Representantes da Terra Indígena Morro dos Cavalos, localizada em Palhoça (SC), protocolaram representação nesta quinta-feira (17) para que o Ministério Público Federal (MPF) em Santa Catarina tome providências contra a medida provisória 870/2019, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro em 1º de janeiro, a qual, retirou “de forma abrupta e unilateral”, conforme relatam as/os representantes, a competência de demarcações de terras indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai), transferindo-a para o Ministério da Agricultura.

Leia o documento. 

Ações como essa têm ocorrido em vários estados do Brasil, articuladas pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), principal organização indígena do país. No dia anterior (16), lideranças indígenas também apresentaram representação com o mesmo propósito no Ministério Público Federal de Joinville.

“Nesses 18 dias de governo Bolsonaro a gente está vivendo um retrocesso muito grande. Tudo que a gente lutou durante muito tempo, está sendo jogado no lixo, estão passando por cima, sem cumprimento de lei. Sabemos que isso não vai continuar assim, porque existe uma luta que não é de uma pessoa só, nem de um grupo, é de muitos. Toda conquista que tivemos em termos de direitos vem de luta, de muito sangue derramado”, afirma Kerexu Yxapyry, liderança da Terra Guarani, ao Catarinas.

Kerexu acredita que em fevereiro, com o fim do recesso parlamentar e início da atuação do Congresso Nacional, haverá maior atuação e debate político de enfrentamento aos desmandos do governo. “Parece que tudo desandou de forma acelerada. Essa avalanche vai parar em algum lugar. O governo terá que consultar os povos indígenas. A gente precisa se unir a outros movimentos, como o dos quilombolas, que é muito invisibilizado. Temos que dar visibilidade para os povos e ir para o enfrentamento, porque estamos no nosso direito, temos que mostrar ao governo que ele está errado e tem que parar. Esse é o nosso chamado”, argumenta Kerexu.

Para a Apib, as decisões do novo presidente “destroem praticamente toda a política indigenista brasileira”. Em 3 de janeiro, a organização protocolou na Procuradoria Geral da República, representação onde pede que a procuradora Raquel Dodge, ingresse com ação judicial  para suspender o artigo da Medida Provisória que transfere a demarcação de terras indígenas.

Durante audiência na Terra Indígena Piraí duas anciãs entregaram o documento ao procurador Federal do MPF de Joinville, Thiago Alzuguir Gutierrez/Foto: arquivo
Entenda a reivindicação

Para os povos originários do Brasil Guarani Mbyá e Nhadeva, a MP “infringiu o conceito primordial na alteração de políticas públicas, que seria a consulta aos povos indígenas do Brasil”. Também foi entregue uma nota contrária à MP, pelos representantes da Comissão Guarani Nhemongetá, que congrega as diversas comunidades indígenas Guarani do litoral catarinense.

A comissão pede que o MPF atue para que sejam aplicadas as normas constitucionais e seja assegurado o “princípio de segurança jurídica dos atos administrativos da administração pública”. Requerem ainda a instauração de inquérito civil para investigar e monitorar os atos e processos de demarcação de terras indígenas que porventura venham a tramitar no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, bem como solicitam a apuração de eventual responsabilidade administrativa atentatória à moralidade administrativa e à democracia, e ofensa aos direitos culturais dos povos indígenas.

Cartazes em apoio à reivindicação foram espalhados pelo prédio do MPF, em Florianópolis/Foto: divulgação

A situação criada pela MP 870, afirma o documento, “enseja medidas urgentes a fim de evitar risco de dano irreparável aos povos indígenas pela suspensão e/ou interferência política nos procedimentos demarcatórios, atingidos por eventual comportamento da ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e seus respectivos subordinados”.

A procuradora Analúcia Hartmann disse que o documento será analisado e encaminhado. “O Ministério Público vai examinar essas solicitações e não vai se omitir agora, como nunca se omitiu”, afirmou.

Manifestantes se reuniram em frente ao prédio do MPF em apoio à comissão/Foto: divulgação
Garantia de território é exercício da cidadania

Conforme a representação entregue ao MPF em SC, há na medida assinada pelo presidente da República “flagrante vício material” quanto aos requisitos formais: “É entendimento do STF que não cabe controle de constitucionalidade quanto à relevância e urgência, por entender que seria invadir esfera discricionária do Poder Executivo”. Ainda, quanto aos requisitos materiais expressos na Constituição, deve haver controle, “pois legislar sobre determinadas matérias configura desvio de finalidade ou abuso de poder”.

Alega o documento dos indígenas que deve ser aplicada aos fatos a alínea “a” do artigo 62 da Constituição, que determina a vedação do ato de legislar por medida provisória em matérias relativas à cidadania: “Demarcar os territórios indígenas envolve matéria diretamente ligada à cidadania indígena e não pode ser objeto de medida provisória, sob o risco de causar dano irreparável a essas populações”, assegura.

Representantes Guarani Mbyá e Nhadeva não aceitam transferência de funções da Funai para o Ministério da Agricultura/Foto: assessoria de imprensa MPF-SC

“Quando se fala em exercício da cidadania dos povos indígenas, essa estará sempre ligada ao aspecto territorial, pois o modo de viver indígena é indissociável do seu território, organizado por eles há centenas, talvez milhares de anos. Enfim, a conquista da cidadania indígena passa necessariamente pela demarcação de suas terras, pela garantia de seus territórios”, diz ainda o documento.

Argumentando em favor da atual estrutura da Funai, a representação entregue ao MPF diz que “quando se constrói todo um sistema jurídico voltado a atender as especificidades das populações indígenas, isso inclui órgãos federais com conhecimento científico que compreendam essas peculiaridades e que consigam identificar e demarcar os territórios indígenas para que estes possam exercer a sua plena cidadania”.

Os documentos deverão ser encaminhados por cópia à 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, que já está analisando a MP 870 e possíveis medidas judiciais a serem adotadas em nível nacional, bem como deverá fundamentar a instauração de inquérito civil na Procuradoria da República em Santa Catarina.

 

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