Todos os dias da semana por 14 anos, a doméstica Bety Santos saía da favela para pegar um ônibus lotado até o bairro nobre da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Mas a família a quem ela serve agora a causa pânico.

São os ricos – aqueles que podem pagar por uma viagem ou curso fora do país – que trouxeram o coronavírus para a América Latina. Mas são os pobres, ela acredita, que irão pagar por isso.

Sua patroa, uma médica de 71 anos, voltou de Paris recentemente com um resfriado. Embora ela tenha testado negativo para o coronavírus, Bety, que cozinha e faxina para a família, não pode demonstrar sua ansiedade – ou seu crescente incômodo. Os governos clamam por isolamento social. Dirigentes têm pedido para as pessoas de classe média e alta dispensarem suas empregadas com remuneração assegurada. Mas ela ainda continua trabalhando.

“Eles não podem sobreviver sem mim”, disse Bety, de 48 anos. “Eles dependem de mim pra tudo. ‘Perdi meus óculos: você sabe onde estão?’ ‘Ao lado da cama.’ ‘Onde tá o controle da TV?’ ‘Aqui.’ Eu tenho medo de pegar [da minha patroa], mas não é uma opção eu ficar desempregada agora. Eu sou uma trabalhadora.”

Ao passo que o coronavírus avança pela América Latina, analistas preveem que a desigualdade social de todos os dias acelere com a disseminação do Covid-19, a doença que o vírus causa. Importado dos ricos, o vírus está alcançando as comunidades mais carentes, ocasionalmente pelos trabalhadores domésticos, contaminando pessoas com menos recursos para combater a doença – e às vezes com resultados mortais. A primeira morte do Rio de Janeiro foi de uma doméstica que se acredita que tenha pegado de sua patroa.

“Você tem uma divisão clara de classe”, disse Joaze Bernardino-Costa, sociólogo da Universidade de Brasília. “Não foi uma doença que foi espalhada pelos pobres, mas agora está sendo espalhada entre toda a população.”

No México, um dos primeiros focos envolveu um grupo de pessoas voltando de viagem de Vail, Colorado, que culminou no que o governador do estado de Jalisco descreveu como “nosso principal front” no combate à doença. Na República Dominicana, um casamento de alta classe na cidade-resort de Cap Cana – no qual os convidados tiraram sarro da doença vestindo fantasias de enfermeiros – se tornou foco de contaminação.

No Brasil, com 10.278 casos confirmados (hoje), o maior da América Latina até agora, o vírus veio da Europa e agora se espalha mais amplamente na sociedade. Acredita-se que uma mulher de classe alta tenha contraído o vírus na Itália e transmitido para sua empregada de 63 anos, Cleonice Gonçalves. Cleonice morreu num pequeno hospital em sua cidade natal de Miguel Pereira, uma cidadezinha a duas horas de carro do bairro em que ela trabalhava. Sua família culpa a empregadora, que dizem ter omitido a informação sobre seu estado. 

“Ela morreu por causa da falta de empatia de sua patroa”, postou a cunhada Ana Maria Trotta Gonçalves no Facebook. “Essa atitude é imperdoável”. Não foi divulgado o nome da empregadora e tampouco ela falou publicamente sobre o caso.

Analistas dizem que a cultura dependente do emprego doméstico poderia se tornar um impedimento na contenção do vírus. Os pobres dependem dos ricos para terem uma renda. Os ricos dependem dos pobres para cozinhar e limpar a casa. Numa região onde 8% das mulheres são trabalhadoras domésticas – a taxa mais alta em países em desenvolvimento – ninguém sabe quanto tempo o distanciamento social e isolamento poderão durar. 

“Nós não sabemos como esse filme vai acabar”, disse Luis Alvarez, líder de um grupo cívico chamado “Hola Vecino” (Oi Vizinho) em San Pedro Garza Garcia, talvez a cidade mais rica do México. Muitos proprietários, ele disse, “são pessoas que não sabem cozinhar, limpar ou varrer a casa – ou não estão prontos para isso. Nesta cidade – aí!”

Dominicanos da classe alta começaram a trocar dicas sobre como seus trabalhadores domésticos devem manter a higiene em tempos de coronavírus. “Use guardanapos descartáveis cada vez que você espirrar ou tossir”, orientou a página do instagram “Casa al Dia” que dá dicas de organização a “assistentes domésticos”. “Não vá trabalhar caso tenha sintomas de febre”.

Algumas famílias mexicanas não estão nem se arriscando. Eles estão mandando os trabalhadores embora de forma a “mudar radicalmente a vida”, de acordo com a colunista mexicana Guadalupe Loaeza. Os ricos, ela disse, “não vão mais acordar com café da manhã pronto, sair do banho perfumados e tomar café da manhã na mesa.”

Um dia depois da morte de Cleonice Gonçalves, o Ministério Público do Trabalho recomendou que os profissionais fossem dispensados com remuneração assegurada com exceção dos que fossem “absolutamente indispensáveis”. Muitas famílias seguiram a orientação. Mas outras estão exigindo “fornecimento de serviços domésticos mesmo num período de isolamento social”, disse Adriane Reis, coordenadora nacional de Promoção da Igualdade e Eliminação da Discriminação no Trabalho (Coordigualdade) do MPT.

Jurema Brites, cientista social da Universidade Federal de Santa Maria, disse que o trabalho doméstico, enraizado na história de colonialismo e escravidão da América Latina, foi tão naturalizado que ficar sem ele é quase impossível de se imaginar.

“Para os ricos, esse tipo de trabalho é intolerável”, diz. “Não é digno. Não é algo que possa ser feito por eles.”

O vírus deixou os mais de 6 milhões de trabalhadores domésticos com uma escolha impossível de ser feita: seu trabalho ou sua saúde?

Para Josey Ana Paixão de Almeida, 59 anos, não há uma escolha. Ela mora na favela de Muzema no Rio de Janeiro, longe da casa onde ela presta serviço. Todos seus irmãos são trabalhadores domésticos, cada um sobrevivendo com menos de um salário mínimo por mês. Mas sua filha, que estuda economia numa universidade local, tem a chance de ser diferente, então Josey Ana continua trabalhando para pagar por sua educação. Ela tem esperanças de que tudo será melhor, enquanto se arrisca pelo pior.

“Eu tenho 59 anos e sou diabética”, disse ao telefone enquanto dava uma pausa entre as tarefas. “Estou com medo, mas o que posso fazer? Se eu estivesse em casa não estaria ganhando nada.”

Agora ela usa máscara e luvas no transporte público, mas ainda não encontrou coragem de perguntar à sua patroa,  uma mulher de 49 anos, para ser dispensada e ainda assim ser remunerada. Não enquanto a patroa ainda estiver trabalhando todos os dias também. Então, por enquanto, Josey Ana está focando em suas tarefas – buscar o café da manhã, depois almoço e jantar – e grata por não ter sido mandada embora sem receber pagamento.

Esse está sendo um soco no estômago para Edésia de Almeida Lage. Ela trabalhou por 27 anos para uma família no Rio. Ela criou as crianças, cozinhou, limpou o chão – dia após dia, por décadas. Essa era a vida dela.

Mas com a vinda do coronavírus, Edésia, de 58 anos e diabética, começou a se preocupar. Ela pediu à família que pagasse táxi de ida e volta, para evitar o tumulto dos ônibus, mas eles se recusaram. Então ao invés de se arriscar no transporte público, ela agora está em casa sem receber salário, somente com a ajuda do marido, um porteiro.

“Vinte e sete anos”, disse, ainda digerindo o que aconteceu recentemente. “E eles não tiveram um pingo de consideração comigo… eles simplesmente não se importaram se eu ia ficar bem ou não. Estou totalmente deprimida. Estou pensando que não vou mais trabalhar para eles.” Ela não quis identificar seus empregadores.

Faxineiras e empregadas trabalham por tanto tempo na casa de pessoas que seus relacionamentos se tornam mais íntimos e familiares – dinâmica que foi representada no filme mexicano ganhador do Oscar de 2018 “Roma”. Muitas vezes os ricos são os primeiros a chamarem os pobres quando precisam de ajuda. E agora, algumas domésticas, mesmo em meio à pandemia, se sentem obrigadas a continuarem trabalhando para essas famílias.

É assim que Jo Alvez se sente em relação à sua patroa, uma mulher lúcida de 80 anos que fica em casa o dia todo isolada. Os filhos dela estão se afastando com medo de passar o vírus a ela. Sua casa está vazia – com exceção de Jo Alvez.

“Eu não sei por quê ela não me deixou ir embora, mas ela estaria sozinha sem mim”, disse. “Talvez ela tenha medo de ficar sozinha.”

Bety Santos também continua servindo a família de sua patroa – está com medo, irritada e, ainda assim, se sente responsável. 

“Ela é como minha família”, disse. “Eu tenho uma obrigação com eles.”

Ela pausou.

“Preferiria estar na minha casa.”

*A reportagem O Coronavírus colide com a cultura de trabalhadoras domésticas da América Latina – e às vezes com resultados mortais” foi publicada originalmente em 29 de março no periódico The Washington Post.

**Nota da edição: atualizamos o número de pessoas infectados no dia desta publicação.

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