Não tem sido nada fácil ser mulher no Brasil nessas últimas semanas. Nunca foi, na verdade, mas a carga de misoginia, ódio e violência dos últimos acontecimentos demonstram que ser mulher e brasileira é doloroso, arriscado e assustador.

Uma menina de 11 anos teve seu direito legal ao aborto negado e foi coagida por representantes do judiciário a manter a gestação indesejada e extremamente arriscada até o fim; após vazamento criminoso de suas informações médicas, uma atriz de 21 anos foi forçada a levar a público a violência sexual que sofreu, uma vez que, apesar de não ter lançado mão de seu direito ao aborto, também foi alvo de ataques perversos, por ter escolhido parir e entregar a criança para a adoção. O que exigiam de uma, não foi suficiente para a outra.

Num julgamento inquisitório sem direito a defesa, ambas foram condenadas, apedrejadas em praça pública e lançadas à fogueira por “cidadãos de bem”, que mascaram suas pulsões de ódio com discursos vazios de “amor à vida”.

De carona nas polêmicas e na tendência conservadora que recentemente, com uma mudança de jurisprudência, retirou o direito ao aborto de milhares de mulheres estadunidenses, aconteceu no Brasil uma audiência pública, convocada pelo governo federal, com o objetivo único de dificultar ainda mais o acesso ao aborto legal no país, endossando argumentos falsos e estigmatizantes, presentes em uma norma técnica emitida pelo Ministério da Saúde sobre o atendimento a ser prestado na realização do procedimento.

Quando nos deparamos com casos como os que estiveram nos holofotes recentemente (e que são mais comuns do que queremos imaginar), nos compadecemos com essas meninas e mulheres e retornamos às nossas próprias experiências, conscientes de que o medo é um elemento presente nas vivências de todas as mulheres e que não devemos nos esquecer dele.

Na dificuldade de se elaborar sentidos para este estado de barbárie, clamamos por justiça. Mas não qualquer justiça, justiça institucional, penal, vingativa. Para a juíza e a promotora que pressionaram a menina, punição. Para a enfermeira, o fofoqueiro e a futura candidata, mais do mesmo. Afinal, difamação é crime, quebra de sigilo é crime, constranger uma criança daquela maneira, se não for, certamente deveria ser crime, certo?

A experiência nos mostra que estamos cada vez mais ativas, combatentes e resistentes na luta por direitos que contemplem as mulheres, mas, ainda assim, em muitos momentos, a sensação predominante é de estagnação e retrocesso. Os ataques que chegam de várias vias e marcam sua presença nas relações cotidianas mostram que lutamos muito, mas estamos perdendo feio. No topo disso tudo, tenho uma triste notícia para dar: não é o sistema de justiça criminal que vai nos ajudar a reverter essa situação. 

É preciso lançar um olhar crítico sobre as reais possibilidades de libertação por um sistema que cria crimes e aplica leis de forma misógina, racista e classista sob o pretexto de promover segurança e proteção, ao mesmo tempo que nos criminaliza e impede que exerçamos autonomia sobre nossos próprios corpos.

Estamos falando de um sistema que ao longo de sua história validou aparelhos ideológicos e normas sociais que estabeleceram as mulheres como propriedade do homem da família patriarcal, juridicamente autorizado a dispor da vida delas como bem entendesse.

Um sistema que há pouquíssimos anos validava o casamento com a vítima como causa extintiva da punibilidade para o estupro. 

Entre outras engrenagens, o modo de produção capitalista fomenta o sistema patriarcal como mecanismo colonial de dominação que visa a manutenção de mulheres dóceis, controladas e obedientes. A violência escancarada sob processos punitivistas atua para que não haja rotas de fuga dos papéis determinados a mulheres e utiliza a manutenção de um estado de medo e temor como ferramenta deste processo: nos fazem tementes à lei, à Deus e a tudo mais que for possível criar para aniquilar a emancipação de uma mulher sobre sua própria existência enquanto sujeito de direitos. 

Enquanto nos forçam a combater pela via institucional os ataques que sofremos, buscando legitimar estratégias que sabemos que não funcionam, como a criação de leis populistas que não serão cumpridas e a aplicação de penas que não ressocializam nem solucionam conflitos, as armas do sistema punitivo estão apontadas para nós. Insistimos em validar as regras de um jogo que foi moldado para nos fazer perder. Quando não perdemos na legislação, perdemos na interpretação da norma ou no tratamento que recebemos no processo.

Sofremos violência e, ao buscarmos alguma reparação, somos desacreditadas, revitimizadas, criminalizadas, repetidamente punidas. Mas, ainda assim, a ideologia de um sistema de justiça imaculado e imparcial está tão impregnada culturalmente que, mesmo que haja notícia diária de que a realidade que se apresenta é abissalmente oposta à imagem que é vendida, o ideário punitivista se faz presente como único recurso capaz de fazer cessar os atos violentos e promover justiça social.

Ao discutir sobre as problemáticas históricas dos sistemas prisionais, Angela Davis aponta sobre a dificuldade de visualizarmos um mundo sem prisões e meios punitivos para lidarmos com situações de conflito. A ilusória libertação a partir de uma compreensão punitivista se torna mais uma forma de acorrentamento que domina corpos e pensamentos, prendendo a um infindável ciclo de violências múltiplas que não deixam espaços para se pensar em caminhos que tragam à tona as construções do bem-viver por meio de atuações que abracem o cuidado amplo, a emancipação e estratégias políticas que possam afetar os pilares das estruturas de opressão.

Buscar respostas no sistema punitivo é uma armadilha. Não é um sistema feito para nós.

É um sistema feito por eles e para eles, apresentado como a resposta universal para todo tipo de problema que o capitalismo patriarcal não é capaz de resolver. O próprio conceito de justiça que carregamos se faz equivocado a partir da lógica de causa e efeito imediato.

É necessário trazermos a compreensão crítica para além das prisões e binaridades simplistas entre bem e mal, uma vez que entre mocinhos e bandidos há o abismo de ambivalências que marcam nossa condição humana. A mera punição individual jamais irá findar o sofrimento que diz respeito a toda uma sociedade e não somente a um indivíduo. A condenação de fulano, a prisão de sicrano, são exceções que perpetuam a regra de manutenção das estruturas de poder, ao mesmo tempo que causam uma falsa satisfação, uma sensação de conforto tão efêmera quanto a última manchete do dia. 

Pensar soluções para a violência contra a mulher sem pensar em punição e prisões é um desafio, um exercício de imaginação urgente sobre o qual precisamos dedicar nossos esforços se quisermos nos livrar do fardo de ter de apagar incêndios por todos os lados, vindos da grande fogueira inquisitória que alimentamos com nosso punitivismo.

Enquanto depositarmos nossas esperanças nas ferramentas de um sistema cuja razão de existir é exercer controle e dominação, nossa perspectiva de futuro acabará estraçalhada nessa máquina de moer gente, que sustenta um modelo de sociedade que tem a violência institucional como instrumento para restringir, comandar e assassinar quem diverge das verdades hegemônicas, daquilo que é estabelecido como “normal”.

O caminho da institucionalidade deve ser disputado, como via disponível na sociedade em que vivemos hoje, mas precisamos aumentar a nossa capacidade de pensar fora da caixa do encarceramento e do punitivismo, ousar criar outras saídas, outros processos, outros sistemas.

Se queremos uma sociedade menos violenta, não faz sentido validar a violência como única resposta possível.

É preciso aprofundar o debate e trabalhar estratégias de prevenção que sejam mais eficazes que uma ameaça vazia de pena. Chegar na raiz dos problemas, descobrir as causas de sermos alvo de violências epidêmicas e erradicar essas causas. 

A potência dos múltiplos movimentos feministas nos atuais processos de transformações sociais são fundamentais na avaliação do que construímos como conceitos de justiça e liberdade. É na luta que nos encontramos, assim como encontramos quem partilha das mesmas dores.

As respostas irão aparecer a partir da criação de espaços seguros de compartilhamento de nossas vivências individuais e coletivas e, principalmente por meio da marcação de lugares de resistência que trazem a palavra à tona no lugar do ato violento.

Por fim, trago algumas questões para que este diálogo não cesse, ao contrário, permaneça vivo e ativo em nossas construções: Você se sente protegida pelo sistema penal? Você acredita que a pena é uma forma eficaz de reparação e responsabilização? Por que seguimos presas nessa ideia? De quais outras ferramentas podemos lançar mão, diante das complexas circunstâncias que envolvem as condutas atualmente descritas como crime? 

São reflexões necessárias, que parecem óbvias, mas talvez não sejam.

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  • Lívia Reis

    Especialista em Ciências Penais, co-fundadora do Coletivo Nós Seguras e do Projeto Transversais, feminista, abolicionist...

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