Na última quarta-feira (7), acompanhamos mais um capítulo do julgamento do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal (STF), que discute a tese jurídica defendida pelo Governo de Santa Catarina de que os povos indígenas só teriam direito a reivindicar territórios que estivessem ocupando ou disputando em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal. Em 2019, o STF deliberou que o caso do povo Xokleng teria repercussão geral, o que significa que a disputa da Terra Indígena Ibirama-Lakaño pode impactar as demarcações de todo o país.   

“Essa tese não vem só para tirar as nossas terras, ela também vem para esconder um massacre que o próprio Governo do Estado tem feito aos povos originários desde sempre. Foi o poder público que pagou os bugreiros [milicianos] para exterminar o nosso povo. Hoje, como ele não pode acabar com facão e espingarda o povo originário, ele tenta nos matar através de Projetos de Lei, de teses como o Marco Temporal, de Medidas Provisórias. Hoje, eles estão tentando nos matar na caneta, como já dizia minha avó”, afirma Nandja Shirlei da Rocha, cacica no território ancestral Goj Koña, em Blumenau.

Este relato feito pela liderança indígena do povo Laklãnõ Xokleng, do Vale do Itajaí, vai ao encontro da história contada no livro Os Índios Xokleng – Memória Visual, publicado em 1997 pelo antropólogo Silvio Coelho dos Santos, que foi utilizado pelo ministro Alexandre de Morais para fundamentar o seu voto contra o marco temporal. 

“Esses índios viviam no interior de SC até 1930, quando os bugreiros exterminaram quase todos a mando de autoridades locais. Há relatos de que 234 indígenas foram covardemente assassinados nesse ano, inclusive crianças foram jogadas para cima, espetadas com punhais e mortas. Os sobreviventes dessa comunidade indígena, os Xokleng, fugiram do local, evadiram-se e foram procurar outras áreas, porque, se tentassem voltar, os poucos que sobreviveram seriam mortos”, afirmou o ministro. 

Samuel Pripra, que vive em uma área retomada no Parque da Serra do Itajaí e estuda pedagogia no Instituto Federal Catarinense, tem sua história de vida marcada pelas condições do seu povo, que vêm sendo massacrado desde a colonização. 

“De 1850 para 1900, quando o Governo paga os bugreiros para exterminar com o povo Laklãnõ Xokleng, nós somos quase extintos da nossa região, nosso lugar e nossa terra. Coloca-se o colonizador. Ele entra nesse tempo, porque o Governo o traz com promessas de terras e de um lugar melhor. Quando eles chegam aqui, eles se deparam com o meu povo. Começam essas denúncias de que existia um povo aqui, quando eles chegam. Começa uma briga por causa de território”, conta a liderança indígena.

Segundo a representante da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (populações indígenas e comunidades tradicionais) do Ministério Público Federal de Santa Catarina, Lucyana Pepe, se o Supremo entender que a aplicação do marco temporal para a caracterização da tradicionalidade da terra indígena é inconstitucional, qualquer lei aprovada nesse sentido será inaplicável. A votação na última instância do poder judiciário deve retornar em até noventa dias, por conta do pedido de vista do ministro André Mendonça. Até o momento, os povos indígenas têm dois votos contra a tese, e um a favor. 

O MPF atua como fiscal da lei no processo em tramitação. O Procurador-Geral da República se manifestou nos autos pela inconstitucionalidade da tese, por afrontar o art. 231, parágrafos da Constituição da República e por ser incompatível com o conceito de posse tradicional por ela adotado.

“O direito originário dos povos indígenas às suas terras tradicionais é reconhecido desde o período colonial, na Carta Régia de 30 de novembro de 1611, e tem se mantido na legislação e nas constituições brasileiras desde então. Portanto, a adoção da data de promulgação da Constituição de 1988 como referencial para o reconhecimento aos indígenas dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam ignoraria a existência de uma ordem normativa prévia à 1988”, explica Pepe.

Audiência pública sobre Marco Temporal na Alesc em 15 de maio. Foto: Rodolfo Espínola/AgênciaAL.

Alesc realiza audiência pública sobre tese sem presença indígena 

O caso em discussão no STF teve início em 2009, quando o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) entrou com uma ação de reintegração de posse da área identificada como território indígena, atualmente ocupada pelos povos Xokleng, Kaingang e Guarani. Parte dela é sobreposta a uma área de proteção ambiental e disputada por agricultores. O argumento do Estado se baseia na tese utilizada pela Advocacia-Geral da União (AGU) em um parecer sobre a demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima, que usou o critério do Marco Temporal. 

O atual governo estadual segue em consonância com este entendimento. Em viagem a Brasília em 24 de maio, o governador Jorginho Mello (PL) se reuniu com governadores para discutir o julgamento da tese. O mandatário coloca o setor do agronegócio em contraposição aos direitos indígenas. 

“Isso nos deixa preocupados, pois se o Marco for derrubado, uma tragédia irá acontecer. Então, conversamos sobre o assunto e como nós, dos governos estaduais, podemos encontrar um caminho para isso. Um caminho pacificador, que dê a garantia de políticas básicas aos indígenas, mas que principalmente garanta terra para o agricultor, que produz, que trabalha e gera desenvolvimento para o Brasil”, disse Mello à Agência Catarinense de Notícias, canal de informações do executivo.  

Em 15 de maio, uma audiência pública sobre o marco temporal foi realizada sem a presença dos povos originários na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc). Na ocasião, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE/SC), representada por Márcio Vicari, sustentou a defesa da tese. “Há localidades em que a demarcação envolve um latifúndio de um único proprietário, mas no nosso estado, isso impacta na realidade de centenas de famílias, muitas delas de produtores rurais”, afirmou. 

Para Samuel Priprá, a estratégia do Governo permanece a mesma. Antes ele colocava o colonizador contra os povos indígenas. Hoje, a situação se repete com os agricultores. 

“O Governo novamente coloca o indígena contra o pequeno agricultor, que só tem aquele pedaço de terra para sobreviver. Cria-se esse marco temporal, que acaba com a história de um povo que vive há mais de cinco mil anos neste território, e ele diz que está fazendo algo pelo agricultor. O agricultor acha que está bem, seguro, mas não enxerga que o Governo o coloca contra o indígena. Por que ele coloca os agricultores contra nós? Porque eles têm os seus interesses”, afirma a liderança Laklãnõ Xokleng.

Em Blumenau, lideranças indígenas de SC debatem a tese jurídica. Foto: Bruno Pereira.

Povos indígenas apresentam sua visão sobre Marco Temporal em Blumenau

Diante da falta de oportunidade em apresentar a sua posição na Alesc, os povos originários organizaram um evento com lideranças indígenas, políticas e representantes de órgãos ligados à demarcação de terras em Blumenau, em 31 de maio. As pessoas e entidades presentes decidiram redigir uma carta para encaminhar ao Senado Federal e ao STF. Na casa legislativa, está tramitando o PL 2903, antigo PL 490/2007 – conhecido como PL do Marco Temporal. 

“Esse evento vem mostrar para a sociedade que estamos de olho na arma política, que é a única arma que o homem branco tem para nos matar atualmente. Queremos conscientizar as pessoas, o cidadão comum, que os agricultores, que estão sendo manipulados pelo Governo de SC e pelos seus deputados, são também vítimas do mesmo Estado que nos mata desde antigamente. Essa é a nossa visão sobre o Marco Temporal. Nós somos contra essa tese, que é um genocídio legislado”, explica a cacica Nandja, uma das organizadoras do encontro. 

O deputado estadual Marcos José de Abreu (PSOL), conhecido como Marquito, foi o único parlamentar a comparecer no evento. Em entrevista ao Catarinas, o deputado critica a ausência de lideranças indígenas, de representantes da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e do Ministério dos Povos Indígenas na audiência pública realizada na assembleia estadual. “É muito ruim um debate feito dessa forma, sem ampla participação”, diz.

Marquito defende que sejam encontrados caminhos para respeitar os direitos de todas as pessoas envolvidas. “Há famílias não indígenas que precisarão ser indenizadas ou realocadas. Os direitos dessas famílias precisam ser respeitados, pois também têm ocupação histórica dessas áreas. Igualmente, há famílias indígenas que precisam de suas terras para garantir a sobrevivência física e cultural. E os direitos dessas famílias, garantidos na Constituição atual, também precisam ser respeitados”, afirma. 

Seu mandato tem trabalhado na construção de uma sala de mediação de conflitos e já realizou reuniões com algumas lideranças e representantes de organizações, como a Funai, o Ministério dos Povos Indígenas, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar e a Polícia Federal. “Como a Constituição de Santa Catarina contém o artigo 148-A, o Estado pode escolher entre indenizar e reassentar os proprietários de boa fé. Em outros estados brasileiros, só existe a opção de indenização. Para indenizar, é possível buscar recursos com o Governo Federal. Para reassentar, o Incra pode ser acionado para a busca por terras, priorizando sempre a comunidade ou município ao qual a família pertence. Nós, parlamentares, podemos incluir os valores necessários no orçamento do estado e fazer uma força-tarefa para buscar esses recursos”, explica o deputado.

Diferentes representantes indígenas participam de evento em Blumenau. Foto: Bruno Pereira.

Marco Temporal coloca em risco outros territórios e meio ambiente  

A aprovação da tese traria insegurança jurídica ao país e retornaria os conflitos em terras pacificadas, além de fortalecer os conflitos e ataques recorrentes aos povos originários. O povo indígena da Tekoa Itaty, Terra Indígena do Morro dos Cavalos, na Grande Florianópolis, aguarda a homologação, etapa final da demarcação. Para eles, a aprovação do marco temporal dificulta, inclusive, a conquista dos seus direitos às suas terras ancestrais. 

“Antes de chegar europeu, a gente estava livre. Não tínhamos a terra limitada. Se o Marco Temporal for aprovado fica ruim para os povos indígenas de todo o Brasil. Uma terra como o Brasil, ela é indígena, mas muita gente foi enganada pelo Governo. Eu fico muito preocupado por todas as aldeias, não só aqui no Morro dos Cavalos, porque o Marco Temporal deixará tudo ainda mais difícil para todo mundo”, diz o cacique Teófilo Gonçalves, de 53 anos. 

Os estudos para o reconhecimento do território indígena em Palhoça começaram antes de 1988, ou seja, a aldeia Tekoa Itaty, em teoria, não deveria ser afetada com a tese do marco temporal. Ainda assim, o atual prefeito do município, Eduardo Freccia (PSD), e o deputado estadual Camilo Martins (PSD), seu padrinho político e antecessor, usaram o argumento para questionar a demarcação desse território na audiência pública da Alesc

Para o parlamentar aliado às causas indígenas, o foco da tese jurídica é equivocado, pois boa parte das terras catarinenses não é afetada por essa definição de tempo. “A TI do Morro dos Cavalos é o melhor exemplo. Está mais que comprovado que a população Guarani que ali vive já estava no local em 1988. Além disso, há moradores residindo dentro e no entorno do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro. Por lei, essas famílias deveriam ter sido retiradas. Ainda não foram. Precisarão ser com ou sem demarcação”, afirma Marquito. 

Mais de 80% da terra Guarani está sobreposto à área de preservação do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro. Dados do MapBiomas, apontam que os territórios indígenas estão entre as principais barreiras contra o avanço do desmatamento no Brasil. Entre 1990 e 2020, as terras indígenas perderam apenas 1% de sua área de vegetação nativa, enquanto nas áreas privadas a perda foi de 20,6%. Os povos originários desenvolvem um papel fundamental na proteção do meio ambiente, e no combate às mudanças climáticas. 

“O planeta está ameaçado caso seja aprovado. Primeiro começando pelo extermínio dos protetores e guardiões da mata, que somos nós, os povos indígenas. Isso vai gerar desproteção à terra, porque a maioria dos territórios que têm mata e água boa são os territórios indígenas. Essa tese sendo aprovada, vários territórios indígenas serão entregues aos garimpeiros, madeireiros e ao agronegócio. Isso é o extermínio da biodiversidade do Brasil”, afirma Liara Antunes, liderança Mbyá-Guarani do Morro dos Cavalos.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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