dúvida é um ato necessário e justo, sem o qual estaremos sempre com apenas uma parte da história. Dorothy Arzner nos provoca à reflexão sobre como o gênero deve ser vivido em ambos lados da câmera.

 

 

 

 

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  • Claudia Aguiyrre

    Claudia Aguiyrre é cineasta, artista multimeios, educadora e pesquisadora, graduada em Comunicação Social – Habilitação...

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