Único quilombo de Florianópolis luta por titulação há uma década
Justiça determina criação de Câmara de Conciliação entre comunidade quilombola e Governo de SC, que detém propriedade da área de 961 hectares.
A única comunidade quilombola de Florianópolis pode respirar com mais tranquilidade até agosto. Na última semana, a Justiça Federal suspendeu a tramitação do processo de reintegração de posse, movido pelo Instituto do Meio Ambiente (IMA), órgão ambiental do Governo de Santa Catarina, que ameaçava expulsar nove famílias do Quilombo Vidal Martins, que ocupam o camping do Parque Estadual do Rio Vermelho desde 2020.
Na audiência realizada em 11 de maio foi determinada a criação de uma Câmara de Conciliação para encontrar soluções conjuntas em relação à disputa entre quilombolas e IMA, atual gestor do Parque. Diante da disposição conciliatória, o juiz Marcelo Krás Borges também suspendeu a ação civil pública do Ministério Público Federal (MPF) contra o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que resultou no reconhecimento da comunidade em julho de 2022. Desde então, a comunidade aguarda a titulação, último passo da regularização das suas terras.
“A gente se sente prejudicado, porque essa titulação já deveria ter saído. Fica nesse impasse. Estamos na retomada [do camping] há três anos, esperando a titulação para construir as casas. Os mais velhos vão ficando mais debilitados, as crianças vão crescendo e nós cada vez mais sem acreditar”, diz Helena Vidal de Oliveira, uma das líderes da comunidade e trineta de Vidal Martins, que junto com a irmã iniciou o processo de reconstituição da história da sua família.
De acordo com o Incra – autarquia federal responsável pela regularização de territórios quilombolas – a titulação em nome da Associação dos Remanescentes Quilombo Vidal Martins (ARQVIMA) depende de um acordo entre os órgãos que detêm a propriedade da área, ou seja, o Governo do Estado de Santa Catarina e o Instituto do Meio Ambiente (IMA).
“A área delimitada também incide sobre terrenos de marinha e acrescidos, que não são tituláveis, e estão sob responsabilidade da Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Se não houver óbice ambiental, nestas áreas pode ser autorizado o uso sustentável pela SPU, porém, são áreas alagáveis de banhado. Por se tratarem de áreas públicas, a legislação não prevê a publicação de decreto presidencial para desapropriação”, diz trecho da nota da autarquia.
Em 18 de agosto, as partes devem indicar suas representações, as informações e propostas sobre a ocupação do território, assim como o possível zoneamento do território quilombola. Ao MPF ficou determinada a apresentação de um relatório antropológico sobre a atual situação e as necessidades da comunidade. Para a procuradora Analúcia Hartmann, o encaminhamento dado pela audiência foi positivo. “A perspectiva agora é que haja entendimento entre a União e o Estado, e que a titulação em favor da comunidade considere suas necessidades e também a preservação do meio ambiente”, afirma.
O poder executivo estadual disse que o tema é mais uma questão deixada em aberto e sem um enquadramento legal formalizado por parte da antiga gestão. “O momento é, portanto, de colocar todas as partes para discutir demandas e limites de atuação para tentar encontrar uma solução que seja benéfica para todos os envolvidos. O Governo de Santa Catarina está aberto ao diálogo, mas toda sua atuação sempre será dentro dos limites do que prevê as legislações estadual e federal”, afirma em um trecho da nota. Em complemento, o IMA informou ter nomeado servidores para formação de um grupo a fim de que as partes possam dialogar e chegar a um acordo acerca da situação.
De 19 processos de regularização de território quilombola, apenas um foi finalizado em SC
Com base em informações do Cadastro Único/2020 e de lideranças quilombolas, do movimento negro e do Conselho Estadual da População Afrodescendente, a Secretaria da Assistência Social, Mulher e Família identificou 21 comunidades quilombolas em Santa Catarina em 2020, as quais estavam localizadas em 16 municípios diferentes e eram constituídas por 1350 famílias e 4595 pessoas.
O Incra, com dados atualizados em dezembro de 2022, mostra que há dezenove comunidades quilombolas em processo de regularização de suas terras, destas apenas uma teve a titulação expedida em seu nome, o quilombo Invernada dos Negros, situado nos municípios de Campos Novos e Abdon Batista, no oeste do estado. Apenas seis processos avançaram nas etapas de regularização, entre eles o que corresponde à comunidade Vidal Martins.
Em 2012, as irmãs Helena e Shirlen Vidal de Oliveira iniciaram a difícil tarefa de investigar e organizar a história dos seus ancestrais através de documentações oficiais. A pesquisa foi base para a certificação da comunidade como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares em outubro de 2013.
“Eu e minha irmã começamos porque a minha mãe tem uma certidão em que ela se chama Martins, e achamos muito estranho. Nós sempre soubemos que o meu avô tinha muitas terras, mas isso gerou dúvidas na gente. Se o nosso avô tinha tanta terra, por que nós não temos nada? Começamos a procurar pelos cartórios, mas encontramos muitos entraves, muitos documentos não estavam lá”, conta Helena. Depois de uma intensa busca em cartórios, museus, cemitérios, arquivos, etc., as irmãs encontraram muitas respostas no FamilySearch.
Conforme demonstra o dossiê Quilombo Vidal Martins – Narrativas e Memórias, da mestra em gestão da informação Kariane Regina Laurindo, a extensa pesquisa das irmãs “revelou diversos dados históricos importantes sobre a história da escravidão em Florianópolis, história que é invisibilizada/silenciada”.
“Não podemos deixar a nossa história morrer. A história europeia é muito contada, mas chega a história dos escravizados, ela não é contada. Eu sempre digo para os meus filhos e sobrinhos que agora tem uma biblioteca sobre a história do Quilombo Vidal Martins que era velada, sempre foi apagada. Essa cidade, esse bairro, sempre tentou apagar. Nunca foi contada, agora é contada da maneira certa”, diz Helena.
História do Quilombo Vidal Martins
Em aproximadamente 1750, os primeiros antepassados de Vidal Martins teriam chegado ao Norte da Ilha em um navio negreiro. Jacintha, avó de Vidal Martins, teria sido traficada em meados do século 18. Segundo a comunidade, as terras, onde atualmente está localizado o Parque Estadual do Rio Vermelho, foram herdadas dos antigos senhores de engenho que escravizaram os Vidal Martins. O quilombo homenageia o escravizado Vidal Martins, que nasceu em 1875 e morreu após 1910.
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“O Vidal Martins tem muita troca de sobrenome por causa dos senhores que eles tinham. Dele saiu o meu bisavô, do meu bisavô saiu o meu avô. A referência que temos é o Vidal Martins, muito embora tenha a Joanna [mãe do Vidal], ele nasceu dentro do Parque e não saiu aqui de dentro. A minha mãe também nasceu aqui, meu tio, o meu avô, minha avó e ele”, afirma Helena.
Ela conta que seus antepassados viveram na região, incluindo o camping, até a década de 1960, quando foram expulsos para a construção do Parque. Segundo o Incra, a implementação da estação provocou uma intensa transformação ambiental na região com a retirada de vegetação nativa, corte de dunas e drenagem das lagoas antes existentes, e o plantio de espécies exóticas, principalmente pinus e eucaliptos.
“A nossa família passou muita fome quando perdeu o território. Ficaram sem condições nenhuma. As pessoas de Florianópolis tinham muito o hábito de ir pescar no Rio Grande [do Sul]. Eu sou filha da pesca. Minha mãe foi com o meu pai para pescar, e eu nasci lá. Depois voltamos para cá, eu fui criada totalmente aqui”, afirma.
Retomada do território ancestral
Desde 2020, alguns membros da comunidade quilombola ocuparam o camping da unidade de conservação de proteção integral. O local estava desocupado desde 2018, pelo vencimento do contrato da empresa que o administrava. Na época, a comunidade criou uma organização social para participar da licitação para administrar o Parque, mas foi desclassificada. A área é de responsabilidade do IMA, que pede a sua reintegração judicialmente.
Atualmente nove famílias vivem no espaço, mas a comunidade quilombola é constituída por 31 famílias que vivem na região. Com a titulação, as demais famílias viveriam em pontos estratégicos do território, que corresponde a 961 hectares, que incidem integralmente no Parque. Há vários locais importantes para a comunidade, chamados de “pontos dos escravos”. “São lugares onde as pessoas escravizadas se reuniam, por onde elas passavam, onde eram as senzalas”, diz Helena.
No camping são desenvolvidas diversas atividades. O local possui salas de aula, onde jovens e adultos aprendem através do método Educação Escolar Quilombola, que visa uma aproximação entre os saberes da comunidade e os curriculares e é reconhecido pelo Ministério da Educação (MEC).
“A educação escolar quilombola tem os professores das áreas e os professores da comunidade, que é o saberes e fazeres [disciplina voltada às questões da comunidade]. Cada projeto tem um professor da comunidade para estar junto, para que as tomadas de decisões sejam com e para a comunidade”, explica o educador Jader Fagundes, que atua desde o início deste ano no Quilombo Vidal Martins.
Entre os projetos desenvolvidos ali, está o viveiro de mudas nativas com o plantio e desenvolvimento de plantas para a recuperação do Parque; a horta orgânica, que além de promover um intercâmbio cultural entre estudantes, também serve para a alimentação da comunidade quilombola; a agrofloresta, com árvores frutíferas; as composteiras, onde vão os resíduos da escola e da comunidade.
As instalações do camping estão funcionando, mas ainda possuem problemas na infraestrutura, principalmente para quem vive ali. Com a abertura do camping para o público no início de 2023, os recursos econômicos gerados passaram a contribuir com a manutenção do espaço.
“As pessoas ficaram mais esperançosas com a abertura do camping, porque pelo menos um direito já conseguimos. Abriu um protagonismo bom para a gente. Trouxe força, independência e visibilidade à luta. Conseguir fazer a gestão do camping foi muito importante”, diz Helena.
A estrutura está sendo reformada por conta dos recursos liberados pela Justiça Federal em ação ajuizada pelo MPF. Foram realizadas a pintura de imóveis, a troca do forro da cozinha principal, a recuperação dos banheiros, a renovação de uma sala de aula e da “quilomboteca”, como é chamada a biblioteca. Para Fagundes, a titulação fará com que outros projetos avancem. “A titulação é o mais esperado para que as pessoas da comunidade possam se envolver mais e saírem um pouco dessa questão jurídica. Isso demanda muita energia e tempo”, afirma.