A chegada do primeiro filho foi determinante para que Humberto Baltar, 42, especialista em masculinidades e paternidades, especialmente paternidade preta, se dedicasse a criar o coletivo Pais Pretos Presentes, em 2018. Ao lado da esposa, Thainá Baltar, ele idealizou a iniciativa que começou como um grupo de discussões no Facebook e, hoje, forma uma rede de apoio, acolhimento, letramento racial e educação parental, com perspectiva africana, para famílias pretas e antirracistas.

Baltar participa da quarta temporada do podcast Narrando Utopias, Paternidades Plurais, e nesta entrevista ele fala sobre os diferentes letramentos que compartilha no coletivo, especialmente racial e emocional, em defesa da importância de levar para as escolas o debate sobre papéis de gênero.

Para o especialista, quanto mais cedo o assunto for abordado maior a possibilidade de emancipação de homens e mulheres.  Ele também é professor de Paternidades Pretas na pós-graduação de Crianças, Adolescentes e Famílias do Ministério Público do Rio de Janeiro, e coautor dos livros Seja Homem: Reinvenção de uma Masculinidade em Crise, Desafios de uma Família e Seja Potência Negra. Confira a entrevista.

O seu foco é a questão da masculinidade, da paternidade, especialmente da paternidade preta. Mas você acha que a ausência de repertório também se expande para os homens em geral? Considerando, claro, os recortes raciais.

Não, na verdade não é uma questão de raça. Isso é universal em todas as culturas, especialmente as culturas colonizadas onde os europeus exerceram dominação. Se estudarmos um pouquinho de história, percebemos que todas as culturas do eixo judaico-Cristão, nas religiões conhecidas como abramímicas, que é o judaísmo, o Islamismo e o próprio cristianismo, a mulher é colocada numa posição de subalternidade, uma espécie de auxiliadora do homem.

Na Bíblia, por exemplo, tem aquela narrativa de que a mulher foi feita da costela do homem, que o pecado entrou no mundo através de EVA, uma mulher, fora outros trechos. São narrativas que estão o tempo todo diminuindo a mulher. Essa cultura exerce uma dominância por vários continentes, por vários séculos, em várias regiões do mundo e isso acaba contaminando culturas que, originalmente, nem eram machistas como a cultura africana. Praticamente todo o continente africano é de matriz matriarcal, mas quando houve a expansão árabe começou essa incidência de práticas coloniais ocidentais no continente africano.

Essa masculinidade chamada tóxica, que não coloca o homem no lugar de cuidado, afeto, já remonta a época das grandes expansões, remonta à época das Cruzadas. O machismo é universal. Ele não é exclusividade do homem branco ou do homem europeu. Ele se alastrou por todas as culturas, sejam elas asiáticas, africanas, etc.

Por isso que no Coletivo Pais Pretos Presentes entendemos que o multiletramento é o caminho para a verdadeira emancipação humana. Não há como mudar de verdade se não olharmos para várias esferas da nossa vida e a base disso tudo, especialmente para quem é preto, é a ancestralidade africana. O letramento ancestral surge como uma forma ideal de se encontrar porque todo o conhecimento que recebemos, nós pessoas pretas no ocidente, se propõe a emancipar, a civilizar, numa ideia bem jesuíta mesmo, de olhar o outro como menor. Esse é o efeito da colonização. 

Foto Humberto Baltar e famíli
Humberto Baltar, a esposa Thainá e o filho Apolo. Foto: Arquivo pessoal.

Você falou do letramento como estratégia de emancipação para os homens serem mais afetuosos, mais cuidadosos. Mas como chegar lá? Como alcançar esse letramento?

Os letramentos são ilimitados. Porém, o nosso foco enquanto um coletivo com famílias pretas ou interraciais, é a pauta racial.  Nós observamos que as pessoas diziam “Ah, eu não quero ser racista. Não quero reproduzir racismo, mas o que eu faço?”. Nós temos várias leis sobre isso, mas a lei por si só não resolve. A pessoa precisa entender de onde vem o racismo, se não, não adianta. Então, nós nos preocupamos em estudar isso. Entendemos que a educação é o caminho.

Existe um provérbio africano que diz muito isso, aliás dois. O primeiro deles é que “Uma pessoa é uma pessoa através de outra pessoa”. Eu adoro esse provérbio porque ele sinaliza que você não encontra uma outra versão de si mesmo sozinho. Você precisa de pontes com outras pessoas para acessar versões melhores de si. E o segundo provérbio diz que “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. Esse é o ensinamento do letramento ancestral. Mas como ter esse letramento sem ter contato com pessoas que tenham uma visão africana do mundo? Não tem como. Eu digo isso porque nem todas as pessoas pretas são iguais. Nem todas acreditam nisso que eu estou dizendo, elas não se veem conectadas ao continente Africano. O letramento ancestral é importante porque ele explica de onde vem o racismo. 

Como ele explica isso? Você pode exemplificar? 

Uma das formas é ver a matriz de determinada sociedade. Aqui no ocidente a matriz é patriarcal. Ou seja, o homem é a referência. O homem dá a referência de como ser pai, como ser masculino, como ser membro de uma família. Essa ideia vem da ideia de dominação sobre o outro, em que aquele que tem mais poder é o que vai prevalecer. Já a matriz africana, por exemplo, é a matriarcal. Ela entende que toda prosperidade, toda riqueza, toda a educação, vem do berço feminino porque a mulher é que gera toda vida. Esse é o entendimento de vários povos não hegemônicos. Falo do africano, mas vários outros têm essa mesma forma de pensar, povos indígenas, asiáticos. E esse letramento vem também pela leitura de autores/as importantes, como Sobonfu Somé. No livro “Espírito da Intimidade” ela traz conhecimentos muito interessantes. Na etnia dela, o povo Dagara, a mulher é quem busca mantimento e, muitas vezes, o homem, o pai, é quem fica cuidando do bebê, das crianças. Também há outras leituras sobre a infância, por exemplo.

Falamos muito de paternidade e masculinidade, mas não olha para as infâncias e a infância é o que gera o que temos, hoje, enquanto sociedade.

A forma deles entenderem a infância é muito interessante porque eles têm rituais para conhecer a criança. Nesse entendimento, a criança já chega ao mundo com uma vocação, com identidade, com inclinação profissional e até mesmo com o nome. Enquanto, no ocidente o entendimento é que a criança nasce completamente vazia. Como uma tábula rasa a ser preenchida de sentido. Tanto é que muitas famílias têm medo de dar uma boneca para um menino porque entendem que ele pode se tornar homossexual. Essa é a visão que se tem no ocidente, de que a criança vai ser preenchida com o que quer que você dê para ela. O letramento ancestral mostra que não. A criança já vem com a sua identidade. Esse povo Dagara é um exemplo que coloca isso.

O Brasil tem uma grande quantidade de mães solo e muitos homens abandonam as mulheres assim que eles têm que assumir os papéis de cuidado. Seja quando a mulher fica doente ou no puerpério. Como você avalia essa construção da masculinidade em que o abandono é uma constante e a paternidade é facultativa para muitos?  

Mais uma vez acabamos caindo na herança da colonialidade. Por isso que o letramento racial é central nessa discussão. As pessoas na verdade não sabem o que é letramento racial. Elas acham que é só parar de reproduzir racismo, mas é muito mais do que isso. É olhar como nos relacionamos com o outro e com nós mesmos. Quando entendemos o papel que a colonização teve do Brasil entendemos o efeito dela no nosso dia a dia. Essa pauta é um deles. A branquitude traz como valor que o que vale mesmo é o que está escrito. Alguns jogos de azar aqui no Rio de Janeiro têm, inclusive, o lema: “O que vale é o escrito”. O documentado é o que mostra que você é uma pessoa honrada. Então, para o homem, por exemplo, registrar o filho é o que faz dele um homem.

Ainda assim, cerca de 5 milhões de crianças no Brasil não têm o nome do pai. Isso vem da nossa cultura de não enxergar o cuidado como algo de todos. A nossa sociedade entende que o cuidado é feminino. Você não vê uma família, inclusive uma mãe, uma mulher, dando um bonequinho de bebê para um menino para ele aprender a dar banho, para ele aprender a paternar, para ele brincar de papai. Esses papéis de gênero são ensinados desde cedo. O menino ganha uma espada, ganha uma pistola, um escudo, mas não ganha um bebê. Ele está no lugar de ser agressivo, vai se auto afirmar através da violência. Não se dá de Natal para um menino um bonequinho de bebê e a pergunta que fica é: Por quê? Se queremos sociedades diferentes, por que não começamos criando infâncias diferentes? Se esse homem não for socializado para cuidar, como ele vai cuidar quando se tornar pai?

Quando eu tinha dez anos de idade, uma tia minha me perguntou quantas, no plural, quantas namoradinhas eu tinha na escola. Eu lembro que ficava tímido e inventava que tinha três.  E ela: “Nossa! Esse é o cara”. Ou seja, até as mulheres me ensinaram que mulheres são colecionáveis. Eu tinha dez anos quando começaram a me perguntar isso. Estou falando isso porque os valores que passamos desde cedo vão determinar quem uma pessoa se torna. Vários pensadores corroboram com essa ideia. Se sabemos disso, por que não criamos nossas crianças com valores que fomentam a equidade de gênero ao invés de só falar nisso quando o menino se torna pai? Aí já é tarde. 

Como começar a reverter esse cenário?

Não olhar para essas questões desde cedo faz com que tenhamos que nos preocupar com isso lá na frente. Tem um provérbio que diz que “Uma criança que não é acolhida com abraço enquanto pequena vai buscar esse acolhimento no fogo da aldeia”. Ou seja, ela vai tocar fogo na aldeia para ter esse acolhimento de volta. É o que acontece aqui no ocidente. Vamos reclamar na vida adulta todo amor, todo zelo, todo empoderamento que não recebemos na infância e manifestar em gritos de socorro, indo para o terapeuta, tomando remédio. Os homens se afogam em vícios. Se viciam em prazeres momentâneos não pelo prazer em si, mas para anestesiar a dor de não aceitar quem são. Por não saber quem são. Falta esse letramento desde cedo.

Essa dificuldade com o cuidado não é um problema localizado no homem, por isso que essa narrativa da masculinidade tóxica é um pouco problemática, porque na realidade estamos falando de uma cultura inteira, uma sociedade. A falta de letramento emocional do homem acaba com a vida das mulheres no âmbito profissional, familiar, parental via sobrecarga física e mental, de várias maneiras e ainda assim nós não abordamos as masculinidades na escola.

Eu estou trabalhando letramento racial com meus alunos na escola, letramento emocional também. Ensinamos aos alunos sobre os adinkras, símbolos da cultura ancestral africana criados pelo povo de Gana. Cada símbolo traz um princípio que fala sobre como lidar com as emoções, como lidar com os nossos afetos, como se conhecer.  Nós não socializamos os homens para lidar com as próprias emoções e isso tem efeitos na paternidade, na masculinidade e principalmente nas famílias, independentemente de serem famílias heteronormativas ou não. Todo mundo sofre com o que se chama de masculinidade tóxica igualmente. Falar sobre gênero, masculinidades e sobre cuidado é uma urgência. E eu vejo que empresas falam sobre isso e escolas não. Não dá para entender. 

O que você quer dizer é que uma das formas de romper todo esse ciclo de abandono é a educação institucional? 

Sem dúvida. A palavra educação é formada por duas palavras: Ex-ducere. EX é para fora. E ducere é conduzir. Se você não se conduzir para fora, não sair de si para entender o que que está acontecendo com você, que sociedade é essa que está te nutrindo, você nunca vai questionar quais valores estão te formando. A educação é o carro-chefe da emancipação de homens, mulheres, pais e famílias como um todo. Esses letramentos que estou citando são muito importantes.

Vários povos africanos não têm, por exemplo, pronomes masculino e feminino. Essa ideia do “ele”, “ela”, “macho”, “fêmea” isso é desnecessário para muitos povos. Um livro que fala muito sobre isso e que vale a pena ser estudado é “A Invenção das Mulheres”, de Oyèrónkẹ (Oyěwùmí) em que ela coloca que a categoria mulher, a categoria política mulher, é uma criação do ocidente. É uma criação colonial feita justamente para subjugar a mulher porque a medida que você categoriza, que você identifica, que você localiza, você consegue deslocar socialmente. 

Foto Humberto Baltar
Humberto Baltar em sala de aula ensinado adinkras para os alunos. Foto: Arquivo pessoal

No coletivo Pais Pretos Presentes, vocês tem três adinkras como pilares. Pode explicar o conceito deles? Sankofa, Ubuntu e Umoja?  

Eles são a missão, a visão e os valores do coletivo. A nossa missão é justamente o Ubuntu. Ou seja, o teu problema é o meu problema, a tua crise é a minha crise. “Eu sou porque nós somos”. A grande mensagem do Ubuntu é que precisamos caminhar juntos. Umoja é um conceito que equivale ao primeiro princípio do Kwanzaa, que é uma celebração africana que diz: Existe uma unidade entre nós. Até a ciência branca já disse que se você pegar sete pessoas aleatórias no mundo existe alguma coisa que as conecta. Então, a gente está junto, a minha dor e a minha luta, a minha personalidade, ela dialoga com o outro.

Por isso que na minha apresentação eu falei que sou um homem autista com TDAH e dislexia porque eu não sou apenas preto. A minha origem ancestral, ela não me delimita, existem outros recortes em mim que dialogam com outras subjetividades como. Umoja é isso. Eu não posso ser Pais Pretos enquanto coletivo e só olhar para homens pretos. Por isso temos lá o grupo das mães pretas, o grupo das famílias interraciais. Todo mundo tem que poder participar dessa frente educativa e emancipatória, senão não existe umoja.

E por último, todos os valores que cultivamos se conectam com a ancestralidade africana e tudo isso está resumido em Sankofa. Ele é simbolizado por um pássaro olhando para trás, pois estudando ancestralidade você aprende a viver o presente e a desenhar o seu futuro de maneira muito mais saudável. É isso o que temos feito no coletivo, nas nossas masculinidades, nas nossas maternidades.

Além da educação, como cuidar para que os meninos não reproduzam essa masculinidade chamada tóxica ? 

Mais uma vez voltamos naquele provérbio do início: “Uma pessoa é uma pessoa através de outra pessoa”. A colonialidade e a branquitude ensinam que briga de marido e mulher ninguém mete a colher. A família é a célula mater da sociedade e essas ideias fazem com que as pessoas achem que as famílias são autossuficientes. Essa é uma das maiores mentiras da cultura ocidental. Nenhum homem vai desconstruir o seu machismo sem conversar com outros homens que também estão buscando a desconstrução do machismo. A maneira como eu lido com meu autismo, por exemplo, é estando em grupos de apoio com outros adultos que têm a mesma condição. Assim eu aprendo várias tecnologias para lidar com as comorbidades do meu autismo e ter qualidade de vida. É a mesma coisa com o machismo.

A gente tende a achar que a educação significa ir para escola, para faculdade e para algum lugar estudar, mas não. Educação é estar na aldeia, em grupos, em construções coletivas e comunitárias. A própria ancestralidade africana, através do mulherismo, tem princípios muito interessantes. Um deles é que homens e mulheres devem se emancipar juntos dessa ideia tóxica de gênero. Tudo o que eu aprendi sobre gênero aprendi com mulheres que são mulheristas como Katiuscia Ribeiro, Aza Njeri, também a Morena Mariah. Então, não há como se tornar uma pessoa melhor no isolamento. Grupos são fundamentais para nossa saúde mental, emocional, psíquica e espiritual. 

Você tem alguma sugestão de como incorporar esses novos hábitos de socialização?

Indo para o convívio de pessoas que cultivam valores que você quer para você. Então, o social da equação precisa entrar também. Não dá só para em casa, vendo telas, eu me tornar uma pessoa melhor. Eu preciso estar com pessoas melhores. É igual querer desconstruir o machismo ou a homofobia sem ter contato com nenhum homossexual, nenhuma lésbica, nenhuma pessoa trans. Como você vai aprender a respeitar essas pessoas se você nem as conhece? Não conhece as dores delas, o que que elas precisam, os maiores desejos delas. Não tem como nós, de fato, nos tornarmos inclusivos sem estar na inclusão. Sem estar com aquela pessoa que desejamos acolher. E isso acontece com o caso do machismo.

Os homens fazem grupos de masculinidade, roda de apoio, uma série de coisas e não ouvem as mulheres. É por isso que eu acho tão importante o mulherismo africana que traz essa proposta de homens e mulheres juntos, porque quando você isola, separa, você até tenta entender o que o outro sente, mas dificilmente você consegue se colocar no lugar do outro. Não há como entender a dor do outro sem a presença do outro.

É bem aquele lema do Emicida, “Nada sobre nós sem nós”. Você tem que estar com as mulheres, não tem outra maneira de se desconstruir – palavra que se usa muito aqui no ocidente – mas acho que é construir porque não tem nada, né? Como é que vamos desconstruir se nem a masculinidade chamada tóxica foi construída? O homem não sabe o que é masculinidade. 

Como explicar, de forma bem didática, o que é essa masculinidade hegemônica tóxica e essas outras masculinidades que precisam ser construídas? 

O (educador e escritor) Tony Porter tem um trabalho que ajuda muito nisso. Ele tem um Ted Talk em que ele fala sobre a “caixa do homem”. O termo não é dele, mas ele o popularizou. Essa “caixa do homem” são qualidades que a nossa sociedade, especialmente através da colonialidade, elencou e atribuiu ao homem. Ou seja, dominação, agressividade, impulso sexual o tempo todo, violência. Essa ideia da heteronormatividade de não demonstrar fraqueza, não chorar, ser decidido, firme. Tudo está dentro dessa caixa.

O homem que entende que só isso é ser homem é lido como tóxico. Inclusive por ele mesmo porque ele se recusa, por exemplo, a se emocionar, a sentir. É muito comum um homem perder o emprego e não contar o que houve em casa. Ele fica ali tentando arrumar outro emprego e ninguém nem vai perceber que ele foi demitido para ele não ser visto como um derrotado em casa, porque o homem tem que ser vencedor. É mais uma das qualidades lá da caixinha.

Sair dessa caixa é o que seria a emancipação do homem. Por isso que nós, que falamos de masculinidade saudável, não temos outra opção a não ser falar também de gênero, raça, religião, neurodivergência. Por quê? Porque tudo isso passa por esses papéis. Se nós não desconstruirmos isso, os homens vão mascarar o que sentem o tempo todo, não vão ver a si próprios. A vida familiar vai se tornar uma verdadeira prisão, até dentro de casa ele vai ter que performar.  Por isso falar em papéis de gênero é importante. Existem características que são humanas, tanto características quanto atividades, e o cuidado é uma delas. 

Você comentou sobre esses assuntos não serem abordados nas escolas, quais as perdas que isso gera para o debate?

Como eu disse, a escola não fala nada sobre gênero. Aprendemos alguma coisa na religião que diz que o homem é o provedor. Ele tem que ter aqueles três pês: provedor, protetor e procriador. Só que esses três pês são extremamente problemáticos no ocidente porque quando um homem não é provedor ele fica deprimido, comete suicídio. O Brasil tem milhares de desempregados. Esses três papéis lidos como masculinos estão em cheque por várias razões. Então, esse homem não tem ideia do que exatamente ele é. E aí entra um quarto fator que torna as coisas ainda mais complexas que é a emancipação da mulher.

A mulher hoje domina o ambiente universitário, o ambiente corporativo e a liderança feminina nas empresas é muito grande e esse homem não sabe lidar com isso. Uma das consequências mais sérias disso são as mulheres desistindo. Olha só que loucura! As mulheres estão desistindo de cargos de liderança nas empresas porque isso está gerando uma exaustão por essa questão de gênero, por ter que ficar explicando coisas ridículas.

Essa necessidade de caminhar em conjunto é uma condição invariável para que esse homem realmente se torne equânime, equitativo nas suas relações. Para que ele se torne anti-machista de fato. Sem ouvir mulheres, sem estar junto, é impossível. A escola precisa olhar, de fato, para gênero e essa sim seria uma educação sexual. Não é falar só sobre genitália, reprodução humana, mas também sobre as nossas relações. O impacto que isso teria na violência contra a mulher, nos abusos, na sobrecarga física e mental e na parentalidade consciente, nossa! Seria revolucionário. Então, é meu sonho que a gente aprenda a trazer a pauta do gênero de forma consciente e responsável o quanto antes para vida de todos nós, seja na educação, nas famílias, etc.

Qual a sua visão sobre a paternidade no Brasil hoje? Já que você tem estado em diferentes lugares, conversando sobre esse assunto, o que você tem percebido na troca com outros pais? É possível ter um olhar de esperança? 

Eu vejo que a educação é a origem de todas as esperanças. Não vejo outro caminho. Porque para acessarmos essas novas versões de nós mesmos enquanto pais, que é sobre o que estamos falando aqui, precisamos fazer um exercício não muito comum na nossa cultura: sair de si mesmo. Olhar para a forma como estamos vivendo e ressignificar isso. Só que sozinho, só com o nosso repertório, não dá. E aí entra a ancestralidade africana. Mas não só a africana, tem várias etnias indígenas, povos asiáticos, etc.

Quem tem coragem de se aproximar de homens que estão fazendo esse movimento para se tornar melhores acaba encontrando muitas formas, muito repertório, muita ajuda nesse sentido. Viajando Brasil afora eu tenho visto vários coletivos de homens, organizações assim como o coletivo Pais Pretos, o Portal Mundo Homem, você tem Papo de Homem, o próprio Homem Paterno.

Aqui no Rio de Janeiro tem o Centro Cultural Palavra de Homem, Guerreiros do Coração, enfim, são tantos grupos incríveis de homens que estão buscando ser pais melhores, homens melhores e companheiros melhores que eu percebo que é possível. Esses homens têm conseguido pela coragem. Então, dá para chegar lá se de fato tiver essa coragem de perder o chão de vista um pouco, que é o que fazemos quando saímos do lugar em que estamos.

Esta temporada é uma iniciativa do Inspiratorio.org, com produção do Portal Catarinas em parceria com o projeto Homem Paterno.

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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