Os feminismos favelados inscritos nos corpos das mulheres da Maré
Livro de estreia de Andreza Jorge articula diálogos entre a universidade e a favela
Andreza Jorge cresceu em Nova Holanda, dentro do maior e mais populoso conjunto de favelas do Rio de Janeiro: o Complexo da Maré. De acordo com o Censo Maré, o território é habitado por cerca de 140 mil pessoas, sendo que 51% delas são mulheres – e há 15 anos, Andreza as convida a dançar.
Em entrevista ao Catarinas, ela conta que se formou em Dança pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e quis compartilhar seu conhecimento com a vizinhança, fazendo o que chama de artivismo. Desde 2016, ela lidera o grupo de dança Mulheres ao Vento, que também se tornou seu objeto de pesquisa acadêmica. Em sua dissertação de mestrado, concluída em 2019, a autora analisa as escrevivências corporais do coletivo e inaugura o conceito de feminismos favelados.
Agora, sua pesquisa virou livro. “Feminismos Favelados: uma experiência no Complexo da Maré”, publicado em 2023 pela editora Bazar do Tempo, questiona o feminismo que se pretende universal e discute gênero, raça, classe e território, tecendo um diálogo poderoso entre a universidade e a favela. Confira a entrevista.
Você acaba de lançar o seu primeiro livro, intitulado “Feminismos Favelados: uma experiência no Complexo da Maré”, pela editora Bazar do Tempo. Conta pra gente o que esse marco significa pra você?
Eu considero uma conquista que vem através de muitas vidas. Coincidentemente, o lançamento virtual do meu livro foi no mesmo dia do lançamento do livro da nossa Doutora Sueli Carneiro, que teve, depois de quase vinte anos, sua brilhante tese de doutoramento em filosofia publicada, em 2023. Acredito que estamos vivendo um momento diferente para mulheres negras, indígenas, periféricas, de acesso ao mercado editorial e alguns outros espaços, embora ainda insuficiente.
Reconheço que a chance de publicar um livro baseado na minha dissertação de mestrado, com apenas 35 anos de idade, é fruto justamente do trabalho de mulheres como Sueli Carneiro, que pavimentaram este caminho e ainda lutam bravamente por esses espaços para todas nós.
Significa muito ter a chance de ser alguém que escreve uma experiência coletiva de tantas outras mulheres que ainda não tiveram essa chance, ao mesmo tempo que é uma responsabilidade que fico muito honrada em cumprir.
Como é, na sua experiência, transitar entre a favela e a academia?
Durante um tempo a academia era algo distante, embora geograficamente muito perto, tendo em vista que o Complexo da Maré é muito perto do Campus Fundão da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Cresci brincando naquela área, que considerávamos como uma área de lazer para os finais de semana. Fiz parte de um programa da Secretaria de Educação do Rio de Janeiro chamado Clube Escolar, que permitia fazermos cursos livres no contraturno da escola pública, nas instalações da UFRJ-Fundão. Fiz curso de dança quando tinha 11, 12 anos de idade no mesmo prédio que em 2011 eu voltei para fazer a graduação em Dança. Mesmo tendo tido essa experiência quando criança, eu não sabia realmente o que significava “fazer faculdade” ou como acessar esse espaço, sendo da primeira geração de universitários na família.
Foram justamente essas iniciativas de ações afirmativas e ações de organizações da sociedade civil na favela que deram a oportunidade para compreender esse espaço como um lugar possível. Ainda assim, ao decidir me manter nesse espaço e seguir uma carreira acadêmica, muitos desafios foram enfrentados em relação à permanência e todo estigma que tenta colocar pessoas de favela em lugares estáticos e pejorativos.
As minhas experiências de vida na favela, de meus familiares e de pessoas que vivem e constroem esse território, sobretudo as mulheres, são epistemologias fundamentais para compor o arcabouço teórico no campo das humanidades. Sem que haja uma universalização e/ou hierarquização do saber. Na minha vida acadêmica, todos esses referenciais são colocados em conversa. Juntos e com um adendo crucial à intelectualidade orgânica que é a escrevivência corporal favelada e suas reverberações.
No livro, você defende um outro sentido para o termo “favelada”, subvertendo as leituras pejorativas que mais comumente são feitas. Pode dividir a sua perspectiva conosco?
Sim, claro. As palavras são construídas e atreladas aos seus significados a partir das lógicas de poder que têm a capacidade de disseminar esses significados com propósitos de manter o status quo de opressão. Favelada durante muito tempo foi utilizada com a intenção de estigmatizar, oprimir e configurar a experiência de mulheres moradoras de favelas a um imaginário preconceituoso e excludente. A partir dessa premissa muitas pessoas precisavam mentir seus endereços e suas origens para conseguir um emprego, por exemplo, ou para se proteger de ofensas.
Mas eu acredito que temos o poder de ressignificar essas palavras e empregá-las da forma que seu significado possa produzir inclusive um desconforto em quem ainda carrega essas opiniões classistas, racistas, sexistas…
Leia mais
- “O feminismo é anticapitalista e busca a libertação de todas as pessoas”, afirma Amina Mama
- Antifeminismo culpabiliza mulheres pela violência e recompensa parlamentares da extrema direita
- Ato do 8M em Florianópolis homenageia luta trans, Palestina e relembra feminicídios
- 8M: Milhares vão marchar em todas as regiões do Brasil no Dia Internacional das Mulheres
- Duas décadas de Visibilidade Trans: resistindo ao autoritarismo Legislativo e à negligência do Estado
Favelada passa a ser uma palavra de afirmação agenciada e para nomear a existência plural de mulheres nas favelas do Rio de Janeiro e do Brasil. Espero que com o tempo esse significado seja cada vez mais difundido. Mas sei que é um desafio, devido aos anos de uso pejorativo.
O que os feminismos favelados propõem? E o que você acredita que as demais correntes do feminismo têm a aprender com as mulheres do Complexo da Maré?
Eu refleti muito sobre o fato de forjar mais uma especificidade na luta feminista, e a todo momento era provocada pelo possibilidade de estar “dividindo” a luta. Embora essa seja uma linha forte de pensamento para algumas mulheres que não compreendem a necessidade de especificar a luta, foi justamente esse ponto que me motivou a desenvolver esse conceito.
A partir da premissa de que se há opressões específicas, também há soluções/respostas/enfrentamentos específicos, e por parte dessas mulheres que muitas vezes estão na invisibilidade de suas práticas, sendo em muitos momentos excluídas dos espaços que reconhecem as lideranças na luta pelas mulheres.
Quando a gente cria especificidade, não estamos dividindo, estamos ampliando e é preciso nomear, publicizar, publicar, escrever, registrar essas insurgências que existem desde que a primeira favela foi criada e principalmente reconhecer de onde essas resistências partem, de quais referenciais culturais e existenciais elas emergem. Quem são essas mulheres que estão nas favelas? Então, o livro tem esse desejo de nomear algo que existe, que me formou e me constitui como mulher no mundo.
Você mobiliza o conceito de “escrevivência corporal” para tratar da sua experiência impulsionando coletivos de dança. De que maneira dança e feminismo se interseccionam dentro do território que você habita?
A dança é a minha linguagem no mundo, o corpo é a materialização de meus processos reflexivos, e para muitas culturas que fazem parte da minha ancestralidade também. Fomos criados sob a lógica de pensamento intelectual que se distancia das práticas corporais, subjetivas, artísticas. A arte e sua expressão através da subjetividade traduzida de forma criativa é a constatação de nossa humanidade, a despeito dos processos de desumanização que sofremos constantemente. Por isso vejo nossa expressão artística e por isso subjetiva como direito humano fundamental, porque é exatamente o que nunca foi possível de ser tirado. Cada movimento, cada som, cada gesto, cada forma de cuidar e se relacionar com as pessoas e a natureza estão carregadas desses significados passados corporalmente de geração a geração. A escrevivência corporal é essa redundância quando encontra com elementos técnicos da prática da dança nesse território e revela o conhecimento sobre ser mulher, sobre o território, sobre a história do Brasil, do Rio, da Maré através desses movimentos. E assim foi com o projeto de dança Mulheres ao Vento, que construí em 2016 junto com Simonne Alves, uma companheira de faculdade e também favelada do morro São José em Madureira. A partir de nossos processos criativos e coletivos esse conceito foi sendo forjado.
Um trecho que me impactou muito foi aquele em que você diz que “assumir uma identidade racial é também uma questão de autoconfiança”. Pode contar às nossas leitoras por que você faz essa afirmação e por que se identifica como uma mulher afro-indígena?
O contexto dessa frase é um processo específico sobre mim que faz sentido no meu processo identitário, que obviamente passa por um posicionamento ético, comprometido e com reflexão sobre as assimetrias sociais baseadas nos fenótipos raciais. Em minhas reflexões não afirmo que a autoconfiança é suficiente para criar um marcador identitário que não seja reconhecido socialmente, todas as identidades são construídas em processos coletivos e históricos. Não é e nem será uma autoafirmação que tornará o indivíduo reconhecido em alguma categoria identitária se esse indivíduo não tiver os símbolos visíveis que o conectem com essa identidade.
A raça fala antes de abrir a boca. É importante ter em vista que afirmação identitária é um processo ético, de respeito e compromisso com a diminuição das desigualdades através de reparação e de compreensão histórica situada e contextualizada.
Em meu caso, essa autoconfiança se deu ao trazer o conhecimento da minha história familiar, principalmente como herdeira da ancestralidade indígena Puri, em poder falar sobre isso e explicitar meu desejo em conhecer e reconhecer esse espaço brutalmente negado ao longo dos anos. Então minha afirmação, para além dos marcadores visíveis, está baseada no meu histórico familiar, mas ainda assim continuo a dizer que nossa afirmação precisa ser compreendida de forma ética e contextual.
O que você sonha para o movimento feminista brasileiro nos próximos anos?
Eu penso na possibilidade da pluralidade que não hierarquiza. Eu sonho com um movimento em que as mulheres se sintam incluídas e tenham suas agendas contempladas de forma equitativa, o que provoca inclusive a necessidade de algumas mulheres recuarem e cederem espaço de protagonismo e visibilidade ao se propor construir um projeto de vida e futuro possível para todas as mulheres.