Em uma década, Santa Catarina viu 4463 crianças e adolescentes de até 14 anos darem à luz, mas realizou apenas 29 abortos legais em pacientes da mesma faixa etária. Os números registrados entre 2011 e 2020 compõem a base de dados do DataSUS e evidenciam a violência sistêmica a que são submetidas as vítimas de estupro de vulnerável em um dos estados mais conservadores do país.

O Código Penal não deixa margem para dúvidas: qualquer prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menores de 14 anos é crime. Logo, crianças e adolescentes dessa faixa etária só engravidam quando são vítimas de estupro de vulnerável. Já o aborto é legalizado no país em casos de anencefalia fetal, risco à vida da gestante e/ou estupro.

O problema é que, sozinha, a previsão legal não dá conta de efetivar o direito. Na prática, profissionais de saúde e pacientes precisam ter acesso à informação e ultrapassar a barreira do moralismo. Isso significa que ao procurar um serviço de saúde, a família deve receber um atendimento humanizado e ser comunicada de seu direito ao aborto legal e gratuito, um procedimento que, de acordo com o médico obstetra Olímpio Moraes, é mais seguro do que o parto, pois o corpo da criança ainda está em crescimento e formação.

Vencidas as primeiras limitações, um desafio ainda maior se apresenta: a disponibilidade de hospitais dispostos a levar a cabo uma interrupção de gestação. O site da Secretaria de Estado da Saúde anuncia seis serviços de referência em Santa Catarina, que teriam a missão de atender 295 municípios. No entanto, apenas quatro efetivamente o fazem. São eles: Hospital Universitário de Florianópolis (HU); Hospital Regional de São José; Maternidade Darcy Vargas, de Joinville; e Hospital Santo Antônio, de Blumenau. 

Os outros dois mencionados pelo órgão são o Hospital Unimed Chapecó e o Hospital Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, de Gaspar. Ambos, de acordo com Jane Laner Cardoso, médica pediatra e diretora da Atenção Primária à Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina, não fazem abortos. “O da Unimed estava lá [no documento], mas me parece que nunca foi pactuado. A gente está, agora, reformulando a linha de cuidado e atualizando esses serviços, e o da Unimed teve a intenção, mas nunca foi cadastrado”, ela comenta, contradizendo as informações disponibilizadas pela Secretaria em seu site oficial.

Ao Catarinas, ambas as instituições reconheceram que, via de regra, não fazem interrupções de gravidez. O Hospital de Gaspar assegurou que já solicitou o descredenciamento ao Ministério da Saúde e disse não ter “razões específicas” para não prestar o serviço. “É mais questão técnica mesmo, uma vez que há hospitais referências na região”, informou a assessoria. 

O Hospital da Unimed afirmou que também já solicitou o descredenciamento e faz o aborto somente com apresentação de mandado judicial, ou seja, quando é obrigado pela justiça. Em seguida, a instituição recuou dizendo que não gostaria de se posicionar, mas decidimos publicar a resposta por entender que se trata de um serviço público e, portanto, a informação deve estar disponível à população.

Com todas as unidades de referência concentradas na mesma faixa do estado, a doutora em saúde coletiva Marina Jacobs, cujo foco de pesquisa é a oferta do aborto legal no estado e no país, estima que se possa ter que enfrentar até nove horas de viagem de automóvel para encontrar atendimento em Santa Catarina.

Por que tão pouco?

Para que seja credenciado como referência para o aborto legal junto ao Ministério da Saúde, o hospital precisa demonstrar que tem uma equipe mínima e multifuncional disposta a fazer abortos. Ela é composta por um obstetra, um anestesista, uma enfermeira, uma assistente social e um psicólogo. “Tendo a equipe, o serviço é habilitado”, garante Jane. “A maior dificuldade é encontrar profissionais que não manifestem objeção de consciência”. 

No Brasil, o Conselho Federal de Medicina prevê, no artigo 28 do Código de Ética Médica, que é direito do profissional “recusar a realização de atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência”. A diretora da Atenção Primária à Saúde aponta essa como a maior dificuldade enfrentada pela Secretaria para ampliar a oferta do serviço no estado.

Silvana Maria Pereira trabalhou como enfermeira no Hospital Universitário entre 1985 e 2018 e observou esse cenário de perto. “No HU, como em qualquer instituição de saúde, havia resistências e objeções de consciência”, relembra.

“Estudos indicam que entre os profissionais da saúde que atendem casos de estupro, muitas vezes há um questionamento acerca da palavra das mulheres. E esse sempre foi o nosso grande desafio no diálogo com os profissionais do HU, porque eles se sentiam frágeis como se estivessem fazendo um procedimento ilegal, alegando que caso o estupro não tivesse ocorrido, estariam cometendo um crime. Quando a gente trabalhava esse tema nas capacitações, precisava demarcar que ao profissional de saúde não cabe o julgamento. Cabe a nós acolher e cuidar.”

Outra queixa comum tinha a ver com o encaminhamento de casos de todo o estado para o hospital. “Eu me recordo de, nas capacitações, colegas comentarem que vinha muita gente do interior. Eles perguntavam: por que elas vêm pra cá se tem um serviço lá, se tem uma maternidade, se tem profissionais capacitados para fazer isso?”, resgata a enfermeira.

O Catarinas solicitou entrevista ao Hospital Universitário e recebeu uma negativa. Segundo a assessoria, os profissionais não tinham agenda. No entanto, os números mostram o panorama traçado por Silvana e corroborado por outras fontes ouvidas pela reportagem ao longo da apuração.

Entre janeiro de 2018 e junho de 2021, foi o Hospital Universitário que mais fez abortos no estado. Foram 128 procedimentos realizados pelo hospital, número que representa 41,3% dos 310 registrados no período. Das pacientes do HU, 72 residiam em Florianópolis, as demais vieram de ao menos outros 24 municípios, inclusive alguns longínquos como Chapecó e São Carlos. Há registro de pelo menos quatro mulheres que encararam quase 600 km de viagem para fazer valer seu direito. 

Mesmo os municípios que têm hospitais à disposição, como São José, Blumenau e Joinville, enviaram pelo menos 13 pacientes para o HU durante o período analisado. Jane explica que um dos motivos para isso acontecer pode ser a objeção de consciência do profissional de plantão no serviço próximo da residência da paciente. Se o médico objetar, existe sempre a possibilidade de transferência, a menos que o caso seja grave e nenhum outro profissional esteja à disposição para atendê-lo. Em casos-limite, mesmo objetando, ele terá que fazer a interrupção da gravidez.

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Gráfico: Daniela Valenga.

Ministério Público e Defensoria Pública entram em ação

Em novembro de 2011, o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) inaugurou um grupo de trabalho para diagnosticar a oferta do aborto legal na região e mapear possíveis soluções. “O grupo foi motivado por informações colhidas de procedimentos que tramitam ou tramitaram em promotorias de justiça no estado de Santa Catarina, bem como em reuniões previamente realizadas com segmentos representativos da sociedade civil e de instituições públicas, com base nos quais foram identificados preliminarmente diversos problemas, principalmente na organização da rede, dos fluxos e na carência de informações sobre os locais onde os procedimentos são prestados”, explica o promotor Douglas Roberto Martins.

Além do MPSC, integram o grupo órgãos do estado como a Defensoria Pública, a Secretaria de Saúde, a Polícia Civil, o Tribunal de Justiça, a Polícia Científica e o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher. O Ministério Público Federal, a Associação Juízes para a Democracia, o HU e os hospitais de referência de Joinville e Blumenau também participam. O diagnóstico ainda está em fase de produção e sistematização e por isso os dados não foram disponibilizados à reportagem. 

“A gente observa que a grande maioria das mulheres não sabe que tem esse direito ou é desestimulada pelo serviço de saúde, recebendo informações desencontradas ou tendo que custear uma viagem até Florianópolis”, diz a defensora Anne Auras, que representa a Defensoria Pública de Santa Catarina no grupo.

“Para nós, o que mais chega são mulheres que buscam o direito e nos serviços é dito que é preciso apresentar a decisão judicial, e aí oficiamos o hospital ou entramos na justiça.”

Ao mergulhar no tema, a defensora percebeu que é a estigmatização que causa tantas limitações. “Tem sido difícil pro HU assumir sozinho essa coisa de ser conhecido como a equipe que faz o aborto em Santa Catarina – e outras equipes não querem ocupar esse lugar. A gente vê o estigma muito presente, e isso cria uma violação sistemática dos direitos das mulheres”, avalia.

Em seus anos de HU, essa foi outra queixa frequente ouvida por Silvana. “Os profissionais perguntavam: por que só nós? Se é uma política pública, se é legal, se tem protocolos a respeito, por que outras instituições não ofertam o serviço? Por que não há cobrança? Por que essa cobrança vem sempre para o HU e a Secretaria de Estado de Saúde, por exemplo, não cobra que as maternidades também realizem esse protocolo?”, resgata a enfermeira. 

Jane assegura que a Secretaria está fazendo um esforço de regulação do serviço para que as usuárias não precisem mais “perambular” pelo estado em busca de atendimento, nem recorrer somente ao HU. O órgão quer que a paciente seja transferida de acordo com a disponibilidade de cada unidade, com data e horário para o procedimento agendados e viagem custeada pelo Estado.

“A ideia é que o Hospital Regional atenda somente São José e região sul; o HU fique com a Grande Florianópolis, com exceção de São José, além do oeste, enquanto vemos um hospital de referência para o oeste também; Blumenau cobriria o Vale do Itajaí e Joinville daria conta do planalto norte e nordeste”, planeja.

A servidora também afirma que as maternidades estão de portas abertas para urgências e todos os serviços vinculados à Secretaria de Estado da Saúde devem seguir os protocolos do Ministério da Saúde, oferecendo um atendimento humanizado.

“Os profissionais têm que acolher a mulher, depois é feita uma entrevista e ela assina um termo – ou, no caso da menor de idade, quem assina é o representante legal. Porém, se houver divergência de opiniões entre a paciente e a família, pode ser chamada a autoridade legal para que se chegue num consenso.”

Quanto ao limite de idade gestacional para a realização da interrupção legal da gravidez, a Secretaria entende que não há restrição. “O aborto remete a uma fase de crescimento do feto. Então, até 20 ou 22 semanas, quando o feto pesa até 500 gramas, a gente pressupõe que seja um aborto. Acima dessa idade gestacional ele já não é mais feto, é um natimorto, mas a lei diz que se pode fazer a interrupção em qualquer período da gestação. Quanto mais cedo ela for realizada, melhor do ponto de vista médico, para garantir a segurança da paciente.”

A profissional também ressalta que a vítima de violência sexual não precisa apresentar BO nem decisão judicial ao hospital, e a notificação às autoridades policiais é um direito da paciente, e não um dever do serviço de saúde. “O que a experiência mostra é que as mulheres que procuram fazer o aborto após um estupro são vítimas de violência sexual mesmo, então elas não têm que comprovar isso.”

O padrão brasileiro

O cenário brasileiro é bastante similar ao de Santa Catarina. Entre 2011 e 2020, 16.997 pessoas fizeram a interrupção legal da gestação no país, sendo que 587 delas tinham até 14 anos. Enquanto isso, 243.328 crianças e adolescentes da mesma faixa etária deram à luz. 

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Gráfico: Daniela Valenga.

A escassez de serviços disponíveis é outro problema compartilhado: existem 119 hospitais cadastrados como referências para o aborto legal em todo o Brasil, e além de serem poucos, eles estão localizados principalmente nas regiões mais ricas. 

O achado faz parte da pesquisa de doutorado de Marina Jacobs, que ao analisar a oferta do serviço de interrupção legal da gravidez no país, percebeu que os hospitais credenciados estão majoritariamente concentrados em municípios da região sudeste que têm mais de 100 mil habitantes e IDH alto ou muito alto. 

“Em 2019, a taxa de realização do aborto entre as residentes dos municípios que têm a oferta do serviço foi 4,8 vezes maior”, aponta a pesquisadora. Não à toa, entre 2011 e 2020, período analisado pela reportagem, 8.220 dos abortos legais registrados no Brasil foram realizados na região sudeste, ou seja, 48% do total.

Marina ainda menciona outro dado relevante: em 2019, 251 estabelecimentos haviam feito o procedimento no Brasil, e 75% deles não estavam cadastrados como serviços de referência. Enquanto isso, apenas 60% dos 101 hospitais credenciados junto ao Ministério da Saúde naquela época fizeram abortos legais.

“São números importantes para pensarmos o acesso à informação”, indica a especialista.

“Quando a pessoa procura pelo serviço, se ela consegue procurar e quando existe alguma informação disponível, ela encontra apenas os hospitais de referência. Os profissionais da rede também saberão, no máximo, sobre os serviços de referência. Então, não tornar pública a informação de quais são os serviços que fazem o procedimento, ainda que não sejam referências, dificulta o acesso e o encaminhamento”, explica.

A pesquisadora levanta a hipótese de que o estigma esteja relacionado à grande quantidade de hospitais que não estão credenciados mas fazem abortos. “É possível que, mesmo fazendo o procedimento, o estabelecimento não queira ser reconhecido como referência”, observa.

Para mudar esse cenário, é preciso sensibilizar a sociedade para a garantia do direito à saúde de meninas, mulheres e outras pessoas que gestam. “Existe uma idealização de que nós, profissionais de saúde, somos formados para salvar vidas – e de fato salvamos muitas vezes, mas a verdade é que a nossa grande missão é cuidar da vida do nascimento até o leito de morte”, conclui Silvana.

*A análise dos dados que subsidiam esta reportagem foi realizada dentro do Programa de Jornalismo de Dados de Segurança Pública, em parceria com o Instituto Sou da Paz.

Essa reportagem faz parte das estratégias de comunicação desenvolvidas conjuntamente entre Portal Catarinas, Grupo Curumim, Anis Instituto de Bioética, Campanha Nem Presa Nem Morta, Rede Feminista de Saúde, Cépia Cidadania e Coletivo Margarida Alves.

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  • Jess Carvalho

    Jess Carvalho é jornalista e pesquisadora da bissexualidade. Atua como editora, repórter e colunista no Portal Catarinas...

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