O último episódio de Paternidades Plurais, quarta temporada do podcast Narrando Utopias, traz a história de Leonardo Medeiros, 39, empreendedor gaúcho que descobriu sua identidade de gênero aos 34 anos. Ele e a filha Camila, 20, ficaram conhecidos como a família “transdicional”, pois ambos passaram pelo processo de transição quase simultaneamente, há cerca de cinco anos. Nessa entrevista, Medeiros fala sobre as dúvidas que surgiram após essas descobertas e como fez para lidar com tantas mudanças.

Para entender mais sobre masculinidades e paternidades, por exemplo, ele buscou apoio em grupos que falam sobre os temas e ouviu os apontamentos da filha e da companheira com quem estava na época. Além disso, adaptou a educação da Camila ao que ela considera importante, num esforço para que a filha se sinta segura e livre para ser quem realmente é. Confira a entrevista.

Você se descobriu pai aos 34 anos. Como foi essa descoberta? Como você se tornou pai da Camila?

Eu gosto de começar a contar essa história a partir da minha infância quando, por volta dos quatro anos de idade, eu comecei a perceber que o meu comportamento era diferente. Eu cresci numa casa onde só tinha mulheres e eu percebia que não tinha afinidade com o comportamento delas. Mas cada vez que eu me encontrava com uma pessoa masculina, eu me identificava. Então, com quatro anos eu já tinha questões.

Na adolescência veio mais uma fase complicada em que passei por uma depressão, fui expulso de casa por conta do meu padrasto que era muito preconceituoso. Aos 18 anos eu vivi um relacionamento abusivo e sofri um estupro. Fiquei meses sendo abusado por essa pessoa infeliz e veio a gravidez. Veio também a rejeição da gravidez, óbvio, mas nunca veio a rejeição à criança.

Com 19 anos eu não sabia nem quem eu era. Eu estava estudando, tinha planos para minha vida, então não era aquilo que eu queria para mim, mas aconteceu. Eu consegui fugir desse cara com a ajuda da minha irmã e depois vem a felicidade do nascimento da Camila. Ela nasceu no dia do meu aniversário, 12 de março. Mas aconteceu também de eu não querer cuidar. Eu não sentia que tinha responsabilidade para cuidar de outra vida. Coloquei a Camila para adoção. Tudo isso no dia do meu aniversário.

Até que dois dias depois, em casa, eu sonhei com a Camila me chamando pelo nome que eu tinha na época e quando fui tomar banho começou a jorrar leite. Me veio um sentimento absurdo de que eu tinha que buscar a Camila no hospital. Aí eu liguei para minha mãe e disse “Mãe, tomei uma decisão na minha vida. Eu quero”. E aí cuidei com todo o carinho, contei com ajuda da minha família e dos meus amigos para fazer o enxoval. 

Como foi esse início da criação da Camila, antes da sua descoberta? Como ficou seu lado emocional?

Eu passei por fases difíceis após o nascimento dela porque, ainda assim, eu não me via como mãe. Era difícil ouvir “mãe”. Eu pensava “Não me chama de mãe”. Não que eu não quisesse que ela me chamasse, mas eu me sentia mal. Eu não era mão. Não gostava de ouvir e não entendia. Aquilo foi me apertando.

Em 2010, eu tive uma crise muito forte de depressão e ansiedade. Fui parar na cama, tive que tomar remédio, ir ao psiquiatra, todas as coisas. Nesse mesmo ano, eu disse à Camila “vamos embora porque vamos ter que vencer a nossa vida. A gente vai ter que vencer isso. Eu não sei o que está acontecendo, mas a gente vai ter que vencer isso tudo”.

Eu saí da minha cidade natal, procurei trabalho, saí da minha área que era design, fiz curso de encanador industrial, fui trabalhar em um estaleiro como encanador. Em 2016, a nossa vida começou a melhorar e eu tomei a decisão de empreender. Eu já fui questionado pela maneira como conto a minha história, mas eu conto com alegria porque eu e a Camila estamos vivos hoje. Eu vou fazer 40 anos e a Camila vai fazer 21. A gente resistiu a todas essas dores. 

E como foi a descoberta da Camila? 

Aos dez anos ela estava assistindo um programa de televisão chamado Jessie, quando me chamou e disse “olha só, eu sou assim!”, Eu coloquei a mão na cabeça e disse “meu Deus!”. Ela se revelou uma menina trans aos dez anos de idade. Não se falava sobre o assunto onde eu morava em Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Pensei “o que eu vou fazer? Como é que tu vais te vestir como tu gosta? Como é que tu vais para escola? A gente mora no Rio Grande do Sul, tu já sofre violência por ser extremamente afeminado. O que que eu faço?”. Conversei com ela e ela aguentou. Eu queria ter o conhecimento que eu tenho hoje para ter deixado ela viver a vida que ela queria, mas eu não tinha. Então, ela segurou até os quinze. Depois, ela explodiu. “Não quero saber! Meu nome agora é Kayle”, na época, né? “O meu cabelo vai crescer, porque eu detesto quando tu corta o meu cabelo e eu vou usar as roupas que eu quiser”. E eu olhei para a mãe e disse “Tá! Vou fazer o quê?”. E aí ela se colocou para o mundo do jeito dela. Ela é muito forte. 

Foto Léo e família
Léo Medeiros, a mãe, Dona Elisa, e a filha Camila. Foto: Arquivo pessoal

Pelo que você está contando, a Camila foi a precursora, né? Ela começou esse movimento e em seguida isso te dá uma força para fazer a transição? Ou não? Como foi isso?

Como eu não sabia lidar com isso, não sabia que existiam os ambulatórios, as coisas adiaram um pouco para ela. Mas um dia eu estava na minha casa lá no Rio Grande do Sul recebendo a visita de uma amiga, quando ela me perguntou “então, mas tu não te consideras? Tu não achas que tu é homem?”. Aí eu disse “meu Deus! O que tu me perguntou?”. E eu não dormi mais e fui atrás de alguém que me ajudasse com isso. No outro dia, contei para a Camila e na hora ela me apoiou. Busquei entender todos os processos que eu não conhecia. A partir de 2018 que eu consegui entender melhor sobre retificação de documentos, questões de hormônios e tudo mais, mas a Camila é a precursora e deu todo apoio inicial. 

A partir do momento que você se descobre pai, como você construiu a sua paternidade? Como é ser um pai trans?

Quando a Camila me chamou de pai foi se tivessem desamarrado correntes que estavam presas em mim. Meu Deus! Eu queria tanto isso na minha vida! Mas aí também começaram as dúvidas sobre o que é ser pai, como educar, como conversar, como agir. Eu tive um relacionamento com uma mulher trans há uns anos atrás, nós três ficamos conhecidos como a família “transdicional”. Camila e minha companheira da época começaram a apontar situações em que eu estava sendo machista. Mas eu não percebia. Foi então que comecei a estudar, me aprofundar mais na cultura do lugar em que nasci.

Eu sou gaúcho, fui criado no Rio Grande do Sul, e eu carreguei comportamentos machistas. Por eu me sentir homem, quem é que eu buscava como referência? Homens. Então, desde a minha infância quando eu observava os pais, quando eu observava meus primos, não que eles sejam machistas, mas eu observava o comportamento. Então, ao observar comportamentos eu puxei muito para mim. Principalmente na maneira de falar. Em 2020, eu me dei conta. A partir daí, ingressei em grupos de masculinidade, paternidade, para entender do assunto, aprender, e disse: “eu sou machista pra caraca!”.

Houve alguma situação marcante que fez com que você buscasse outras referências de masculinidade?

Após ter feito a minha transição, aos 34 anos, eu saí para comemorar com uns amigos, fiz a besteira de sair desse open bar com uma pessoa e ambos estávamos bastante alcoolizados. Quando eu estava no carro dela, o celular dessa pessoa sumiu e ela começou a gritar. As pessoas viram que ela gritava e viram que ela estava acompanhada de um homem.

Desde que eu comecei a minha transição e a hormonização já começou a nascer barba, minha voz engrossou, então eu passei despercebido. Se eu não falar que eu sou um homem trans não percebem. E quando a viram gritando. Nossa! Eu apanhei de uns 20 homens. Me chutaram, rasgaram toda a minha camisa de jeans, me tiraram e seguiram me chutando no chão e o pior era que na frente da festa estava todo mundo sentado, só olhando.

Quando fui à delegacia, o delegado me disse “olha, Leonardo tu estás entrando num universo muito perigoso, o mundo dos homens”, à noite quando está todo mundo bêbado, vem o instinto primitivo do homem e ele não quer saber. Ele vai defender a mulher. Ele não vai te defender, ele não quer te ouvir, ele já vai partir para agressão”. E aí me deu um choque tão grande que eu disse “e agora? Quem eu sou?”.

Porque se isso é ser homem eu não quero ser. Mas eu não me sinto mulher, e agora? Um choque de realidade que eu me desloquei do meu corpo. Foi aí que comecei a estudar masculinidades, paternidades e foi quando conheci o Tiago (Koch) e uma galera enorme que fala sobre esses assuntos. Vi que eu podia também poderia falar sobre isso e que poderia ressignificar o que é ser homem. Que o homem pode sentir carinho pelo outro, pode abraçar, pode dizer eu te amo. Coisas que no início da minha trajetória como homem eu não conseguia porque os homens não faziam assim.  

A sua família realmente tem uma história muito diferente, muito única. Tem alguma situação inusitada que vocês já viveram por você ser pai trans de uma mulher trans?

Ah com a Camila já vivi tanta coisa. Mas acho que o principal foi a descoberta, quando virou essa chave na minha mentalidade. Porque depois que virou a chave na minha cabeça, eu consegui entender os meus sentimentos. Além disso, enxergar a Camila como mulher também foi algo marcante porque, além de me descobrir, eu tive que virar todas as chaves na minha cabeça. Eu tive que cuidar de mim e cuidar dela, com ela me orientando. É muito complexo. Beira, numa linha muito tênue, o preconceito e é justamente aonde eu não quero chegar. Não estou dizendo que eu nunca a compreendi como mulher, mas entendê-la como mulher depois de ter me descoberto enquanto um homem trans, ter revelado a minha identidade de gênero, tudo simultaneamente, é para pirar a cabeça! Então, acho que a parte principal da nossa convivência foi enxergar a Camila. 

Nesse processo de se descobrir pai, quais foram as suas referências de paternidade? 

O Tiago Koch (idealizador do projeto Homem Paterno). Em 2020, quando eu comecei a contar minha história num grupo do Facebook e me descobriram, a partir disso vieram os convites para participar de programa de televisão, jornal, foi quando eu comecei a conhecer essas paternidades. Eu não conheço meu pai. E olha que já vieram me perguntar uma vez, “mas tu não acha que foi influenciado durante a infância em relação à tua transgeneridade?”. Eu disse “Influenciado por quem se nem meu pai estava perto?”.

Foto Léo e família
Léo, a mãe (Elisa) e a filha (Camila). Foto: Arquivo pessoal.

Era minha mãe, minha avó, minha prima, minha tia, minha irmã. Claro! Eu enxergava outras pessoas, outras paternidades, mas eu não tive essa referência próxima de mim na minha infância. A não ser o pai da minha irmã mais velha que ajudou na minha criação, mas a gente se via pouco. Eu busquei muito na cisgeneridade essa relação pai e filho. Essa relação família. Eu queria descobrir o que era ser homem e o que que era ser pai, mas eu queria uma referência masculina e paterna na cisgeneridade, que também não fosse algo pesado. Então, eu descobri muita coisa com o Tiago e também com outros pais que conheci a partir de 2020. 

E que tipo de pai você é o que busca ser?

Esses dias eu tava olhando para o meu passado para entender um pouquinho sobre ciclos viciosos, essas coisas que eu gosto de estudar, e eu percebi coisas arcaicas da minha família que vinham se repetindo e que eu não quero reproduzir mais. Por exemplo, em relação à Camila ser e estar hoje no mundo dela. Ela precisa muito da liberdade dela para pensar, para ser e para poder ser ouvida, poder falar.

Então, eu não quero ser tóxico ao ponto de criticar as músicas de funk que ela gosta só porque eu não gosto. Hoje eu sou o Leonardo que não quer ser tóxico. Quero deixar a Camila viver a Camila. Eu tive que passar por tantas coisas pesadas sozinho e acho que essa liberdade de ser e estar é tão importante. Então, ela está vivendo a fase dela de querer ser artista, de colocar a arte dela para o mundo ver. Essa é a parte mais importante de mim hoje. 

Esta temporada é uma iniciativa do Inspiratorio.org, com produção do Portal Catarinas em parceria com o projeto Homem Paterno.

Confira a audiodescrição do episódio:

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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