Por Grazielly Alessandra Baggenstoss[1] e Leonardo Evaristo Teixeira[2]

Nesta terça-feira (11) foi veiculada a notícia sobre a acusação contra o professor da Universidade de Coimbra, Boaventura de Sousa Santos, como um dos possíveis acusados de assédio sexual no Centro de Estudos Sociais (CES) de Coimbra[3]

A forma com que foi feita a denúncia foi peculiar: os supostos fatos que configurariam o assédio foram escritos como o capítulo intitulado “The walls spoke when no one else would: autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant-garde academia” (As paredes falavam quando ninguém mais falava: notas autoetnográficas sobre o controle do poder sexual na academia de vanguarda, tradução livre), de autoria de Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom. O título do capítulo 12 pertence ao Livro “Má conduta sexual na Academia: para uma Ética de Cuidado na Universidade” (tradução livre) e faz referências à escrita de um dos muros do Centro em comento, com os dizeres “Fora Boaventura, todas sabemos”. 

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Crédito: reprodução.

Esse registro de denúncia não enseja ou nem necessariamente ensejará um procedimento jurídico (administrativo, criminal ou penal). Mas ainda é um registro. Para um procedimento jurídico, devem ser cumpridos alguns requisitos: relato do ocorrido, em uma instância jurídica competente para isso, com descrição do contexto e das pessoas envolvidas. Ah, e provas. Em casos de assédio, contudo, nem sempre há provas além da palavra da suposta vítima. 

As provas podem ser documentais, testemunhais, periciais. É possível ter informante. Mas, em um sistema discriminatório em que as vítimas são culpadas pelo mal a que são submetidas, geralmente é a palavra da vítima contra a palavra do suposto agressor, onde entra uma disputa de poder que não é somente individual, mas também institucional e estrutural. 

Sobre isso, as autoras do capítulo trazem que: “Quando compartilhamos nossas histórias com amigos não acadêmicos, era comum nos depararmos com questionamentos sobre por que não gritamos ou escrevemos cartas abertas para denunciar o assédio institucional e a prática silenciosamente aceita de que o acesso sexual a jovens pesquisadores e o extrativismo intelectual é parte do ‘pacote de remuneração’ (Theidon 2022) para fazer parte do clube do professor estrela. Como acontece com muitas vítimas, poucos entendem sua relutância em falar. No caso da academia, poucos entendem como as instituições e suas dinâmicas internas podem impedir que as jovens pesquisadoras acadêmicas se levantem e falem publicamente” (tradução livre). 

Em razão dessa dificuldade de comprovação de ilícitos praticados na clandestinidade e contra mulheres, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou, em decisão de março de 2023[4], que o Protocolo Para Julgamento com Perspectiva de Gênero no Judiciário Brasileiro seja obrigatório em todo território nacional. No Protocolo, há o reconhecimento de dimensões discriminatórias contra as mulheres, especialmente da discriminação institucional no Poder Judiciário[3]

Protocolos como este se justificam em uma assimetria de poder, visto que, nessa acareação de narrativas em um suposto caso de abuso, alguém dali é descrito como “de poder”, “de influência”, “reconhecido em determinada área”.

Essa imagem do “professor estrela” ou da “pessoa com influência”, sejamos realistas, pode ser sugestiva na condução do processo, do julgamento e, se se chegar até lá, da sanção. Antes disso tudo, a vítima pensa analisa todo esse contexto… e escolhe não passar por essas situações que possam gerar mais violência. 

No caso do Boaventura de Souza Santos, reflete-se sobre a forma com que as denúncias foram feitas. O capítulo de livro não caracteriza um procedimento formal de persecução jurídica. Mas é algo que nos provoca a refletir sobre situações sobre as quais todo mundo sabe, mas quase ninguém se posiciona. 

Seguimos, assim, não em análise ao caso do denominado professor estrela, mas refletindo o contexto dos assédios no cenário acadêmico, nacional e internacional. 

Todas e todos nós (já) conhecemos ao menos um assediador na academia. Somos ou fomos alunos e alunas dele, esbarramos pelos corredores ou eventos. As condutas de assédio (moral ou sexual) são conhecidas pelas fofocas, pela indignação de alguma companheira ou colega que sofre ou sofreu tal violência. O assediador sabe que sabemos dele. As saídas nem sempre são as mais óbvias. O corporativismo e as relações de poder são uma realidade nas Universidades. Por isso a denúncia nem sempre é a melhor saída, embora fosse a mais certeira. Evitaria novos abusos e violências? Possivelmente, mas nem sempre é fácil ir por esse caminho.

Nas universidades, assédios ocorrem; assédios sexuais e assédios morais. Sobre assédio sexual, em 2015, foi publicada a investigação “Violência contra a mulher no ambiente universitário” pelo Data Popular e Instituto Avon[6]. Dos dados sobre violência de gênero, assédio e violência sexual entre as universitárias entrevistadas, levantou-se que:
●  67% disseram já ter sofrido algum tipo de violência (sexual, psicológica, moral ou física) praticada por um homem no ambiente universitário;
●  56% já sofreram assédio sexual;
●  28% já sofreram violência sexual (estupro, tentativa de abuso enquanto sob efeito de álcool, ser tocada sem consentimento, ser forçada a beijar veterano);
●  42% já sentiram medo de sofrer violência no ambiente universitário;
●  36% já deixaram de fazer alguma atividade na universidade por medo de sofrer violência.

A mesma pesquisa alerta que os homens não percebem diversas práticas como violentas:
●  27% não é violência abusar de uma garota se ela estiver alcoolizada;
●  35% não reconhecem que existe violência no ato de coagir uma mulher a participar de atividades degradantes;
●  31% não veem problema em repassar fotos ou vídeos das colegas sem autorização.

Dados esses registrados em pesquisa. Mas ainda não impulsionam e nem representam uma denúncia formal. 

Em 2019, o Instituto Patrícia Galvão noticiou “Demissões por assédio sexual chegam a universidades“, com base em registros formais para denúncia de persecução jurídico-administrativa: 

Três casos de demissões de professores de instituições públicas levaram aos holofotes o debate sobre o assédio sexual e os desvios na relação de poder entre docentes e estudantes. No ano passado, após uma série de denúncias e sindicâncias, a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a de Goiás (UFG) afastaram membros do magistério que teriam forçado encontros com alunas e enviado mensagens eróticas pelo celular, conforme publicou o jornal “Folha de S.Paulo” no último domingo.

Em Santa Catarina, houve um caso grave e de grande repercussão na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. O caso ganhou notoriedade em 2018 e, administrativamente, depois de muitos afastamentos, o docente foi exonerado da instituição. Segundo a uma das advogadas do caso, Márcia de Moura Irigonhê, em entrevista ao Portal Catarinas: 

“Houve no processo administrativo muito mais vítimas do que no criminal e todas estavam falando a verdade. Foi um assediador que não ficou impune graças à união destas mulheres que, apesar dos traumas causados pelo ex-professor, tiveram coragem de contar suas histórias. Aguardamos que isso inspire mais vítimas a procurarem a justiça, pois hoje tivemos mais uma demonstração de que essa justiça ainda existe”.

Além do assédio sexual, é necessário falar também do assédio moral. Nesse contexto, achamos importante considerar o termo “extrativismo” para pensarmos o ambiente acadêmico. Como vocês devem imaginar, não há muitos registros sobre pesquisas relacionadas ao tema. Encontramos algumas referências esparsas em um buscador na internet e relatos sobre como estudantes da pós-graduação foram submetidos a procedimentos vexatórios, abusivos e discriminatórios, configurando um extrativismo acadêmico. A ideia de extrativismo caracteriza a extração de recursos sem a participação do extrator. Na academia, o extrativismo pode ser configurado como a extração de conhecimento sem a participação daquele que o extrai. É o conhecido “colocou o nome”, que é assédio.

 Além de assédio, o “colocou o nome” descumpre as “Diretrizes Básicas para a Integridade da Atividade Científica” do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, que orienta que, nos itens 17 e 18:

 17. Somente as pessoas que emprestaram contribuição significativa ao trabalho merecem autoria em um manuscrito. Por contribuição significativa entende-se realização de experimentos, participação na elaboração do planejamento experimental, análise de resultados ou elaboração do corpo do manuscrito. Empréstimo de equipamentos, obtenção de financiamento ou supervisão geral, por si só não justificam a inclusão de novos autores, que devem ser objeto de agradecimento.

18. A colaboração entre docentes e estudantes deve seguir os mesmos critérios. Os supervisores devem cuidar para que não se incluam na autoria estudantes com pequena ou nenhuma contribuição nem excluir aqueles que efetivamente participaram do trabalho. Autoria fantasma em Ciência é eticamente inaceitável

Autoria fantasma é o nome do “colocou o nome” em nome de altos índices de produtividade para dar conta de todos os trabalhos e atividades acadêmicas – afinal de contas, é muito trabalho, sim. E parece que é mais fácil terceirizar as próprias tarefas ou produzir autorias fantasmas do que planejar uma redução de trabalho possível. Como exemplo desta selvageria produtivista do meio acadêmico, as próprias revistas acadêmicas brasileiras, consciente ou inconscientemente, reproduzem essa lógica ao exigir que a publicação de artigos por graduandas/os, graduadas/os, mestrandas/os, mestras/es e/ou doutorandas/os devam ser em coautoria com doutoras/es. Tudo em prol de manutenção de um critério exclusivamente brasileiro que é o qualis, realizado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, enquanto revistas internacionais não possuem tal restrição.

Quando os limites da relação profissional-pedagógica são extrapolados, portanto, há a ocorrência de assédio moral acadêmico. Há um abuso do exercício dos direitos no pacto entre as pessoas e a hierarquia entre elas dificulta qualquer tipo de interrupção ou cessação do abuso.

A pessoa abusada, de seu lado, não encontra liberdade de escolha, pois muitas vezes depende daquele vínculo para conclusão de uma formação e manutenção da bolsa de estudos (pesquisa, extensão, monitoria, mestrado, doutorado), além da delicada situação da vítima que teve a oportunidade de realizar sua pesquisa no exterior e tem sua vulnerabilidade acentuada devido ao território, cultura, língua diversa daquela de sua origem. Não há, assim, liberdade de escolha também por causa do descrédito que as pessoas da academia dão a quem obsta tais práticas. E, quando não há liberdade, sobra coação.

 O assédio moral acadêmico pode se caracterizar como exigências de atividades além das determinadas no contrato, como exigência de trabalho além da carga horária contratada; como desvio de função, a exemplo de realizar atividades que somente compete ao professor, como correção de prova, registros funcionais; como atividades alheias à universidade, como pagamento de contas, limpeza de casa ou escritório (sim, isso existe).

No entanto, há uma naturalização dessas dinâmicas abusivas como se adequadas fossem em razão da normalidade com que elas são mencionadas e reproduzidas nos contextos universitários. Por exemplo, fale para um aluno que um “professor estrela” o está assediando com produção e carga horária que extrapola o contrato; possivelmente o aluno te odiará porque estará indo contra uma relação que ele tanto preza. Essas e outras dinâmicas normalizam o assédio – os assédios.

Isso compromete diversas camadas da universidade: desde algumas entidades estudantis, que negociam com o poder para ver se vale a pena se posicionar nesses casos (já que terão possivelmente vagas ou cargos garantidos com os stars ou seus conhecidos no futuro, independentemente se ilícitos ou não) até colegas docentes que entendem tais posturas como “normais” ou “é assim mesmo” ou porque recebem migalhas de poder do professor estrela. E fica parecendo que ninguém se importa… e, parece que no fundo, ninguém, mesmo aqueles chamados de progressistas, se importa mesmo com essas negociações desde que não afete um lugar de conforto que pode ser pensado como lugar social de privilégio.

Eles também se protegem. No lugar social de privilégio, faz parte possuírem aliados nas instâncias decisórias ou de denúncia, ou são eles mesmo que lá se encontram. Depois questionam o porquê não foi denunciado antes. O prestígio pessoal e acadêmico é o coringa que lhe dá permissividade para desqualificar as vítimas, como se uma denunciante fosse insignificante, problemática, vingativa.

Há casos sem registros, como a própria pesquisa de 2015 revela e como possivelmente no caso da notícia que inaugura este texto: por ausência de conhecimento, por medo da repercussão, por receio da revitimização, pelo trauma, desgaste, por ausência de apoio institucional, por ausência de apoio corporativo. São diversos os motivos. Em um âmbito restrito do Direito, muitos dirão que, se não houve reconhecimento formal do ilícito, ele não existe. Pois é. Não é para ter registro. Tendo registro, há estatística, há um acusado, procedimento e sanção; sem dar nome ao que aconteceu, sem o reconhecimento da gravidade daquilo, sem alguém dizendo que aquilo é errado e, institucionalmente, fazendo o registro e processando o caso devidamente, invisibiliza-se. Não há números que comprovem a violência, não há registro de antecedentes jurídicos, não há base para pensar em política pública ou institucional para comprovar as violências. Há impunidade.

Nessas impunidades, a todo tempo negociamos constantemente com o poder que temos e com o poder que o outro tem ou que o outro acha que tem. Constantemente negociamos até onde vamos. A diferença é que muitas pessoas têm limites nessa negociação; outras pessoas negociam até o inegociável. E, com ou sem registros, todas as pessoas sabem.


[1] Professora Adjunta de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina; Doutora em Psicologia Social Crítica pela Universidade Federal de Santa Catarina; Doutora em Direito, Política e Sociedade e Mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina; Coordenadora, Consultora e Pesquisadora em Projetos sobre Práticas Antidiscriminatórias; Advogada (OAB-SC).

[2] Mestre em Direitos Humanos pela Universidad Autónoma de San Luis Potosí/México. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Membro do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais. Advogado (OAB-GO).

[3] Para enfrentamento dessa discriminação, o Protocolo instrui que a atividade jurisdicional deve ser orientada sob a perspectiva de gênero em diversas fases, especialmente de produção de provas. A questão orientadora na Instrução Processual é o questionamento se “a instrução processual está reproduzindo violências de gênero institucionais? A instrução está permitindo um ambiente propício para a produção de provas com qualidade?”. Como subquestões, reflete se:
●  Perguntas estão reproduzindo estereótipos de gênero? (ex.: questionam qualidade da maternidade ou o comportamento da mulher a partir de papéis socialmente atribuídos?)
●  Perguntas estão desqualificando a palavra da depoente de alguma maneira? (ex.: questionam os sentimentos da depoente com relação à atual esposa de seu ex-marido ou qualquer ressentimento que possa existir entre as partes?);
●  Perguntas podem estar causando algum tipo de revitimização? (ex.: perguntas que exponham a intimidade da vítima, perguntas que revolvam a situações traumáticas);
●  O ambiente proporciona algum impedimento para que a depoente se manifeste sem constrangimentos e em situação de conforto? (ex.: a depoente encontra-se cercada por homens? O abusador encontra-se na sala?);
●  A depoente está sofrendo algum tipo de interrupção ou pressão que a impeça de desenvolver seu raciocínio?;
●  Laudos de caráter técnico-científico ou social podem estar impregnados de estereótipos, dando excessiva importância para pontos que só importam por conta de desigualdades estruturais ou então deixando de fora questões que só são percebidas quando há atenção a dinâmicas de desigualdades estruturais?

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