Acampamento Terra Livre Sul faz resistência ao Marco Temporal
Mobilização indígena reúne povos Guarani, Laklãnõ Xokleng, Kaingang, Charrua e Xetá, dos três estados do Sul do Brasil para debater a visibilidade social dos direitos indígenas
Entre os dias 13 e 18 de agosto, cerca de cem indígenas dos povos Guarani, Laklãnõ Xokleng, Kaingang, Charrua e Xetá, estiveram mobilizados no Acampamento Terra Livre Sul, que reuniu representantes dos três estados da região, na Terra Indígena do Morro dos Cavalos, em Palhoça, região metropolitana de Florianópolis (SC). Na programação, ganharam destaque discussões sobre a visibilidade social dos direitos indígenas diante da tese do Marco Temporal e os seus impactos nas demarcações de terras indígenas, a diversidade dos povos, as suas perspectivas para a educação e o protagonismo das mulheres.
Cleber Karipuna, liderança da base da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), em entrevista ao Catarinas, disse que mobilizações regionais como o ATL Sul demonstram a força e a unidade do movimento indígena, que é pensada de forma coletiva.
“O 5º ATL Sul vem em um momento muito propício. A gente está retomando o debate sobre o julgamento do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal. A continuidade da tramitação do PL 2903, antigo 490, no Senado, que fala sobre o Marco Temporal, mas também sobre outras medidas também danosas para os povos dos territórios indígenas”, afirmou.
O primeiro ATL nacional – a maior mobilização indígena do país – aconteceu em 2004 a partir da ocupação realizada por povos indígenas do Sul do país em frente à Esplanada dos Ministérios, em Brasília, que logo foi aderida por lideranças e organizações indígenas de outras regiões. Da mesma forma, os povos originários da região foram pioneiros na edição regional que chegou à sua quinta mobilização, assim como a edição baiana. Neste ano, no Mato Grosso foi realizado o primeiro ATL do estado.
A hipótese do Marco Temporal e da demarcação de terras segue tendo prioridade entre as discussões. A cacica Antonia Konheco Pate, da aldeia Koplag da Terra Indígena Laklãnõ Xokleng, apontou que sem a terra, outros direitos deixam de ser garantidos.
“Não temos escola para os nossos filhos. Não temos futuro na saúde indígena, não podemos sair para fora porque nos discriminam. Quando saímos para pedir emprego, fecham a porta para a gente. Quando as mulheres vão ao médico, ao hospital, também não são bem atendidas, por causa da demarcação”, relatou.
Pate é uma liderança Xokleng da Terra Indígena, disputada com o Governo de Santa Catarina no julgamento da tese do Marco Temporal que deve ser retomado em setembro. Ainda que o artigo 231 da Constituição reconheça os direitos originários sobre as terras aos povos indígenas que tradicionalmente a ocupam, a tese limita aos territórios que estavam ocupados em 1988, na promulgação da Constituição. No Senado, o avanço do Projeto de Lei 2903, antigo 490 na Câmara, ameaça os direitos indígenas a partir da mesma perspectiva.
Povos indígenas do Sul ocupam Alesc contra o Marco Temporal
Uma das atividades do acampamento foi um ato público no centro da capital catarinense e um debate na Assembleia do Estado de Santa Catarina (Alesc) contra o Marco Temporal, que aconteceu em 16 de agosto.
“Nós viemos até Florianópolis, não ficamos somente no território, para dialogar com toda a sociedade da importância de dizer não ao Marco Temporal, porque não estamos falando somente da vida dos povos indígenas. Estamos falando da vida de toda uma sociedade que defende os rios, a floresta e toda a vida que há no planeta”, afirmou Ingrid Sataré Mawé, uma das organizadoras do ATL Sul.
Dados do MapBiomas, apontam que os territórios indígenas estão entre as principais barreiras contra o avanço do desmatamento no Brasil.
“Nós protegemos a mãe terra e fazemos o possível e o impossível pela demarcação dos territórios indígenas, que comprovadamente é a única saída que temos para barrar o avanço da crise climática”, destacou a liderança.
A concentração da manifestação começou no Largo da Alfândega, centro da cidade, com cantos, rezos e danças dos diferentes povos presentes, além de faixas e cartazes que denunciaram a ameaça do Marco Temporal e as consequências para os territórios e direitos sociais indígenas. Durante o ato, a secretária de direitos ambientais e territoriais do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Kerexu Yxapyry, denunciou a recusa dos parlamentares catarinenses em dialogar com as lideranças indígenas.
“Na Alesc, aconteceu dias atrás uma audiência para debater o Marco Temporal com vários deputados falando sobre os povos e territórios indígenas, defendendo a tese. Não teve nenhuma liderança participando da audiência pública. Hoje, solicitamos este lugar para que as lideranças possam fazer uma fala, convidamos os parlamentares a participarem, e foi negado”, afirmou Yxapyry.
A audiência pública citada pela representante do MPI aconteceu em maio, reunindo diversos políticos do estado, incluindo representantes do governo estadual.
A postura dos políticos catarinenses foi criticada por Yxapyry. “Se estamos falando de democracia, de direitos, de povos e territórios de Santa Catarina e de Florianópolis, e a Alesc é construída pela população, no mínimo nós poderíamos sentar para falar sobre isso. Se está sendo negado, se não estão recebendo lideranças indígenas, isso não está acontecendo de acordo com os direitos, com a lei, como deveria acontecer”, disse.
Após a concentração, o grupo percorreu as ruas do centro de Florianópolis e seguiu em direção ao prédio da Assembleia Legislativa, onde foram recebidos pelo deputado estadual Marquito (PSOL), que através do seu mandato possibilitou que as lideranças indígenas debatessem e expressassem a sua visão dentro do espaço institucional, ainda que não em forma de audiência pública.
“Essa falta de diálogo, de debate, essa falta de escuta das etnias e povos indígenas catarinenses é uma característica, por isso é fundamental estabelecer esse lugar. O parlamento é feito da diversidade, das divergências, por isso é um espaço plural. O nosso esforço é de garantir que os povos indígenas, as três etnias, sejam ouvidas também sobre os temas, as matérias e as decisões relacionadas aos seus territórios”, assegurou Marquito.
“Hoje estamos em casa, esse é o nosso lugar”, disse Eliara Antunes, cacica da aldeia Yaka Porã, localizada na Terra Indígena do Morro dos Cavalos.
“Estão tentando um segundo massacre contra os povos indígenas, mas eles não irão conseguir. Somos os povos originários aqui de SC, queremos essa pauta de defesa dos nossos territórios sempre aqui dentro, mas a favor de nós. Chega dos políticos ocuparem essas plenárias e quererem falarem por nós”, declarou.
De acordo com o Censo do IBGE de 2022, 21541 indígenas residem em Santa Catarina, o que consiste em 0,14% da população. Destas, 49,04% vivem em territórios indígenas, um total de 10.563 pessoas.
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Antunes relembrou que a disputa com políticos e não indígenas no seu território começou a partir da construção da BR-101, em 1960, que cruzou a terra indígena. Indígenas Guarani mais velhos recordam-se de aldeias na região ainda no governo do Getúlio Vargas.
“Esses políticos se recusam a reconhecer os territórios de Santa Catarina. Eles vêm com aquele discurso que Morro dos Cavalos não é um território indígena e tradicional, sendo que os povos Guarani sempre existiram ali”, disse Antunes.
Atualmente, Morro dos Cavalos é um dos territórios indígenas do Sul do país com o processo de demarcação mais avançado junto com Toldo Imbu em Abelardo Luz (SC). Os povos indígenas aguardam a homologação dos territórios já demarcados fisicamente até o final do ano, o decreto depende apenas da vontade política da presidência do país.
“Mais que nunca foi importante o acampamento acontecer aqui no Morro dos Cavalos, porque é um simbolismo de muita luta. Não só para quem vive ali, mas em nível de região Sul. Em vários momentos nos posicionamos a favor da homologação do Morro dos Cavalos, que infelizmente não saiu nas primeiras homologações. E também não sabemos quando vai sair, mas nós temos que continuar dessa maneira: firmes, lutando, pensando qual caminho seguir”, defendeu Kretã Kaingang, liderança da Floresta Estadual Metropolitana de Piraquara (PR) e da coordenação executiva da APIB/Sul.
Mulheres indígenas reflorestando o amanhã
Pela segunda vez na edição do ATL Sul, as mulheres indígenas formaram uma plenária para discutir política, raça e gênero. A mesa foi composta por lideranças de diferentes gerações das etnias Guarani, Kaingang e Xokleng dos três estados da região, além da presença de lideranças nacionais.
“Dentro do movimento indígena, nós trazemos muito forte a luta principal que é pela terra, mas para falar sobre a luta pelos nossos territórios temos que trazer também o protagonismo das nossas gestões, das nossas gestações”, disse Kerexu Yxapyry, ex-cacica do Morro dos Cavalos.
A violência política de gênero enfrentada pelas mulheres que assumem um protagonismo no movimento indígena foi uma das principais pautas discutidas pela mesa.
“Esse corpo-território das mulheres ainda é estranhado em qualquer espaço, seja a gente professora, aluna, cacica. Esse corpo das mulheres ainda não é bem-vindo”, relatou Braulina Baniwa, diretora executiva da Articulação Nacional de Mulheres Indígenas, Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga).
Para a pesquisadora indígena, o espaço de representatividade é também adoecedor. “A gente se depara com piadinhas de homens de diferentes lugares que não te vêm como liderança. A nossa juventude que passa a colaborar na comunicação também enfrenta. E não é isolado, porque dentro de alguns territórios as professoras e as agentes de saúde indígenas também enfrentam isso”, lamentou.
A Anmiga surgiu com a ideia de fortalecer mulheres indígenas dos diferentes biomas que estejam à frente de organizações e de situações dentro e fora dos territórios.
“Quando as pessoas começam a conhecer o nosso trabalho e passam a abraçar a nossa causa enquanto mulheres, a gente está trabalhando a pauta do reflorestamento dentro dos nossos territórios. Reflorestamento para trabalhar pelo fim da violência de gênero, pelo fim da discriminação e do racismo institucional que temos enfrentado ao ocupar esses espaços como mulheres indígenas”, explicou Baniwa.
A ideia de reflorestamento foi lançada na segunda Marcha das Mulheres Indígenas que aconteceu em setembro de 2021 com o tema “Mulheres Originárias: reflorestando mentes para a cura da Terra”. A primeira marcha havia acontecido um ano antes. A terceira será entre 11 e 13 de setembro de 2023 e trará o tema “Mulheres Biomas em Defesa da Biodiversidade pelas Raízes Ancestrais”. Em 2017, o Acampamento Terra Livre foi palco da primeira plenária de mulheres indígenas. Desde então, essas mulheres têm conquistado cada vez mais protagonismo na causa, mas segundo ponderam não faz sentido se não estiverem acompanhadas pelos homens indígenas.
“Cada território tem sua forma de organização e suas especificidades, mas a nossa ancestralidade lutou para possibilitar que estejamos aqui, hoje, falando, para que possamos nos fortalecer, mas não no sentido de separação. Homens e mulheres caminhando juntos é uma forma de descontar toda essa história que os colonizadores trouxeram, que infelizmente ainda está dentro das nossas aldeias. Que possamos juntos tirar isso de dentro das nossas bases e fazer essa caminhada”, defendeu Juliana Kerexu, coordenadora da Comissão Guarani Yvyrupa e liderança da APIB.
A liderança da juventude Xokleng, Txulunh Gakran, relembrou a cultura matriarcal do seu povo, onde as mulheres estão sempre à frente das lutas e do fortalecimento do seu território.
“As mulheres indígenas foram os primeiros corpos a serem violentados. É importante que a gente se conecte e se fortaleça para quebrar esse ciclo. Os nossos territórios não são ambientes tão seguros assim. Enquanto mulher, entendo que esse medo que temos e essa violência não é cultural. É algo do colonizador”, afirmou Gakran.
Confira a carta final da ATL Sul aqui.