Capacitismo e aprendizado entre gerações: Marcelo Zig fala sobre ser um pai com deficiência
Filósofo e ativista é protagonista do terceiro episódio do podcast Paternidades Plurais, quarta temporada do Narrando Utopias
O filósofo e ativista do direito das pessoas com deficiência, Marcelo Zig, 49 anos, é o terceiro protagonista do podcast Paternidades Plurais. Nesta entrevista, ele conta como os enfrentamentos ao racismo e ao capacitismo impactaram sua relação com o filho de 27 anos e revela que agora, como avô de uma criança de 5, ele experimenta um vínculo mais sereno, com mais espaço para a ternura.
Zig tornou-se uma pessoa com deficiência aos 21 anos, após pular de uma ponte e mergulhar em águas rasas. Como forma de prevenção a esse tipo de acidente, idealizou o Projeto Mergulho Cidadão. Além disso, ele também é fundador do Quilombo PcD, uma iniciativa que trabalha no combate aos impactos da aliança entre o racismo e o capacitismo na vida da pessoa preta com deficiência.
Ao falar sobre sua paternidade enquanto homem preto com deficiência, Zig faz um paralelo com a obra da psicanalista e psiquiatra Neusa Santos Souza, ‘Tornar-se negro’ (1983). No livro, fruto de sua tese de doutorado defendida em 1981, Souza traça uma ponte entre a psicanálise e a questão racial no Brasil e discute os impactos do racismo em torno da vida emocional da população negra no país. Para Zig, mesmo uma pessoa que nasce com deficiência tem que passar por um processo de letramento, reconhecimento, identificação e posicionamento na sociedade enquanto PcD. Confira a entrevista.
Como você tem construído a sua paternidade enquanto um pai preto com deficiência?
Bom, supercrítico. Super complicado. Meu filho nasceu no ano de 96. Então, as discussões sobre racismo não são as que a gente percebe hoje, e quanto ao capacitismo sequer existia o conhecimento da palavra e do conceito, muito menos a discussão sobre. Foi tudo na base de tentativa, erro e acerto. Nossa relação foi muito impactada pelo racismo. Eu, enquanto um pai preto da minha geração, ensinei o meu filho a lidar com as situações de racismo, sempre naquela perspectiva de cuidado, que na verdade são violências imputadas a nós. Eu o orientava: “Não use o cabelo grande. Não pinte seu cabelo. Não faça tatuagem. Não coloque piercing. Não corra na rua. Não use boné. Deixe suas mãos sempre próximas quando estiver dentro de um estabelecimento comercial”. Todas essas situações que nós pessoas negras identificamos como situações que nos expõem ainda mais aos riscos do racismo. Com relação ao capacitismo, esse aí, diferentemente do racismo, a gente vive dentro de casa. É algo que posiciona a pessoa com deficiência em um ‘não lugar’, o que é muito crítico e difícil de lidar porque quando buscamos alianças diretas não temos acolhimento da discussão sobre o capacitismo. Por essa razão eu fundei o Quilombo PCD porque a gente continua sendo pessoa negra com deficiência todo ano e em todos os espaços que a gente ocupa. Então, o capacitismo atravessou a gente de tal forma que dentro de casa foi muito difícil, muito impactante e fora de casa também, só que fora de casa, a gente começou a experienciar uma aliança do racismo ao capacitismo.
Te ouvindo lembrei muito da segunda temporada do Narrando Utopias, Cuidar do Futuro, em que entrevistamos mulheres com deficiências e elas trouxeram essa questão de tornar-se uma pessoa com deficiência, mesmo aquelas que nasceram com deficiência. Havia ali uma virada de chave. E elas passaram por situações em que tiveram a capacidade de ser mãe questionada. Várias invasões mesmo porque não se pensa que uma pessoa com deficiência é uma pessoa que continua com uma vida sexual ativa também. Você pode contar um pouco mais dessa experiência do que é se tornar um pai com deficiência?
Traçando um paralelo, tornar-se uma pessoa com deficiência seria mais ou menos tornar-se uma pessoa negra, da Neusa Santos. Seria dentro dessa compreensão. Porque mesmo uma pessoa que nasce com deficiência ela tem que passar por esse processo de letramento, de reconhecimento, de identificação e posicionamento na sociedade enquanto uma pessoa com deficiência. E ser um pai com deficiência é o que eu conversei um pouco com vocês.
Fui questionado sobre a minha paternidade, se de fato ele seria meu filho, se eu teria competência para exercer esse papel. Porque a pessoa com deficiência é aquela pessoa que não é prevista em nenhum ambiente, nenhum relacionamento social. Eu não participava das reuniões escolares e quando eu participava era sempre uma dificuldade, um transtorno devido à falta de acessibilidade. O problema não é ser uma pessoa com deficiência. O problema é não poder ser uma pessoa com deficiência na sociedade.
Todo tipo de enfrentamento, constrangimentos que meu filho passou com colegas que se relacionavam à minha pessoa de forma pejorativa. Ele teve que se posicionar, me defender, então, uma série de atravessamentos que impactaram o nosso relacionamento. E tivemos que superar e ressignificar para poder dar sequência. Hoje, na condição de avô, meu neto pega o melhor da história. Ele já pegou uma pessoa experimentada, já fortalecida dentro dessa compreensão, mas é muito difícil.
Como foi a criação do seu filho para que ele desenvolvesse um olhar atento em relação a outras pessoas com necessidades diferentes das dele?
Primeiro que ele já trouxe isso na sua bagagem genética, na sua bagagem ancestral, ele já trouxe isso. Já participei de reuniões na escola em que ele foi defender um garoto com deficiência, outra vez defendeu outro garoto de gordofobia. E eu tenho muita sorte na minha experiência como pessoa com deficiência porque eu sempre fui muito agregador. Conheço muita gente e sempre me relacionei com muita gente. Mesmo considerando aquelas pessoas que demandaram quando eu sofri o acidente, ainda ficou muita gente, além dos familiares. Então, eu não deixava de fazer absolutamente nada por causa da falta de acessibilidade, porque essas pessoas eram os meus recursos de acessibilidade. Não tinha duna de areia que eu não subisse e descesse, não tinha escada que eu não subisse e descesse e não tinha espaço que não tivesse banheiro adaptado que eu não fizesse um banheiro improvisado. Tudo acontecia e meu filho acompanhava tudo isso muito de perto. Minha vida social permanece ativa mesmo diante de todas as barreiras que me impediram. Por causa dessas pessoas, as quais eu sou eternamente grato, eu pude continuar tocando a minha vida até começar de fato a compreender e fazer a leitura de que não estava correto. Por mais que eles estivessem disponíveis para mim, não estava correto eles estarem nessa condição, tampouco eu me encontrar nessa condição de dependência para realizar atividades que, se tivesse acessibilidade, eu realizaria sozinho. Ao mesmo tempo, todos os espaços que eu ocupava me fizeram entender que a minha presença já era uma presença política, que o meu corpo já fazia política antes mesmo de eu entender o que ele estava realizando.
Quais padrões de paternidade e masculinidade que você percebe a necessidade de romper em si e também de romper para as suas gerações?
Romper com todos. Não romper de uma forma afrontosa, como diria uma influenciadora daqui de Salvador que, inclusive, utiliza esse nome. Reconhecendo que o que foi realizado pelos nossos mais velhos, pelas nossas mais velhas, foi o que melhor que eles puderam fazer, mas entendendo que muita coisa do que eles praticaram já não cabe. Então, o tempo todo é um exercício de revisão. É como minha mãe diz: Filhos criados, trabalho dobrado. Meu filho tem 27 anos, mas a relação continua a mesma. Ele vai continuar sendo meu filho. Mas a desconstrução do machismo, desconstrução da lgbtfobia, desconstrução do racismo, do capacitismo, de todas essas perspectivas dentro do nosso relacionamento a gente constrói permanentemente até hoje e vamos continuar ainda por muito tempo.
E como é a relação com seu neto?
Com meu neto é algo diferente porque eu já não carrego muitas das violências que eu pratiquei com meu filho numa perspectiva de educar para enfrentar os combates na rua, essas estruturas tão violentas. Já com meu filho é um processo de desconstrução ainda hoje. Nesse período mesmo da pandemia ele voltou a morar comigo e tivemos momentos de conversar para passar a limpo muitas situações do nosso relacionamento que foram acumulando e não demos a devida importância. Muitas experiências que tinham ficado no passado, sem uma perspectiva de retorno, então foi muito importante. E na verdade eu aprendo muito com meu filho. Aprendo muito desde sempre. É essa coisa do choque de gerações, da sobreposição de uma. É importante estarmos abertos para os jovens e não nos relacionarmos com eles de uma maneira impositiva, sem acolher a humanidade deles, porque a gente perde a oportunidade de crescer com eles, né? Eu fiz uma postagem essa semana com imagens minhas e do meu neto falando que a criança é a melhor oportunidade da humanidade para superar o capacitismo na sociedade.
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O Brasil tem uma grande taxa de abandono parental. A maioria das famílias são compostas por mães solos. No seu caso, com a chegada do seu filho, desde o início você se coloca e ocupa espaços sendo um pai preto com deficiência. De onde vem essa postura? Você já tinha um processo de desconstrução dessa ideia da paternidade?
Eu adoro crianças e idosos. Eu amo essas fases das pessoas, essa fase da humanidade. Aliado a isso tem essa questão da sobreposição das gerações. Quando você se torna pai ou mãe, geralmente você vai tentar promover para sua criança o que foi ausência para você. Então, se você teve ausência de uma presença paterna, por exemplo, como eu tive, você tenta promover essa presença. Foi o que eu fiz.
Eu entendia que o melhor que eu poderia fazer por ele era estar presente. Independentemente de como a gente desenvolveria a nossa relação e ainda bem que foi a melhor possível, mas foi a melhor possível a partir dessa perspectiva de uma presença, de estar presente. Agora é diferente do que ocorre quando um pai de uma pessoa que nasce com deficiência ou que se torna uma pessoa com deficiência. Eles não suportam. E eles abandonam.
A maioria das famílias que têm pessoas com deficiência são famílias de mães solos, mães que são abandonadas assim que é dada a notícia do nascimento ou de que a pessoa se tornou uma pessoa com deficiência seja por acidente, doença ou uma violência. Os pais não suportam essa realidade e abandonam e as mulheres que se tornam, muitas vezes, cuidadoras não remuneradas dessas crianças, tendo inclusive que abdicar do trabalho, da sua experiência de vida, das próprias existências para promover alguma qualidade de vida para suas crianças e são pessoas absolutamente invisibilizadas.
Outro pai entrevistado para esta temporada do Narrando Utopias comentou sobre a falta de banheiro familiar em vários estabelecimentos. Então, como foi transitar nos espaços em que você precisava estar com o seu filho? Você se lembra de alguma situação em que você não conseguiu realizar alguma atividade por conta da falta de acessibilidade?
Inúmeras. Eu ainda não tinha a leitura, o entendimento, eu não sabia inclusive, debater, conversar sobre, mas já começava a entender que estava errado. Situações como não ser acolhido, não ser relacionado nas reuniões de pais, não ser contemplado nas festas celebrativas ao Dia dos Pais, por exemplo, de realizarem brincadeiras que eu não poderia desenvolver com meu filho. Por exemplo, você fala sobre a questão do sanitário, de não ter um trocador. Não tem banheiro acessível. Mesmo que tenha um banheiro com trocador, eu não vou conseguir acessar do mesmo jeito. Não vai ocorrer. Até porque não existe essa perspectiva da paternidade e da maternidade para a pessoa com deficiência. Se eu não vejo Zig na cidade, como vou pensar que ele pode se relacionar com uma pessoa e que vai ter um filho? E que vai exercer a paternidade, acompanhar seu filho durante todo o processo educacional? Que vai querer fazer questão de participar da festa do Dia dos Pais, das reuniões com os pais? Quem vai pensar nisso se não forem as pessoas com deficiência? As pessoas sem deficiência não vão pensar e se pensarem vão pensar a partir da própria régua, a partir da própria métrica que não alcança, não contempla a pessoa com deficiência porque não sabe do que se trata ainda. São enfrentamentos intermináveis e isso porque estamos falando de um pai com deficiência. Se a gente pensar em um aluno com deficiência, isso se torna ainda mais crítico porque essa pessoa tem que estar na escola todos os dias.
Quais as suas referências quando o assunto é paternidade?
A minha geração em diante é uma geração que vem propondo, que tem experienciando essa mudança da paternidade, né? Onde o afeto vem se fazendo cada vez mais presente. Meu filho é a maior referência que eu tenho de paternidade. É um cara incrível. Adoraria ser filho dele. E não dá também para negar que meu pai, dentro das limitações dele, é sim uma referência de paternidade. Que meu avô, dentro das limitações dele, é uma referência de paternidade. Não podemos pegar o passado e jogar fora. Isso não está no nosso DNA, na nossa negritude. Nós aprendemos através da oralidade e a partir dela a gente revisa nossas relações e propõe o futuro. Não dá para não reconhecer essas pessoas porque além de ingratidão isso seria uma recusa, uma refutação da minha própria negritude.
E que tipo de pai você é ou busca ser?
O pai que eu busco ser é o pai amigo. O pai parceiro, pai brother, esse é o pai que eu sempre busquei ser. Não sei se eu fui e como eu fui, aí teríamos que perguntar para meu filho, mas a minha busca foi e é essa porque é a relação que eu busco estabelecer com todas as pessoas. De amizade. Dizer para ele: “Você tem um amigo aqui e, por coincidência, ele é seu pai. Você pode contar com esse porto seguro, com esse ambiente acolhedor para você”. Não tem muita expressão de afeto, de afago, essas coisas. Não aprendi ainda e preciso ser honesto com vocês porque assim eu gosto de me portar nos espaços, mas é algo que, inclusive, me faz falta, mas eu não sei. Não me ensinaram e eu não consegui desenvolver isso. Com meu neto aí eu já começo a realizar, talvez por não ter tanto o compromisso que eu tinha com meu filho, pois agora o pai é ele. Não que eu seja aquele avô, como se diz por aí, que avô é pai estragado, mas é que é responsabilidade dele. O tempo já é dele. E ele vai saber melhor como promover para o filho dele os recursos que ele precisa promover. Eu já venho de outro tempo e já passei a sabedoria que precisava passar para ele. É lógico que eu tô aqui, né? Como um ancião, sempre disponível para ele e buscando aprender nas trocas entre nós, mas é outro tempo.
O quão potente é compor uma família preta como todos os valores que você trouxe para a gente ao longo da entrevista? Inclusão, anticapacitismo?
Tem um ditado que diz que santo de casa não faz milagre. A gente não pode acreditar nisso. A gente tem que começar em casa. Tem uma outra frase de um filme. Harry Potter! Olha, só vou citar Harry Potter. Tem uma frase que diz assim: É preciso coragem para enfrentar os inimigos. E ainda mais coragem para enfrentar os amigos. Quando existe afeto dentro de uma relação que você precisa sinalizar capacistismo, racismo, lgbtfobia, qualquer estrutura de violência e exclusão na nossa sociedade, isso se torna muito mais difícil. Se com as pessoas que não temos nenhum relacionamento a coisa descamba para o pessoal e o debate se perde, imagina com alguém que você tem algum tipo de afeto? Fazer essa pessoa entender que não se trata dela, mas sim de uma estrutura e que você está convidando essa pessoa a rever seu comportamento e que talvez não seja culpa dela. Mas ainda assim, mesmo não sendo culpa dela, é de responsabilidade dela também se revisar e se posicionar de uma maneira melhor. Eu também não estou aqui como régua do mundo, não é isso, mas dentro dessa perspectiva que você trouxe do capacitismo… Nossa! Eu ainda sofro capacitismo em casa, com familiares, com os amigos, porque ainda não entenderam. Por mais que tenha muito tempo já, estamos falando de uma questão histórica, mas para as pessoas sem deficiência ainda é algo novo. Então, é muito importante o trabalho em casa com a família. Minha mãe, nesse tempo que ela veio morar comigo, acho que ela já consegue fazer a minha palestra sem eu estar presente. Algum dia se eu tiver alguma situação de saúde e não puder realizar a palestra ela pode assumir sem problema, porque é aprendizado. A única coisa que a gente pode acumular sem afetar o outro negativamente é a aprendizagem.
Muito obrigada pela troca, pelo compartilhamento, Zig. Caso queira acrescentar mais algum comentário, fique à vontade.
A Larissa Luz tem uma música que diz: Espaço ocupado território conquistado. Algo parecido com isso. Essa tem sido a minha estratégia de vida, de luta, ocupação dos espaços. Eu aprendi isso de maneira instintiva mesmo, a vida foi se apresentando para mim dessa forma. Eu me acidentei e aí já fiz o vestibular, passei na universidade, meus irmãos montaram uma banda, me chamaram e assim eu fui ocupando variados espaços e em cada espaço já ia me posicionando. Ocupando espaços e gerando um incômodo mesmo, um desconforto. O Preto Zezé, presidente da CUFA, tem uma expressão interessante que ele utiliza, chamada constrangimento pedagógico, que é você escolher para a pessoa a ação que ela não está visualizando. E mais do que isso, quando a gente pensa, ouve a expressão “pessoa com deficiência” a gente sempre entende essa expressão como uma realidade experienciada por outra pessoa. Nunca uma realidade que pode se tornar a nossa própria existência. Entretanto, a maioria das pessoas com deficiência não nasce com deficiência, se tornam pessoas com deficiência a partir de um acidente, como foi comigo, de uma violência, como foi com a Maria da Penha, ou de uma doença como foi com o Arlindo Cruz.
Então, tão natural quanto nascer pessoa com deficiência é se tornar uma pessoa com deficiência ou ter uma demanda maior de recursos de acessibilidade e tecnologias assistivas com o aumento da expectativa de vida e a mudança previsível e natural da dinâmica do nosso corpo a envelhecer. Mas ainda assim o capacitismo vulnerabiliza a sociedade de tal forma que ele define que vocês não precisam conhecer e tão pouco se relacionar com Marcelo Zig.
Esta temporada é uma iniciativa do Inspiratorio.org, com produção do Portal Catarinas em parceria com o projeto Homem Paterno.