A pandemia de coronavírus tem afetado as mulheres no Brasil de forma diferenciada, em especial as negras e pobres, pela sobrecarga das tarefas domésticas, pelo aumento da violência de gênero em meio ao isolamento social, e ainda pelo fato de o Brasil ter alcançado uma posição vergonhosa no mundo, com 77% por cento das mortes maternas por Covid no mundo.[1]

De forma geral, segundo o IPEA, os números de crimes de estupro vêm crescendo no Brasil, tendo atingido seu ápice em 2018, quando mais de 66 mil casos foram notificados às autoridades policiais, sendo a maior parte das vítimas do sexo feminino (82%) e vulneráveis, ou seja, menor de 14 anos (53% tinham no máximo 13 anos), ou pela lei consideradas juridicamente incapazes de consentir (11%)[2]. Na maior parte dos casos (76%)[3], havia vínculos com o agressor que era conhecido da vítima, sendo recorrente a baixa notificação desse crime pelas vítimas (apenas 7,5% notificam), sendo apontados como principais motivos o medo da retaliação por parte do agressor, o descrédito nas instituições de justiça e segurança pública, a vergonha e mesmo o sentimento de culpa[4].

Já na pandemia, em pesquisa que comparou dados de 2019-2020, verificou-se a redução total dos registros de violência contra mulheres em 39,3% em abril de 2020 (sendo de 28,2% nos casos de estupro e estupro de vulnerável), ou seja, verifica-se que as vítimas sequer estão conseguindo chegar à polícia para denunciar. Por outro lado, constatou-se um aumento do número de ligações registradas para o Ligue 180 de 37,6%, e no 190 (de 44%), o que comprova o aumento da violência contra a mulher desde o início da pandemia. Possivelmente dados posteriores irão mostrar um aumento ainda superior.

Nesse contexto dramático, em 15 de agosto de 2020, foi noticiada a violência por uma menina de 10 anos de São Matheus-ES, estuprada por seu tio desde os 6 anos, que, grávida, teve negado seu direito ao aborto legal em Hospital em Vitória-ES, mas felizmente conseguiu uma ordem judicial e conseguiu realizar o procedimento na cidade de Recife, após ter sua identidade divulgada e ser chamada de assassina na porta da instituição por fanáticos que lá se aglomeravam. Destaque-se que, por ser a vítima menor de 14 anos, o crime em tela é o de estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal), ou seja, lhe é garantido o aborto legal na forma do artigo 128, II, do mesmo diploma legal, que tem por objetivo impedir a maternidade compulsória de uma criança estuprada.

Em que pese ser um direito, verifica-se a escassez de oferta de serviços de abortamento legal no SUS no Brasil, conforme estudo publicado em 2016[5], que alertou para a necessidade de ampliação e aperfeiçoamento do atendimento à mulher vítima de violência, diante de tantos obstáculos criados, inclusive pela exigência de documentos desnecessários, como o registro de ocorrência, que jamais poderiam obstar e atrasar o cuidado em saúde. Tal situação foi ainda agravada com a pandemia, quando boa parte das instituições parou de oferecer o serviço de abortamento legal[6], justo quando houve ampliação de casos de violência contra a mulher em decorrência do isolamento social decorrente da epidemia do coronavírus.

O fato é que, alguns dias depois do caso da menina que comoveu o país, se teve notícia de mais uma violência de estado contra as mulheres, com a edição da Portaria n. 2282[7] do Ministro interino da Saúde, que trouxe novas disposições sobre o procedimento de interrupção de gravidez em casos de estupro no âmbito do SUS, e que, se for cumprida, inviabilizará o acesso a serviços, cuidado e acolhimento a meninas e mulheres vítimas de estupro. Se a negação ao aborto seguro para todas as mulheres em si já constitui violência de gênero, que dirá a negação do aborto legal em casos de estupro.

O mapeamento das origens da portaria nos remete a ameaças concretas de grupos fundamentalistas e misóginos do governo Bolsonaro, atualmente estruturados sob o ministério que deveria justamente proteger as mulheres, comandado por Damares. Esses integrantes e apoiadores do governo de forma estreita com grupos de lobby extremistas divulgaram os dados da vítima e constrangeram a família e a criança.

Tal portaria viola vários dispositivos constitucionais ao criar condições que inviabilizam o acesso ao aborto legal, previsto no Código Penal desde 1940. O texto traz pequenas (mas contundentes) alterações à portaria anterior, determinando a violação (ilegal) de sigilos profissionais. Além disso, cria burocracias para dificultar ao máximo o acesso a esse direito e indica a exibição da ultrassonografia à mulher ou menina visando dissuadi-la a não abortar, ou seja, impondo sofrimento emocional equiparado à tortura a uma mulher ou menina violentada.

Pois bem, nosso foco aqui está no artigo 1o. da portaria[8] que torna obrigatória a notificação à autoridade policial pelos profissionais de saúde em casos em que houver “indícios ou confirmação do crime de estupro”. Tal exigência viola o direito fundamental à intimidade e à privacidade (artigo 5º, X, da Constituição Federal) e o sigilo profissional inscrito nos Códigos de Ética Médica[9]. Tal inovação no texto pode, inclusive, vir a afastar a mulher ou menina que tiver medo de denunciar seu agressor do acesso ao abortamento legal, causando agravamento de suas condições psíquicas e emocionais, impondo a ela uma nova violência, desta vez promovida pelo Estado.

Nesse ponto, a portaria, ao fazer menção à Lei n. 13.718/18, que tornou o estupro crime de ação penal pública incondicionada, não mais dependendo de representação da vítima, pretendeu criar uma exceção ao sigilo profissional não prevista em lei, ferindo a autonomia da mulher ao impor a notificação à polícia como requisito abusivo para um atendimento médico, o que não se sustenta. Destaque-se que o médico legalmente sequer pode figurar como testemunha, por conta da proteção ao sigilo profissional (artigo 207 do Código de Processo Penal)[10], portanto, com mais razão está impedido de denunciar a vítima.

Ora, ninguém é obrigado a denunciar crime do qual foi vítima. E a alteração da titularidade da ação penal em nada altera isso, pois não há justa causa para suspender o sigilo profissional que exponha a intimidade de uma vítima que relata em confiança a violência que sofreu para um profissional de saúde.

Aliás, como vimos, um dos motivos pelos quais as vítimas não denunciam crimes sexuais é justamente o medo de retaliação ou represálias.

Qual será o efeito na vida de meninas e mulheres se o Estado que não as protegeu nem impediu que fossem vítimas de violência duvida de suas palavras e chancela a exposição da agressão íntima que sofreu como condição para a vítima poder exercer seu direito ao aborto legal?

Os profissionais de saúde passarão a exercer a função de polícia, denunciando vítimas que recusarem-se a denunciar para não expor questões íntimas e ainda passarão a atuar como peritos forenses ao invés de serem profissionais do cuidado?

Por entender que há graves violações a preceitos constitucionais pela portaria é que foi protocolada uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF n. 737[11] por cinco partidos políticos no Supremo Tribunal Federal (STF). A ação aponta para a evidente violação aos preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana (art. 1o., III), da separação de poderes (art. 2º, caput), da legalidade (art. 5º, II) e do devido processo legislativo (art. 5º, LIV), do direito social à saúde (art. 6º, caput), o qual também figura constitucionalmente como um dever do Estado (art. 196, caput), da garantia à vedação à tortura e ao tratamento desumano ou degradante (art. 5º, caput, I e III), além da intimidade e privacidade já citados.

O fato é que o artigo 128, II, do Código Penal, que prevê a exclusão da tipicidade nos casos de gravidez resultante de estupro, é uma norma que amplia o campo da licitude ao autorizar o aborto nessas condições, o qual não pode ser obstado por uma portaria ministerial de menor hierarquia.

Assim sendo, a Portaria 2282 em questão, ao estabelecer condições impeditivas ao exercício do direito ao aborto legal e orientar profissionais da saúde a violarem o sigilo profissional e denunciarem vítimas, expondo sua intimidade e privacidade, viola a Constituição e não tem como ser mantida em nosso ordenamento, devendo ser declarada nula.

A violação aos direitos das meninas e mulheres é tão gritante que os profissionais de saúde devem se recusar a cumpri-la, por se tratar de dispositivo manifestamente inconstitucional, além de violar os preceitos éticos das profissões.

[1] Segundo Takemoto MLS, Menezes MD, Andreucci CB, Nakamura-Pereira M, Amorim MMR, Katz L, Knobel R. The tragedy of COVID-19 in Brazil. International Journal of Gynecology Obstetrics, July, 2020. Os autores utilizaram os dados do SIVEP-Gripe e relataram a ocorrência de 124 óbitos maternos no Brasil entre janeiro e 18 de junho de 2020. Esse alto número de mortes, aponta o estudo, foram possivelmente agravadas pela demora na assistência a elas, visto que 22% dos casos fatais não foram internados em UTI e 14% não receberam nenhum suporte ventilatório.

[2] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Violência contra Meninas e Mulheres durante a pandemia de COVID-19, p. 08. Disponível aqui. Acesso em 07 Set 2020.

[3] Idem.

[4] Pesquisa Nacional de Vitimização. Secretaria Nacional de Segurança Pública/Ministério da Justiça, 2013.

[5] MADEIRO, Alberto Pereira; DINIZ, Debora. Serviços de aborto legal no Brasil – um estudo nacional. Ciênc. Saúde Coletiva,  Rio de Janeiro ,  v. 21, n. 2, p. 563-572,  Feb.  2016 .   Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232016000200563&lng=en&nrm=iso>. access on  07  Sept.  2020.  http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015212.10352015. Acesso em 07 set 2020.

[6] https://www.cartacapital.com.br/sociedade/so-55-dos-hospitais-que-oferecem-servico-de-aborto-legal-no-brasil-atendem-na-pandemia/, com base em pesquisa da Artigo 19: https://mapaabortolegal.org

[7] A Portaria nº 2.282, de 27 de agosto de 2020 revogou os artigos 694 a 700 da Portaria nº 5, de 28 de setembro de 2017, instituiu novas obrigações e modificou a redação do Anexo.

[8] Art. 1º É obrigatória a notificação à autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro. (grifo nosso). Vide a íntegra em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.282-de-27-de-agosto-de-2020-274644814

[9] Vide o Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.931/09): Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto (…); Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. Parágrafo único. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha (nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento); c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal. Acesso aqui. As mesmas diretrizes são reproduzidas no Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem que, em seus arts. 81 e 82.

[10] CPP, Art. 207. “São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.”

[11] Acompanhe o andamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 737 no STF nesse link.

*Luciana Boiteux é advogada feminista e uma das signatárias da ADPF 737, professora licenciada de Direito Penal da UFRJ.

Luciana Boiteux

Vereadora da cidade do Rio de Janeiro pelo PSOL, advogada, professora universitária, pesquisadora, feminista, militante dos direitos humanos. Tem longa caminhada ao lado dos movimentos feministas e antiproibicionistas, atuando na promoção e defesa dos direitos das mulheres, na democratização da justiça, pela cultura, saúde e educação.

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