Vanessa da Rosa tem uma carreira de mais de 30 anos como professora no município de Joinville e fez história, em 19 de novembro, ao assumir sua posição como segunda mulher negra a ocupar uma cadeira na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc).

Com uma “missão linda, significativa e histórica”, a deputada estadual se comprometeu, em seu primeiro discurso, a honrar o legado de Antonieta de Barros, eleita deputada há 89 anos, dois anos após o sufrágio feminino no Brasil. Ela foi a primeira mulher negra a ocupar o cargo no país.

Ex-secretária municipal de educação da maior cidade catarinense, Rosa foi eleita como suplente pelo Partido dos Trabalhadores em 2022, com 16.832 votos. Ela assumiu o mandato temporariamente, no lugar do deputado licenciado Padre Pedro Baldissera, até o Dia da Consciência Negra, 20 de novembro.

Durante a cerimônia de posse, prestigiada por representantes do movimento negro e feminista, a deputada também se comprometeu a defender a causa da educação antirracista e a combater a violência contra as mulheres.

Na entrevista a seguir, ela comenta sobre a simbologia e representatividade da sua presença na Alesc, os desafios que enfrentou na sua trajetória política e as marcas que gostaria de deixar no parlamento estadual. Confira!

Fernanda Pessoa: É impossível não pensar no simbolismo de você ser a segunda mulher negra a ser deputada estadual em Santa Catarina, 89 anos depois de Antonieta de Barros. Quais você considera que serão os impactos disso para a sua trajetória política e para outras mulheres negras?

Vanessa da Rosa: Eu não esperava tanta repercussão. Quando a notícia saiu, eu fui procurada por vários veículos de comunicação e dei muitas entrevistas, mas até aí foi normal. Afinal, a notícia era de que iria assumir uma mulher negra, 89 anos após Antonieta. 

Quando eu entrei naquela Assembleia e vi a multidão, não teve como não me emocionar. Quando eu recebi a proposta do Padre Pedro, eu chorei muito. Em cada linha que escrevia do meu discurso de posse, eu chorava um pouco mais. 

Quando eu vi a repercussão, inclusive da mídia nacional, achei bom, porque a sociedade está entendendo que não podemos naturalizar quase um século sem uma mulher negra na Assembleia Legislativa. Não podemos achar que isso é normal. 

Nós somos sub-representadas no parlamento do Brasil inteiro. A sociedade precisa acordar para isso, precisa entender que o racismo é estrutural em todas as instituições, inclusive no parlamento. 

É um alerta para os partidos políticos, que precisam incentivar mais mulheres negras a estar nesse espaço, precisam criar estratégias políticas para realmente eleger mulheres negras. 

Se a gente pensar, os índices da população negra no Brasil em relação a escolaridade e saúde, moradia, são os piores possíveis. Nós vivemos ainda os resquícios dos quatrocentos anos de escravidão. 

Nós temos 11 milhões de mães solo no Brasil, dessas 6,9 milhões são mulheres negras em lares monoparentais, ou seja, são só elas e as crianças. Elas não têm uma rede de apoio que dê um suporte para que continuem os seus estudos, para que estejam em uma ocupação formal. Não há essa rede. 

O que acaba acontecendo? Elas trabalham na informalidade para poder dar conta dos afazeres domésticos e da criação dos filhos. Elas têm mais dificuldade de concluir os seus estudos. Consequentemente, elas vão ter mais dificuldade de ingressar na carreira política, porque precisa ter preparo, precisa ter qualificação. A gente quer mais mulheres na política, mas quer mais mulheres que nos representam, que comunguem das nossas pautas. 

Há vários empecilhos para que as mulheres negras, e mulheres em geral, estejam nesses espaços. O espaço do parlamento, no Brasil, é violento. Nós somos hostilizadas, os microfones são cortados. Eles nos incomodam pela nossa roupa, pelo nosso cabelo. Eles ameaçam. Eles envolvem a nossa família nessas ameaças. A gente precisa se encorajar e ter disposição para enfrentar.

“Não podemos naturalizar quase um século sem uma mulher negra na Alesc”, diz Vanessa da Rosa
Movimento negro e feminista acompanha a posse da deputada. Foto: Bruno Collaço/Agência AL.

Antonieta se elegeu em um momento mais próximo do contexto da abolição, onde a abertura para mulheres e para pessoas negras dentro da política institucional era ainda difícil. Ela trazia essas duas intersecções, como você, ser mulher, ser negra. Quase um século depois, o sistema ainda traz muitos entraves. Quais foram as suas maiores dificuldades para ocupar esse espaço e como você as tem contornado? 

A Antonieta foi uma desbravadora, uma guerreira. Ela se elege em 1934, dois anos depois do sufrágio feminino. Os desafios que eu tive durante a minha candidatura não foram fáceis. Nós temos uma cota dentro dos partidos para mulheres: 30%. E temos uma cota para pessoas negras. Só que isso não é suficiente para nos fazer eleitas. Esse “a mais” que vem do fundo eleitoral para as mulheres negras é pequeno. Para a gente participar de uma eleição com chances de se eleger, precisamos ter uma estrutura. Estrutura de pessoas, de materiais e, consequentemente, dinheiro, o que não é o caso de nós, mulheres negras, periféricas etc. 

Dentro do meu partido, nós tínhamos quatro deputados com os seus mandatos. O fato de você ter um mandato te dá uma superestrutura, porque você tem pessoas trabalhando por você em diversas partes do Estado. Você tem a logística, profissionais da comunicação. Você larga na frente. 
Eu não tinha nada disso. Enquanto candidata, eu tinha que passar para as pessoas a esperança. A esperança de mudar o cenário da Alesc e eleger uma mulher negra. Eu tinha as propostas do que eu imaginava poder fazer durante quatro anos na Assembleia, mas não tinha as ações concretas feitas que os outros deputados, independentemente de serem do meu partido ou não, tinham. Isso dá uma outra credibilidade. 

Eu fui para a campanha com uma estrutura mínima, conversando com as pessoas, falando de quem eu era e mostrando o que eu gostaria de fazer. Eu contava com a fé das pessoas, com o crédito que elas me davam. Por isso eu me sinto tão honrada que, diante de uma estrutura tão pequena, eu consegui 16.832 votos em Santa Catarina, num contexto horroroso. 

A gente passou quatro anos ouvindo um discurso de ódio, um discurso racista, machista, sexista, homofóbico, na maior cidade de Santa Catarina [Joinville], e também uma cidade que deu 70% de votos para o Bolsonaro. E eu consegui fazer essa votação tão expressiva. 

Não entrei por uma questão de organização do sistema político. Nós fizemos 41 mil votos de legenda, que eu não pude utilizar porque não tinha os 20% do coeficiente eleitoral. A gente tem candidatos de outros partidos que entraram com menos votos do que eu fiz. Então, eu posso me considerar eleita. 
Eu me sinto muito feliz, porque independentemente de ser suplente, fui muito vitoriosa. Foi uma campanha bonita, colorida, uma campanha que conversou com as pessoas, que tive a oportunidade de transitar, olhar o olho do outro eleitor e falar sobre mim. Não foi uma campanha estereotipada. Tudo que eu não queria era aquela foto do político olhando para o além. Eu queria uma campanha que tivesse a minha cara, que fosse alegre, que fosse propositiva. 

Eu me sinto muito honrada por estar fazendo história, por poder inspirar outras mulheres, meninas. Que a gente possa abrir uma outra caminhada para o legislativo de Santa Catarina.

Vanessa da Rosa exercerá o mandato até o Dia da Consciência Negra. Bruno Collaço/Agência AL.

Ao longo desses 33 dias, inclusive encerrando numa data muito importante para o movimento negro, que é o Dia da Consciência Negra, quais marcas você gostaria de deixar na Alesc?

Essa é uma vitória do movimento negro! É muito importante que, no meu mandato, a gente fale sobre a negritude em Santa Catarina, combatendo o racismo e fortalecendo a educação antirracista. Ninguém nasce racista. As pessoas se tornam racistas nas relações sociais e a escola pode ser um ambiente maravilhoso para trabalhar essas questões, mas a escola também é um ambiente hostil nesse sentido. A grande maioria das pessoas que já sofreram alguma situação de racismo, infelizmente, sofreram dentro da escola. 

Dos 10 milhões de jovens que nós temos fora da escola, entre 15 e 29 anos, 70 % deles são jovens negros. A gente precisa de políticas públicas que mudem essa situação, precisamos fomentar ações que inibam e coíbam o racismo em Santa Catarina. 

São os nossos jovens que têm as piores abordagens policiais, são as nossas mulheres negras que custam a ocupar um espaço de poder e quando ocupam, vivem o tempo todo com o receio de errar, porque ao povo preto não é permitido o erro, a gente não tem uma segunda chance. 

Nós temos um número expressivo de mulheres negras trabalhando na educação, mas um número mínimo de mulheres negras que são gestoras escolares. Alçar novos voos dentro da carreira é sempre mais difícil para as mulheres negras, é sempre mais difícil para os homens negros. A gente precisa romper com essa bolha. E a gente não vai conseguir romper com isso se não pautarmos, não discutirmos, não nos colocarmos na mídia. 

Muito do que a gente tem vivido hoje, para entender um pouco da repercussão que foi a minha chegada à Alesc, é justamente porque o racismo é pauta. O movimento negro no Brasil tem muita responsabilidade nisso.

O que aconteceu com o George Floyd nos Estados Unidos e o movimento Vidas Negras Importam também trouxe mais força para que as pessoas pensem duas vezes antes de ter uma atitude racista, uma fala racista, que até pouco tempo era naturalizada, era vista como mimimi. Tinha aquele discurso de que o Brasil é uma democracia racial, que aqui não existe racismo, de que em Santa Catarina não teve escravidão, de que Santa Catarina tinha um número reduzido de pretos. 

Agora, a gente está recontando a história, e recontando a partir de nós. Não é mais o branco colonizador europeu fazendo a nossa narrativa, isso é muito importante.

O que você tem sonhado? Quais são os próximos passos da sua trajetória política?

As coisas acontecem na minha vida inesperadamente. Eu fui secretária municipal da Educação, em Joinville, um marco na minha vida pessoal, profissional e política.

Para quem é mulher negra, mãe, professora, ser a secretária da maior rede de ensino de Santa Catarina é um desafio imenso. Eu quebrei paradigmas, rompi barreiras e me coloquei como uma mulher negra que estuda, que tem conhecimento. 

Com essa passagem pela Secretária, eu mostrei para a sociedade a epistemologia do povo negro, que sempre foi negada. Não à toa, as teorias racistas, que perduraram durante tanto tempo, falavam que não tínhamos convicção, que éramos desprovidos de inteligência e por isso a gente servia para o serviço duro, o serviço doméstico. 

Passar pela Secretaria de Educação é um marco que legitima o conhecimento do povo negro. Estar na Assembleia Legislativa também é. Eu rompo outra bolha. Esse espaço pode e deve ser do povo preto. 

Eu costumo dar um passo de cada vez. Agora eu vou centrar os meus esforços em fazer um bom trabalho na Assembleia Legislativa, com significado, um trabalho que marque. Vamos ver adiante quais serão os caminhos que eu vou tomar politicamente, como vamos discutir isso internamente dentro do partido. Um passinho de cada vez.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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