Em 6 de setembro, a visita a um abrigo de vítimas de violência doméstica, em Florianópolis, se transformou em um episódio de desrespeito flagrante às regras por parte do desembargador Jorge Luiz de Borba e de sua esposa Ana Cristina Gayotto de Borba, denunciados pelo crime de manter uma trabalhadora em condição análoga à escravidão. Naquele dia, Sonia Maria de Jesus, 49 anos, mulher negra e surda, foi levada de volta à residência do casal, onde teria sido mantida em situação de escravidão contemporânea.

Sonia, que vivia na casa de luxo do casal desde os 9 anos de idade, foi resgatada após uma denúncia anônima. Sua saúde bucal estava deteriorada e ela sofria com um tumor no útero. As investigações apontaram que trabalhava como doméstica sem salário nem descanso, dormia em um quarto mofado e foi privada de educação e documentação pelos quase 40 anos que permaneceu em condições análogas à escravidão. Em maio, o ministro do Superior Tribunal de Justiça Mauro Campbell Marques requereu “a pronta atuação da autoridade policial no cumprimento da ordem” para que Sonia Maria de Jesus pudesse “finalmente desfrutar de uma liberdade que jamais teve em toda sua vida” se, de fato, fosse comprovada a condição análoga à escravidão.

O ministro considerou indícios de trabalho forçado ou extenuante, pago com moradia e alimentação, e de aprisionamento da vítima. “A absoluta ausência de qualquer pagamento pelo trabalho doméstico desempenhado, somada à impossibilidade de se comunicar com terceiros, privando-a de qualquer contato social em razão de não ter aprendido a linguagem brasileira de sinais, concorreram fortemente para o aprisionamento da vítima ao local de trabalho”, afirmou.

A defesa argumentou o de sempre: que Sonia fazia parte da família. Em 27 de agosto, Mauro Campbell Marques autorizou que o desembargador e sua família visitassem Sonia no abrigo em que ela estava desde o resgate. Na decisão, Marques também estipulou que a doméstica poderia voltar para a casa do desembargador ao manifestar vontade “expressa, clara e inequívoca”.

Foi aí que o caso teve uma reviravolta. Mauro Campbell Marques mudou de posição, em uma decisão endossada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal André Mendonça. Sonia voltaria para a casa do desembargador. Depoimentos colhidos após a operação de resgate, juntamente com o pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva da doméstica, foram cruciais para isso.

O Intercept teve acesso a laudos, depoimento de testemunhas e registros da visita do desembargador e de sua família que mostram que a condição para que Sonia voltasse para casa – sua vontade inequívoca – não foi cumprida. Laudos do Ministério Público do Trabalho revelam uma suposta “estratégia de pressão e manipulação psicológica” adotada pelo casal Gayotto de Borba.

Em 23 de outubro, o casal foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República pelo crime de manter a trabalhadora em regime análogo à escravidão. O órgão também já sustentou a necessidade de afastar novamente a mulher dos investigados, alegando ilegalidade na decisão que permitiu a retomada do convívio. Sonia, no entanto, continua vivendo com a família.

Em resposta ao Intercept e Catarinas, os advogados afirmaram em nota que a família está impedida de falar sobre as provas produzidas para não desrespeitar decisão judicial. “As falaciosas acusações sustentadas por alguns órgãos de investigação estão sendo totalmente desmentidas em processos sob sigilo que tramitam em várias instâncias da justiça brasileira”, disse a defesa.

Os oito advogados que defendem o casal refutam a ideia de que Sonia seria subjugada, alegando preconceito velado de “quem não tolera que uma mulher deficiente, negra e de idade avançada possa integrar o núcleo de uma família de pessoas brancas e com olhos claros”.

A comitiva do desembargador

Depois que o caso veio à tona, Borba recebeu apoio de parlamentares catarinenses de todos os espectros políticos: Fabiano da Luz, do PT, Antídio Lunelli, do MDB, e Maurício Eskudlark, do PL, defenderam o desembargador, apoiando o voto de solidariedade do deputado Ivan Naatz, também do PL, que alegou conhecer a relação entre Borba e a vítima. O auditor fiscal do trabalho Humberto Camasmie, coordenador da operação de resgate, foi afastado do caso sob a alegação de que violou o segredo de justiça ao conceder uma entrevista. A defensoria pública tenta reverter a decisão. 

Em 4 de setembro, o caso chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio de um pedido de habeas corpus apresentado pela Defensoria Pública da União contra a decisão do ministro do STJ que liberou a visita do desembargador e sua família ao abrigo. O objetivo era evitar qualquer contato dos investigados com a mulher durante as investigações.

Para a Defensoria, a proximidade do “perpetrador da violência” à vítima não apenas contraria as determinações legais decorrentes do resgate, mas também transgride o Estatuto da Pessoa com Deficiência e a Lei Maria da Penha, já que os investigados conseguiram acesso a um abrigo destinado a mulheres vítimas de violência. Mas o ministro do STF André Mendonça manteve a decisão e autorizou a visita.

O relato que segue abaixo é feito com base na documentação do caso analisada pelo Portal Catarinas e Intercept.

Naquele 6 de setembro, o desembargador Jorge de Borba e sua esposa, Ana Gayotto de Borba, chegaram ao abrigo em Florianópolis por volta das 9h da manhã. A autorização judicial previa a visita dos investigados acompanhados apenas da defesa. O casal estava com uma comitiva de 10 advogados, sendo cinco com o sobrenome “de Borba”.

Estavam ali o irmão, a cunhada, dois sobrinhos do desembargador e a filha do casal, a advogada Maria Julia Gayotto de Borba, que é pós-graduanda em Direito das Minorias e Inclusão Social na Faculdade Cruzeiro do Sul. O neto adolescente também participou, juntamente com outros familiares, além de uma empregada doméstica da família e uma funcionária de cartório.

Para captar os sentimentos da mulher resgatada, também participaram uma psicóloga surda, que já a acompanhava desde o início do resgate, e uma intérprete de Libras. Procuradores do Trabalho também estiveram presentes – e é com base no relatório deles que descreveremos o que aconteceu naquele dia.

Minutos antes da visita, um acordo foi proposto e aceito pelo casal: a participação estaria limitada aos dois, além de três advogados e à cartorária. As regras, no entanto, foram rapidamente desrespeitadas.

No abrigo, uma parte dos advogados permaneceu do lado de dentro, enquanto, no quintal, local designado para a visita, o casal aguardava Sonia ao lado do neto, de quem ela cuidou desde o nascimento. Ao perceber a presença do adolescente como parte da estratégia de controle emocional sobre a vítima, o procurador do trabalho Italvar Filipe de Paiva Medina tentou impedir a permanência dele, indo em direção a outro procurador presente na ação, Sandro Eduardo Sardá. 

Entretanto, a tentativa de contato entre os dois procuradores teria sido obstruída pelo advogado Paulo Roberto Silveira de Borba, sobrinho do investigado. O de Borba em questão alegou que não permitiria a conversa, postura que contribuiu para ampliar a atmosfera de pressão no ambiente da visita.

No momento em que Sonia Maria de Jesus atravessou o gramado, os investigados e seu neto prontamente ergueram os braços para saudá-la, e ela correu em direção a eles, estabelecendo um reencontro emocional. Nesse instante, a atenção da mulher resgatada foi direcionada pelos investigados e seu neto para as janelas da sala de reunião. As pessoas presentes nesta sala, que não deveriam participar da visita, se inclinaram para fora das janelas, acenando para ela e abraçando-a.

A auditora-fiscal do Trabalho, Liane Durão de Carvalho, responsável pela filmagem do episódio, alertou os investigados sobre a violação do acordo, mas seus apelos foram ignorados.

Depois, parte das pessoas que estavam no interior do abrigo, incluindo advogados, invadiu o gramado. Os membros do MPT dirigiram-se aos funcionários do local e aos advogados para tentar garantir respeito às regras. Mesmo assim, durante as discussões, que se prolongaram por alguns minutos, vários dos presentes persistiram na interação com Sonia, formando um círculo ao redor dela e das funcionárias do abrigo.

A cena teve seu ápice de apelo emocional quando Ana Cristina conduziu Sonia até uma cadeira ao lado do desembargador, que a abraçou e a fez deitar sobre seu ombro. Desde o início, a investigada já adotava gestos e expressões verbais como “vamos pra casa” e “vamos pegar suas coisas”, enquanto Sonia não demonstrava qualquer reação nesse sentido. 

A seguir, a esposa do desembargador abriu um álbum de fotografias, que segundo análise dos procuradores foi “confeccionado para o momento também como estratégia de manipulação emocional”, exibindo à Sonia diversas imagens dela com membros da família.

Em um esforço para preservar a integridade da abordagem, os agentes do trabalho pediram que as perguntas da psicóloga fossem iniciadas somente após Sonia se afastar do investigado, reconhecendo que sua manifestação de vontade poderia ser influenciada enquanto estivesse sob os braços dele. No entanto, o pedido foi ignorado, e as perguntas começaram a ser feitas enquanto Sonia permanecia nessa posição.

Durante os questionamentos sobre as fotos do álbum, quando a psicóloga pedia à Sonia que se identificasse, o investigado interferia, pegando no antebraço dela e direcionando sua mão para as imagens, comprometendo a abordagem psicológica. Essa interferência persistiu ao longo das perguntas. Posteriormente, a esposa do desembargador retomou a exibição de fotos para Sonia, interrompendo o trabalho da psicóloga surda, que se afastou momentaneamente.

Em seguida, os investigados sugeriram apresentar à Sonia uma mala por eles preparada, buscando que ela, apontando para o objeto, expressasse sua vontade de retornar ou não à casa deles. Ana Cristina trouxe a mala enquanto Sonia ainda estava sentada ao lado do desembargador.

Ao exibir a mala, a psicóloga apontou para ela e questionou Sonia, que não demonstrou reação clara, desviando o olhar para as janelas da sala de reunião, momento em que a comitiva continuou a interagir com ela.

Diante da falta de reação de Sonia, que permanecia inerte diante da mala, o desembargador levantouse, deu um tapinha na perna dela para que também se levantasse e a conduziu pelo braço em direção ao estacionamento, onde estava seu carro. Durante esse processo, fez sinal de adeus com as mãos, “em atitude debochada”, ignorando a psicóloga surda e a intérprete.

Pouco depois, Ana Cristina entregou a mala à Sonia, e todos os parentes e advogados saíram e começaram a abraçá-la.

A pressão se estendeu até mesmo à psicóloga surda, responsável por compreender a condição emocional de Sonia para tomar decisões. Durante uma dessas interações, a auditora refez a pergunta, mas foi novamente interrompida, dessa vez pela advogada Eleonora Lebarbenchon Silveira de Borba, cunhada do investigado. Ela teria insistido que a resposta deveria vir da psicóloga indicada pelos investigados, que não tinha experiência em comunicação com pessoas surdas.

Sem obter uma resposta “expressa, clara e inequívoca” sobre o desejo de retornar, a psicóloga foi questionada pela última vez. Diante da pressão, acabou cedendo, alegando que a vítima havia se dirigido aos investigados e se afastaria caso se opusesse. 

“Ela sente conforto junto com eles, se sente confortável, mas responder ela não respondeu. Mas ela sente conforto. Ela tem vergonha, muito pessoal olhando, então aí ela se sente desconfiada, não é?”, disse a psicóloga em resposta durante momentos finais em que foi consultada.

A visita foi encerrada com uma selfie, momento em que a grande quantidade de pessoas presentes teria cercado novamente Sonia para posar para fotos. O advogado Paulo Roberto Silveira de Borba, sobrinho do investigado, chegou a gritar convidando um dos membros do MPT presentes para “participar da selfie”.

Na análise dos procuradores e da auditora-fiscal, a forma como os investigados agiram para tumultuar o encontro é uma demonstração sobre como não tinham certeza sobre a vontade da mulher. “Os investigados não tinham segurança de que, observada a delimitação de participantes da decisão judicial e sem os inúmeros subterfúgios dos quais se valeram, Sonia Maria de Jesus aceitaria retornar à sua casa”.

Ainda de acordo com os representantes, ao orientarem as funcionárias do centro para retirar as pessoas que haviam invadido o espaço da visita, inclusive o neto dos investigados, a cunhada do desembargador teria gritado: “vão tirar todo mundo que ela gosta”. “Essa manifestação é bastante reveladora da abusiva estratégia de manipulação utilizada”, destacam no relatório. Para os procuradores, a conduta manipuladora durante a visita à vítima resgatada teria configurado ainda “flagrante violência contra ela”, classificada nos termos da Lei Maria da Penha como violência psicológica.

Os procuradores destacam que “tudo se insere em uma estratégia pensada de manipulação e controle psicológicos, típicos de relacionamentos abusivos”. Eles explicam que há ainda o domínio psicológico pelos laços afetivos distorcidos, típico do escravagismo, que se manifesta pelo “temor reverencial em relação ao empregador”, e pela dificuldade de confrontar a exploração.

Conforme os representantes do MPT, a capacidade de tomada de decisão de Sonia, essencial para compreender adequadamente o encontro com os investigados, teria sido sistematicamente burlada por atos contumazes de desrespeito, violações escancaradas a determinações judiciais, estratégias de manipulação psicológica e abusos que “saltam aos olhos”.

Já a defesa, em petição ao STF a favor do sigilo processual, em 10 de setembro, argumentou que apesar das “tentativas dos representantes do Ministério Público do Trabalho e do Ministério do Trabalho de embaraçarem a busca da verdade” e das conhecidas dificuldades de comunicação, a resgatada conseguiu “expressar, de forma clara e inequívoca, o imenso afeto, o amor verdadeiro e recíproco que nutre por Jorge e Ana Cristina”.

Contrapondo as constatações nos autos sobre o papel de Sonia na residência, sustentam que, na verdade, é ela que recebe cuidados da família, devido a suas “deficiências de ordem cognitiva, auditiva e de fala”. 

Sonia era quase da família, dizem investigados

Além de Jorge e Ana Cristina, também são réus na ação civil pública na 1ª Vara do Trabalho de Florianópolis a mãe de Ana Cristina, Maria Leonor Gayotto, 87 anos, e as filhas do casal, a advogada Maria Julia Gayotto de Borba, 31, e a ginecologista Maria Alice Gayotto de Borba, 36. A soma das dívidas referentes a verbas trabalhistas e indenizações totaliza R$ 4.915.233,79.

Mas agora, com endosso do STF e STJ, o desembargador Jorge Luiz de Borba, de 67 anos, tenta conseguir a paternidade socioafetiva de Sonia como uma forma de regularizar a situação.

Como estratégia, a defesa utiliza um laudo psiquiátrico, de 23 de setembro, assinado pelo médico perito Paulo Blank, nomeado pela 2ª Vara da Família e Órfãos da Comarca de Florianópolis. O laudo atesta que Sonia possui deficiência intelectual moderada, necessitando de auxílio para suas atividades diárias. O perito afirma que a incapacidade é absoluta e destaca o vínculo afetivo positivo com o requerente da ação judicial.

A Defensoria contesta. “Se ela é incapaz de manifestar vontade, nunca poderia ter voltado para a casa dos investigados”, afirma William Charley. Na avaliação do defensor público, o laudo tenta comprovar a inexistência de uma relação de trabalho com Sonia. “Tentam provar que ela não tinha como trabalhar, porque não tinha capacidade de obedecer ordens, para provar que ela não era empregada”, afirma.

Embora dois dos oito ex-funcionários tenham afirmado após o resgate que ‘Soninha’ não possuía jornada fixa e frequentava a piscina e a praia, apesar de não ter contato com ninguém de fora da família, três dos depoimentos adicionais reforçam a afirmação de que Sonia desempenhava uma função de trabalho regular na casa. Segundo os relatos, Sonia realizava tarefas como passar roupas para todos os membros da casa, além de servir chá e café para Ana e de fazer massagens nos pés dela. “A cama da Ana só é arrumada pela Soninha”; “por estar há muito tempo na casa ela sabia como arrumar e passar a roupa”; “passava roupa impecavelmente”, contou uma das funcionárias.

Depoentes também confirmaram que Sonia dormia na edícula e fazia suas refeições junto com as outras empregadas, uma situação completamente diferente da vivenciada pelos filhos do casal. “As filhas dos investigados têm tudo e a Soninha não tem”.

Os familiares do casal comiam “salmão e nunca davam esse tipo de comida para Soninha e as demais empregadas”.

Após o resgate de Sonia, os integrantes da operação constataram o “lastimável estado de sua saúde bucal”, demandando a extração emergencial de um dente, somada aos três já ausentes, além da presença de acúmulo de tártaro. Paralelamente, foi diagnosticada com nódulos no útero, uma condição que pode requerer intervenção cirúrgica. No decorrer da investigação, uma ex-funcionária testemunhou que, em algumas ocasiões, encontrou pus e sangue no ouvido da mulher, sem que tenha recebido assistência médica. Também há relatos de que chorava com dor de dente. Uma das funcionárias chegou a informar Ana Cristina sobre o sofrimento de Sonia, mas a patroa nada teria feito.

A ausência de vínculo formal com a família de Borba não é mero acaso. Sonia passou a maior parte de sua vida confinada à família do desembargador, mas sequer dormia sob o mesmo teto, conforme relataram ex-funcionárias no processo. Sua condição era evidente, inclusive na demarcação de espaços e limitações na relação com a família: o quarto ficava na edícula aos fundos, próximo ao outro quarto de empregada, e juntas compartilhavam um banheiro.

Além da negligência nos cuidados básicos à saúde, Sonia também teria sido submetida a maus tratos, como beliscões e puxões de cabelo pela patroa, segundo depoimento de uma das funcionárias. Uma das depoentes ainda revelou que o desembargador teria feito contato por telefone no dia anterior ao depoimento, o que para os auditores configurou tentativa de influenciar testemunhas.

Para a defensoria, a disparidade no tratamento é prova incontestável da diferença entre Sonia e os filhos: todos escolarizados e com acesso a direitos que ultrapassam a média da população. “No entanto, algumas coisas os investigados fizeram a ela: bater na louça para dizer que é hora de lavar a louça, fazer movimento com a vassoura e ela entende que é vassoura, fazer movimento de massagem ela faz massagem. Esse é o problema da Sonia. Ela foi a pessoa subalternizada para ser a serva da casa”.

“Na audiência prévia com os investigados, durante a fiscalização, questionei o desembargador sobre a falta de escolarização de Sonia. Ele alegou dificuldades de aprendizado, mas isso não justifica, pois uma pessoa com deficiência tem direito à educação. Além da questão de Libras que faz parte do direito da pessoa surda de se comunicar”, relatou o defensor.

William Charley destacou a peculiaridade do pedido de habeas corpus, uma vez que esse recurso jurídico é comumente utilizado para salvaguardar a liberdade dos investigados, não das vítimas. “Imagine a seguinte situação: uma mulher violentada pelo marido, sofreu cárcere privado, e o investigado vai à justiça alegando que tem um processo da Lei Maria da Penha contra ele, mas que quer a esposa de volta em casa, porque ela lhe pertence, faz parte do convívio dele. E o juiz permite que volte. Ou seja, é uma situação absurda, mas foi isso que aconteceu no caso da Sonia”, aponta o defensor.

A defesa, no entanto, contesta a falta de assistência social e educacional, mencionando “iniciativas infrutíferas” de inseri-la em instituições de ensino.

Em nota divulgada no dia da operação, em 6 de junho, o desembargador afirmou que os propósitos da família foram exclusivamente “humanitários, de amor ao próximo”.

“Trata-se de alguém que passou a conviver conosco, como membro da família, residindo em nossa casa há mais de 30 anos, que se juntou a nós já acometida de surdez bilateral e muda, tendo recebido sempre tratamento igual ao dado aos nossos filhos”, afirma.

‘Fazer parte da família’: uma estratégia escravagista

A tese de que Sonia é um membro da família é central na defesa da família. Os advogados destacam que, ao longo dos anos, “a convivência, a reciprocidade e o amor tornaram Soninha um membro da família”. Apesar da alegação, uma publicação de agosto de 2020 no Instagram de Ana Cristina, esposa do desembargador, mostra uma foto com agradecimentos das “funcionárias”. Sonia está listada. Nos comentários da postagem, o desembargador Borba afirma que é “muito gratificante quando suas funcionárias te homenageiam, agradecendo”.

Luiza Batista, coordenadora geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, explica que a expressão “fazer parte da família” é, na verdade, uma estratégia escravagista de manipulação emocional, frequentemente utilizada para negar os direitos das trabalhadoras domésticas. “É uma manipulação do afeto, porque muitas dessas trabalhadoras, que estão sendo resgatadas, iniciaram ainda criança”.

Na avaliação da representante, caso a adoção seja concretizada, o desembargador terá uma espécie de salvo-conduto para persistir na exploração de Sonia. “O homem branco, de olhos azuis, escravizou a menina e mostrou que tem poder para levar ela de volta, inclusive, com o processo de adoção, ele pretende formalizar o título de posse sobre ela”.

A advogada da família de Sonia, Cecília Asperti, diz que não foi informada sobre o processo de paternidade socioafetiva. “Existe família biológica, então não pode haver adoção sem escutar a família. Há uma narrativa de que ela foi entregue, abandonada, mas isso não é a realidade. Pelo contrário, ela foi muito procurada”, diz. “Como é que a gente trata, numa mesma situação, o crime de trabalho escravo e o reconhecimento de paternidade socioafetiva?”, questiona.

O estado de vulnerabilidade de Sonia é agravado pelo fato de ter sido privada de uma das habilidades humanas mais básicas: a capacidade de se comunicar. Ao longo de 40 anos, confinada à família Gayotto de Borba, foi relegada ao silenciamento, sem acesso à educação formal e inclusiva, conhecimento em libras, leitura, escrita em português ou dispositivos auditivos.

“A vulnerabilidade de Sonia se materializava não apenas pela situação de pobreza da família biológica, do racismo estrutural, considerando sua pele negra, e pelo fato de ser mulher, mas também por ser deficiente (surda e muda)”, diz trecho do auto de infração. 

Além de ser privada do convívio, direito previsto no Estatuto da Pessoa com Deficiência, não foram encontrados registros de que tenha recebido atendimento médico e odontológico ao longo de sua vida. Sônia sequer tinha existência formal, obteve o documento de identidade somente em 2019, seguido pelo CPF em 2021.

“Todos os elementos nos autos demonstram que ele fazia dela uma escrava particular, ou seja, durante todo o período de investigação ela deveria ficar afastada dele para poder se manifestar livremente”, afirmou, em entrevista, o defensor público William Charley.

Mesmo diante desses fatos, a postura de André Mendonça, adotada apenas um dia após a visita, chancelou a decisão do ministro do STJ:  a de que, nos últimos 40 anos, Sonia havia vivido “como se fosse membro da família”.

Família biológica procurou Sonia por anos

Enquanto isso, seis irmãos biológicos, encontrados pelos investigadores, revelaram que a mãe, uma trabalhadora doméstica, persistiu na busca pela filha mais velha até morrer, em 2016. 

Nascida na zona oeste de São Paulo, na divisa com Osasco, Sonia foi levada pela psicóloga Maria Leonor Gayotto, mãe de Ana Cristina, em 1982, quando tinha entre oito e nove anos. Deolina Ana de Jesus, mãe de Sonia, decidiu confiar temporariamente sua filha à psicóloga, que estava envolvida em um projeto social da PUC na creche frequentada por Sonia em Vila Dalva. A motivação para esse arranjo, estabelecido por acordo verbal, teria sido uma situação de violência doméstica contra a criança pelo pai de Sonia.

Conforme registro do jornal universitário de novembro de 1983, Leonor liderava o projeto “Socialização em creche de periferia”, cujo objetivo era “lançar uma compreensão sobre a criança e os moradores da favela na complexidade de seu cotidiano em suas relações sociais, visando criar propostas alternativas de ação”. Maria Leonor trabalhou na PUC e na UFSC. Não há registros de trabalho de sua filha Ana Cristina, com quem Sonia foi morar posteriormente.

A vida da trabalhadora doméstica Deolina Ana de Jesus foi marcada por uma história de busca pela filha, a mais velha de sete irmãos. “Minha mãe tinha essa angústia, nunca deixou de procurá-la, tanto que as minhas irmãs mais novas tiveram ainda a participação nas buscas. Minha mãe saía da Zona Leste até a Sul, realmente, andando, em busca da Sonia e esse era um desejo que ela tinha, de fato”, lembra Marcelo.

De acordo com os relatos dos irmãos, Deolina procurou informações sobre o paradeiro da filha na creche em várias ocasiões. No entanto, recebeu informações desencontradas da funcionária que teria facilitado a entrega da criança, levando a mãe a realizar longas caminhadas a pé junto com os filhos na tentativa de encontrar Sonia, sem nunca conseguir.

O fato de Deolina permanecer no mesmo endereço até a morte, assim como parte dos irmãos ainda residirem próximos à creche de onde ela foi retirada, mostra que Jorge e Ana Cristina tinham plenas condições de manter o vínculo de Sonia com a família biológica. Mas isso nunca aconteceu. 

“Houve, por conseguinte, propósito deliberado de mantê-la afastada de seus laços familiares. Essa prática favorece a exploração da trabalhadora com cláusulas contratuais abusivas”, descreve o auto de infração.

Os elementos que evidenciaram a submissão ao trabalho forçado incluíram a condição de vítima de tráfico de pessoas e a arregimentação por meio de ameaças, fraude, engano, coação e outros artifícios que comprometeram seu consentimento.

Em 14 de setembro, o ministro do STJ impôs condições ao casal de Borba visando o bem-estar e a integração de Sonia. Entre elas, a continuidade da frequência na Associação de Surdos da Grande Florianópolis para seu letramento em Libras, a assistência médica e hospitalar, assim como o direito dela de encontrar sua família biológica.

Contudo, em 23 de setembro, um sábado, parte dos irmãos viajou de São Paulo para se reunir com Sonia em Florianópolis, mas teve seus planos frustrados: o desembargador não a levou ao encontro.

A solução veio por meio de um pedido de tutela cautelar, ainda no sábado, durante o plantão do STJ, pela advogada dos familiares, que permitiu a reunião na sede da Polícia Federal, no domingo – porém sob os olhos da família de Borba. Na decisão do ministro, foi permitida a entrada de um representante do MPT e um da família Borba, garantindo que fosse assegurada a privacidade e intimidade do ato.

Para a advogada da família de Sonia, Cecília Asperti, a decisão não explicita porque permitiu a presença de um Borba no encontro – mas ela ocorreu dentro de um raciocínio de que a doméstica já está sob a guarda dele. “Não é só que ela voltou para a casa dele, ela está sob a guarda dele” disse.

De acordo com a advogada, os investigados alegaram falta de antecedência na notificação para o encontro que não aconteceu. “Conforme a decisão anterior que garante a visita, em tese poderíamos ligar e falar ‘olha, a família está aqui, você traz ela aqui para vê-los’, mas agora está no ponto de que se não tiver decisão judicial, os investigados não a levam. Isso só corrobora que ela é uma mulher escravizada, não tem liberdade”. No dia do encontro, oito familiares biológicos, entre quatro irmãos, uma cunhada e três sobrinhos, chegaram às 8h na sede da Polícia Federal, em Florianópolis. A reunião só começou por volta das 9h20.

Os irmãos emocionados compartilharam com ela as histórias do esforço da mãe, falecida em 2016, em sua busca incansável pela filha. “Minha irmã mais velha a abraçou e teve a percepção de um abraço mais forte, de ter uma expressão de emoção, mesmo, por parte da Sonia e até mesmo um reconhecimento. A intérprete relatou que Sonia também reconheceu minha mãe através da foto que a gente já havia mandado”, contou Marcelo.

Segundo o irmão da vítima, em pelo menos um momento o desembargador teria se exaltado e contestado a versão da intérprete que acompanhou o encontro, Sandra Amorim, presidenta da Associação de Surdos da Grande Florianópolis, em relação à história da família.

Por sua vez, Sandra Amorim, em ofício a Luciano Arlindo Carlesso, procurador do Ministério Público do Trabalho de Florianópolis, questionou o fato de o desembargador não ter permitido que Sonia tivesse um momento sozinha com os familiares, exercendo controle sobre a situação. O relato aponta que em pelo menos dois momentos específicos, o desembargador teria indicado com a cabeça o que Sonia poderia ou não fazer. “Entende-se necessário um segundo encontro entre Sonia e seus familiares, garantindo que este encontro será realizado sem interferências externas”, recomendou a representante da associação.

Segundo me contou o irmão Marcelo de Jesus, 37 anos, que não esteve presente, mas é o porta-voz da família, a permanência do desembargador limitou o reencontro.

“O desembargador conseguiu tudo que queria, ter acesso aos meus irmãos, ao encontro. Houve olhares, presença que trouxe sentimento de coação”, conta o irmão biológico, que é técnico em segurança do trabalho.

Marcelo espera que haja um processo justo que permita à irmã ser amada e viver com dignidade. “A ideia é que a gente consiga estabelecer uma relação no sentido de reintegrá-la, para que tenha tudo que de fato é dela por direito”, ele diz. “A gente está falando de liberdade, de educação, do convívio familiar. É uma série de experiências que ao longo desses anos não foram vividas, principalmente pelas minhas irmãs mais velhas”.

Todos os irmãos de Sonia têm formação técnica ou superior, informou uma das familiares em depoimento. Segundo me contou Marcelo, os familiares imaginavam que a irmã, que foi tirada de uma situação de violência, estivesse numa condição melhor do que eles. Em depoimento, uma das irmãs se disse revoltada porque ela e os irmãos, “filhos de uma mulher preta e pobre, foram alfabetizados e tiveram educação, mas Sonia, que vivia com um desembargador, não teve educação”.

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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