A convite do Catarinas a doutora em Ciência Política analisa como o debate sobre o direito das crianças, vítimas de estupro, vêm sendo desvirtuado para normalizar o abuso infantil e a negação do acesso aborto legal.

O caso da menina de 11 anos, de Santa Catarina, que teve negado seu direito ao aborto legal, devendo suportar “ficar mais um pouquinho” gestando mobilizou o país. Além da violência institucional sofrida no sistema de saúde, que negou a realização do procedimento, e no sistema judicial, que coagiu a menina e sua representante legal, a mãe, a manter a gravidez, mesmo que isso representasse um risco à saúde, o caso expõe a urgência de políticas voltadas ao combate à violência institucional sofrida por meninas vítimas de crimes sexuais. De acordo com o Ministério da Saúde, em 2021, 17.316 garotas de até 14 anos foram mães no Brasil. Esse dado não fala apenas de maternidade, mas de violação de direitos – de estupros.

Um dos argumentos utilizados por aqueles contrários ao direto da menina de 11 anos de abortar seria uma suposta relação dela com um suspeito do ato, um garoto de 13 anos. Assim, ela não teria sofrido um estupro, mas mantido relações consensuais. Porém, estamos falando de uma criança. De acordo com a legislação brasileira, a prática sexual com menores de 14 anos é crime, e o fato desses menores concordarem com o ato não desqualifica o caráter criminoso da conduta.

Crianças menores de 14 anos são vulneráveis, sem capacidade de exercer o consentimento. Sem consentimento, a prática sexual é estupro.

Gravidez resultante de estupro, assim como gestações que impliquem em risco à vida da mulher ou de fetos anencéfalos, são hipóteses que permitem a realização de aborto no Brasil, sem a necessidade de postular esse direito junto ao Poder Judiciário. Mas, como vimos, não é o que ocorre.

O caso de Santa Catarina nos choca pela brutalidade da manutenção da gestação de uma criança, mas fala também da realidade das mulheres que buscam acessar o aborto legal. De acordo com a Lei 12.845/2013, conhecida como Lei do Minuto Seguinte, todos os hospitais da rede SUS devem oferecer às vítimas de violência sexual atendimento emergencial e multidisciplinar. E o aborto legal não requer autorização judicial ou que a vítima informe o crime à autoridade policial, da mesma forma, não há limite legal em relação à idade gestacional ou ao peso fetal para realização do procedimento.

A menina, vítima de um estupro, deveria ter acessado o aborto legal quando buscou o hospital, mas assim como tantas outras meninas e mulheres, teve seu direito violado, com o argumento de que o tempo gestacional seria um impedimento para a realização do procedimento, sem uma autorização judicial.

Uma criança estuprada e grávida. Esse cenário já deveria ser suficiente para aqueles responsáveis pela aplicação da lei e manutenção da ordem constitucional garantirem os direitos mínimos elencados não somente na legislação penal, mas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prevê ser dever do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à dignidade e ao respeito de crianças e adolescentes.

Porém, mais uma vez, a menina foi violentada. Diante da demanda de uma autorização judicial para a realização do aborto, as representantes do Poder Judiciário e do Ministério Público, a juíza Joana Ribeiro Zimmer e a promotora Mirela Dutra Alberton, incorreram em violência institucional, violando a integridade psíquica e física de uma criança.

A menina e sua mãe foram induzidas por duas autoridades a concordarem com a manutenção de uma gestação resultante de estupro, indesejada e que representava um grave risco à saúde da garota. Isso em nome da proteção à vida – de um feto – não de uma menina que foi mantida por mais de um mês em um abrigo para que mantivesse a gestação, tal qual um incubadora, sem direitos, sem dignidade.

O desfecho do caso, provavelmente, tem contornos menos trágicos, graças à sua repercussão. Com a atenção midiática, a menina saiu do abrigo e teve garantido seu direito de realizar o aborto. Para além, o Ministério Público Federal instaurou um procedimento para averiguar a conduta do hospital que se negou a realizar o procedimento.

Mas e as outras tantas meninas sem nome? E os hospitais que se negam a cumprir aquilo que está previsto em lei? E os operadores do direito que, em defesa de uma vida abstrata, violam os direitos humanos de mulheres e meninas?

No Brasil, não raro, descobre-se a violência sexual sofrida por meninas com a gestação. De acordo com o estudo Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil (UNICEF, FBSP, 2021), entre 2017 e 2020, a cada 20 minutos, uma menina foi estuprada no Brasil, sendo que a maioria dos casos de violência sexual ocorre na residência das vítimas e é cometido por conhecidos (86%). E esses são os números registrados, crimes sexuais contam com um alto índice de subnotificação. Isso nos mostra a vulnerabilidade de meninas em casos de violência, há o temor na realização da denúncia, além do desconhecimento em relação ao próprio corpo. 

Crianças não fazem sexo, são violentadas. Os números alarmantes nos mostram a urgência da estruturação de políticas de combate à violência sexual contra crianças. Isso se dá por meio de informação, com educação sobre gênero e sexualidade, o que possibilita o debate sobre violência e eventuais denúncias. Mas também com o comprometimento do Estado, suas instituições e agentes na defesa da infância e dos direitos humanos. 

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  • Lívia de Souza

    Feminista, doutora em Ciência Política, mestre em Direito e pesquisadora no Grupo Violência, Gênero e Saúde, na Fiocruz...

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