Enquanto mais de 80% das metas de desenvolvimento sustentável estabelecidas pela ONU estão em retrocesso no Brasil, afetando diretamente as mulheres negras, movimentos lutam por representatividade para mudar esse cenário

A data é 26 de novembro de 1945. O cenário é o Teatro Álvaro de Carvalho, no Centro de Florianópolis. As poltronas estão ocupadas por homens e mulheres brancos, integrantes das elites urbanas e rurais catarinense, autoridades políticas e familiares das alunas que acabaram de se formar no curso de Magistério do Instituto Coração de Jesus, um dos mais caros na época. Quem discursa no alto do púlpito é uma mulher negra e de origem pobre, filha de lavadeira e ex-escravizada. A professora e paraninfa da turma é Antonieta de Barros.

Pelos registros encontrados em arquivos históricos pela professora Jeruse Romão, autora do livro “Antonieta de Barros: Professora, Escritora, Jornalista, Primeira Deputada Catarinense e Negra do Brasil”, é nesse dia e com esse contexto que Antonieta faz a sua primeira reflexão pública sobre o papel do magistério no combate às discriminações, entre elas a de raça. “Ela usa a expressão: ‘essa coisa de cor, de raça’. Ela está defendendo uma educação em que a questão racial não pode ser um entrave para o processo educativo dos estudantes”, reflete Jeruse. 

Antonieta de Barros como paraninfa das formandas no curso de magistratura do Instituto Coração de Jesus/Foto: Reprodução/Livro Antonieta de Barros professora, escritora, jornalista, primeira deputada catarinense e negra do Brasil

A perspicácia de Antonieta a levou para dentro dos espaços das elites brancas formadas em sua maioria por homens, cujo período era caracterizado pela recém abolição da escravatura, pelo menos no papel. Foi dentro de um partido conservador que a primeira deputada negra do Brasil defendeu suas pautas progressistas e lutou pelo direito das mulheres e do magistério. Foi por meio da educação que ela abriu caminho para Ana Lúcia Martins, Marlina de Oliveira, Valdecir Nascimento, Viviana Santiago, Jeruse Romão, Marielle Franco e tantas outras mulheres negras que neste 25 de Julho — o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, o Julho das Pretas e dos 120 anos de Antonieta — forjam a sua identidade. 

As histórias dessas mulheres nascem na educação e se cruzam na luta por direitos que mais do que nunca transcorre o existir.

“Só vivem os que lutam, viver é um eterno lutar”, semeou Antonieta. 

“A perspectiva é de uma nação menos hostil, inclusiva e que nos permita ter dignidade e sermos reconhecidos como humanos. Essa é a nossa batalha”, perpetua a historiadora baiana, mestra em educação e uma das idealizadoras do 25 de Julho em encontro que ocorreu na República Dominicana em 1992, Valdecir Nascimento. 

“Eles vão ter que se acostumar, porque as mulheres negras vão avançar”, reforça a primeira vereadora negra de Brusque, no Vale do Itajaí, Marlina Oliveira Schiessl, que como Antonieta abre caminhos com a educação, mas sente-se como se estivesse “abrindo a picada à facão”.

“A gente não pode esquecer o que veio antes, nós já estávamos em movimento, mas a morte da Marielle Franco é histórica. Nós viramos sementes e estamos imbuídas em não permitir mais que nenhuma de nós seja exterminada e excluída desse lugar”, reforça a primeira vereadora negra de Joinville, Norte de Santa Catarina, Ana Lúcia Martins, que foi ameaçada de morte após eleita, em 2020. 

Neste mesmo mês foi lançado o V Relatório Luz da Sociedade Civil Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável, organizado pela ARTIGO 19 Brasil e América do Sul e Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero. O estudo revela que, no último ano, o Brasil não progrediu em nenhuma das 167 metas dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável estabelecidos pela ONU em 2015. Mais de 80% das metas estão em retrocesso, estagnadas ou ameaçadas. Dentro deste contexto, as mulheres negras são as mais atingidas pela descontinuidade de políticas públicas, especialmente no que tange aos seguintes objetivos: erradicação da pobreza, igualdade de gênero e paz, justiça e instituições eficazes.

Jeruse Romão é professora e autora do livro biográfico Antonieta de Barros: Professora, escritora, jornalista, primeira deputada catarinense e negra do Brasil/Foto: Alesc/Divulgação

Pandemia e aprofundamento das desigualdades

A condição imposta pela pandemia e a má gestão dela aprofundou ainda mais as desigualdades. Não por acaso, uma das primeiras vítimas fatais da Covid-19 no Brasil foi uma mulher negra, trabalhadora doméstica, de 63 anos, no Rio de Janeiro. Segundo informações divulgadas pela imprensa em março do ano passado, ela teria se infectado na casa da patroa. 

O Auxílio Emergencial que passou a ser pago no mês seguinte, com valores entre R$ 600 e R$ 1,2 mil, proporcionou condições paliativas de sobrevivência para uma parcela da população. Segundo o Relatório Luz, mais de 4,2 milhões de mulheres negras saíram da extrema pobreza durante os meses em que o benefício perdurou. Mas, a partir de setembro, houve redução de 50% no valor do benefício. Em 2021, a limitação orçamentária reduziu o Auxílio para valores entre R$ 150 e R$ 375.

Além da redução no apoio financeiro oferecido pelo governo federal, os especialistas que fizeram a pesquisa identificaram “achatamento do sistema de proteção social com restrições orçamentárias”, o que impediu que programas de redução da pobreza cumprissem seus papéis. O ano de 2020 terminou com 113 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar, mas 66 novos bilionários. Antes mesmo da pandemia, a pobreza extrema afetava 33% das mulheres negras, ante 15% das brancas.

“Com a redução do Auxílio Emergencial, a estimativa do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made-USP) é de que o percentual suba para 38% das negras e 19% das brancas”, revela o Relatório Luz.

A historiadora, mestra e coordenadora executiva do Instituto Odara, na Bahia, Valdecir Nascimento, integra a luta do movimento negro desde a década de 1980. Hoje, aos 61 anos, ela avalia que o racismo muda suas facetas, mas permanece dificultando a vida da população negra, especialmente das mulheres. Elencar prioridades na luta das mulheres negras é um desafio quando mesmo 40 anos depois a batalha continua sendo pela sobrevivência. 

“A prioridade? É ter direito à vida com sossego para poder trabalhar, vender seu acarajé, seu mingau, mas com direito de viver. Você não pode chegar do trabalho, ver a polícia invadir a sua casa e crivar seu filho de bala na sua frente, como se ele fosse um animal peçonhento que precisa ser extirpado”, expõe Valdecir.

“Eu estou falando de milhares de mulheres negras que têm seus filhos assassinados, que têm suas casas invadidas, que moram ainda em palafitas, que mesmo tendo a terra, não tem os incentivos para produzir. As mulheres que estão em um trabalho precário como o doméstico, arriscando a vida num contexto de Covid-19, que não têm direito à água potável. É uma condição desumana muito grande que nós naturalizamos há anos”, completa. 

Valdecir Nascimento é historiadora, mestra em educação e coordenadora executiva do Instituto Odara, na Bahia/Foto: Instituto Odara/ONU

Apagão de dados inibe políticas públicas

Dimensionar as profundezas das desigualdades em dados, especialmente em nível municipal, sempre foi um desafio no Brasil. Embora as poucas bases disponíveis tenham escrachado os retrocessos dos objetivos de desenvolvimento sustentável estabelecidos pela ONU, elas são insuficientes para pensar políticas públicas de avanço. Para a colunista da revista AzMina e consultora para questões de gênero e diversidade, Viviana Santiago, que também integrou o grupo de trabalho do Relatório Luz, o apagão de dados provocado pelo governo Bolsonaro dificulta a compreensão das diferentes realidades. 

“Esse cenário, que já era profundamente desafiador para pensar a descrição de fenômenos que atravessavam a vida dessas pessoas no Brasil, vai se tornando desesperador com o advento deste novo governo. A gente, de fato, está vivendo um apagão de dados, seja porque a gente não consegue mais acessar algumas bases que já tinham sido produzidas antes, seja com o encerramento de produção de séries históricas, que são muito importantes para a gente compreender o avanço de algumas questões”, denuncia Viviana.

Segundo a pesquisadora do Relatório Luz, existe falta de transparência de dados no que diz respeito à vida das mulheres, o que, na avaliação dela, acaba se tornando mais uma violência de gênero: “invisibilizar é violentar”. Mesmo diante do contexto pandêmico em que as mulheres pretas experimentaram níveis mais elevados de violência, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos decide executar apenas 24,6% do orçamento das políticas de enfrentamento à violência, cujo valor disponível era de R$ 120,8 milhões. 

“É [preciso] pensar especificamente no caso das mulheres em programas socioassistenciais que, de fato, incorporam essa dimensão de gênero e raça e possam perceber as demandas das mulheres negras e promover o acesso dessas mulheres. Seja nos programas relacionados a emprego e renda, mas também em programas relacionados ao enfrentamento da violência”, avaliou Viviana.

Vivian Santiago é colunista da Revista AzMinas e consultora para questões de gênero e diversidade. Ela integra a equipe de 106 especialistas que trabalharam na construção do V Relatório Luz/Foto: Prefeitura de Piracicaba/Divulgação

A escalada dos retrocessos e a importância da representatividade 

Segundo o Relatório Luz, o país teve um ligeiro avanço na representatividade populacional em cargos públicos. O ano de 2020 registrou o maior número de pessoas trans eleitas e aumento de 42,83% da representação negra nos espaços legislativos. “O percentual de mulheres eleitas para os parlamentos nacionais e governos locais aumentou de 13,43% em 2016 para 15,8% em 2020, mas nesse ritmo a equiparação entre homens e mulheres em cargos eletivos no país levará décadas e até mesmo séculos para ser alcançada”, indica a pesquisa. 

Como a meta de número 16.7 é “garantir a tomada de decisão responsiva, inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis”, o resultado da eleição de 2020 ainda é considerada um retrocesso pelo Relatório Luz, uma vez que a participação de mulheres e pessoas não brancas nos cargos conquistados continua abaixo da composição populacional. 

Entre as mulheres negras eleitas em 2020 estão as vereadoras catarinenses Ana Lúcia Martins, em Joinville, e Marlina Oliveira Schiessl, em Brusque. Ambas do Partido dos Trabalhadores, enfrentam situações de hostilidade e exclusão no debate de algumas pautas. Articuladas, cada uma à sua maneira, inspiradas em Antonieta de Barros e Marielle Franco, continuam abrindo os caminhos, se fazendo presente na tribuna e colocando à mesa pautas que não costumavam fazer parte das discussões naquelas casas de poder.

“Estamos nesse espaço para dizer qual é a política que queremos. Que precisamos ter recorte racial e de gênero nas políticas de habitação, educação, assistência social, economia, distribuição de renda, transporte, cultura e lazer. Não dá para falar de habitação sem falar da população negra e sem falar das mulheres”, aponta Ana Lúcia.  

Ana Lúcia Martins é professora, militante dos direitos das mulheres negras, e a primeira mulher negra eleita na Câmara de Vereadores de Joinville/Foto: Mauro Artur Schilieck/Câmara de Vereadores de Joinville

Assim que foi eleita, Ana Lúcia, 54 anos, teve suas redes sociais invadidas e recebeu ameaças de morte. Uma das mensagens, encaminhada pelo Twitter, dizia que ela “deveria morrer” para que “um homem branco” pudesse assumir sua vaga. A vereadora registrou boletim de ocorrência e a Polícia Civil instaurou inquérito para investigar os crimes de ameaça, injúria racial e racismo. Um homem foi denunciado pelos crimes. A delegada Cláudia Cristiane Gonzaga precisou pedir apoio internacional ao Estados Unidos porque uma das contas de e-mail suspeitas, que também foi responsável por ataques a outros políticos, pertencia a um provedor na Suíça. A polícia depende desse apoio para dar continuidade às investigações. 

No dia 29 de junho, a vereadora Marlina, 37 anos, usou o seu espaço na tribuna para questionar qual era o tipo de “basta” que um colega vereador pretendia dar ao questionar seus posicionamentos nas redes sociais. A discussão ocorreu em torno de um pedido de informação que o mesmo vereador fez ao poder executivo municipal para saber a identidade de duas servidoras da saúde que se permitiram fotografar ao lado de um cidadão brusquense, que fez um manifesto contra o governo Bolsonaro, durante a vacinação da Covid-19. 

“Esses movimentos assim causam desgaste e tornam o processo mais cansativo. Então, quando eu olho para esse tipo de situação, eu consigo reconhecer o que ocorre e me defender, mas eu não passo ilesa”, desabafa Marlina.

A historiadora Valdecir Nascimento explica que na medida em que os movimentos sociais e a representatividade crescem, o autoritarismo tende a reagir tocando no ponto crucial das conquistas de direitos. “Eles sabem que nós queremos continuar vivas e aí o que eles fazem? Eles vão usar esses recursos [de ameaça] para dizer assim: olha, não ultrapasse”.

Valdecir entende que a representatividade precisa ser mais expressiva, com pluralidade dentro dos espaços de poder, para que as pautas que defendem os direitos da população negra avancem. “Uma pessoa não consegue atuar sozinha porque ela leva todo o seu tempo no desgaste que o racismo produz sobre a existência dela naquele lugar. É preciso várias pessoas, até para que ela tenha condições de, conjuntamente, pensar em estratégias. […] Porque desqualificar a Maju Coutinho [jornalista da TV Globo] é uma coisa, mas desqualificar cinco já dá mais trabalho”, ilustrou Valdecir.

No primeiro semestre de mandato, Marlina e Ana Lúcia têm traçado suas estratégias pensando na evolução das pautas que estão dispostas a defender ao longo dos quatro anos. 

Marlina Oliveira Schiessl é professora, doutoranda em Educação e a primeira mulher negra eleita na Câmara de Vereadores de Brusque. Foto: Aline Bortoluzzi/Câmara de Brusque

“Eu sou uma mulher negra forjada no coletivo, na discussão racial, então isso me coloca também num lugar de potência para conseguir ultrapassar e sobreviver e não querer sair correndo de lá. Existe um movimento muito bonito que acontece comigo. Não existe um dia sequer que eu não deite a minha cabeça no travesseiro e pense: como é importante estar neste lugar”, declarou Marlina, que já promoveu o 1º Fórum Brusquense da Mulher Negra, e nas palavras dela “preteou” a Câmara de Vereadores no município em que mais de 80% da população votou em Bolsonaro. 

Na Câmara de Joinville, Ana Lúcia conseguiu avançar com um projeto de lei que propõe erradicar a pobreza menstrual no município. “Nós vamos levar, pelo poder da caneta, essas pautas e temas que dizem respeito a nós”, defendeu a vereadora joinvilense.

As descobertas sobre as atuações de Antonieta de Barros durante sua trajetória dentro do magistério e da política, trazidas pela professora Jeruse Romão, no livro lançado recentemente, revelam os posicionamentos mais progressistas da deputada, inclusive de raça, até então pouco conhecidos. Para Jeruse, o que a manteve na política, em duas eleições (uma como titular e outra como suplente), e posteriormente em cargos de gerência dentro do partido, foi a convicção de que é possível transformar. “O legado que ela deixa para a gente é a luta. […] Espero que as mulheres não se enfraqueçam com essas notícias de ataques de violência que tentam nos intimidar”, almeja Jeruse.

*Esta matéria foi realizada em parceria com a organização ARTIGO 19.

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  • Schirlei Alves

    Repórter da Gênero e Número. Atua com jornalismo investigativo orientado por dados e sob a perspectiva dos direitos huma...

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