Em desastres climáticos, como a enchente que afetou 96% do estado do Rio Grande do Sul em maio de 2024, meninas e adolescentes são duplamente atingidas. As vulnerabilidades relacionadas à sua condição de gênero e idade, que as expõem a maiores riscos de violência e violação de direitos, se agravam diante das barreiras impostas pela crise, como a dificuldade de acesso a serviços essenciais, como o aborto legal.
Durante a crise climática no Rio Grande do Sul, um caso de gravidez infantil foi identificado em um abrigo. A menina, de apenas 9 anos, estava grávida em decorrência de violência intrafamiliar, ou seja, que ocorreu dentro de casa. Com a enchente, que deixou muitas residências debaixo d’água, sua família foi forçada a buscar abrigo, onde a gestação foi descoberta. Voluntárias que atuavam no abrigo informaram a mãe da menina sobre o serviço de aborto legal e fizeram os encaminhamentos necessários. Como a menina tem menos de 14 anos, a legislação considera qualquer relação sexual nessa idade como estupro de vulnerável, garantindo o direito ao aborto em casos como o dela.
Após serem orientadas, mãe e filha buscaram atendimento em um dos hospitais de Porto Alegre que prestam o serviço. No entanto, encontraram um obstáculo adicional: em abril de 2024, o Conselho Federal de Medicina (CFM) havia publicado a Resolução nº 2.378/2024, proibindo médicos de realizarem o procedimento de assistolia fetal em gestações com mais de 22 semanas, mesmo em casos de estupro. A assistolia fetal, que consiste na injeção de substâncias para interromper os batimentos cardíacos do feto antes de sua retirada do útero, seria necessária no caso da menina, que já estava com 26 semanas de gestação.
A equipe médica buscou orientação jurídica para solicitar autorização à Justiça. No entanto, a família da menina, temendo enfrentar o longo e desgastante processo judicial, optou por não prosseguir com o procedimento de interrupção da gestação e decidiu que o bebê seria entregue para adoção após o parto. As organizações que acompanharam o caso, no entanto, não confirmaram se a adoção foi, de fato, realizada.
Pouco tempo depois, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu uma liminar suspendendo os efeitos dessa resolução, argumentando que o CFM teria excedido seu poder regulamentar ao impor restrições não previstas em lei, o que poderia criar obstáculos para a saúde das mulheres e meninas vítimas de estupro.
Neste caso, além da vulnerabilidade provocada pela enchente, a criança de 9 anos, grávida de 26 semanas, enfrentou a barreira legal imposta pela resolução do CFM, que impediu os médicos de realizar o procedimento, mesmo em situações de violência e com o reconhecimento do direito ao aborto legal pela equipe de saúde. A decisão da família de não seguir a via judicial também escancara as complexidades envolvidas na tomada de decisão em situações de vulnerabilidade.
“Para além de toda a dificuldade que envolveu o acesso aos serviços, a própria precarização da vida e situações de risco que envolviam as mulheres e meninas durante a enchente, tendo que ir para abrigos, que eram situações mistas de uma enorme dificuldade, uma desorganização muito grande do Estado, e mesmo situações de risco de violência sexual e constrangimento, a gente tinha ainda um agravante que era a vigência da resolução do CFM”, comentou Renata Jardim, integrante do Cladem Brasil e do Fórum Aborto Legal RS.
Renata destaca ainda que as barreiras para o acesso ao aborto legal são múltiplas, incluindo a falta de informação sobre o direito ao procedimento, a dificuldade em reconhecer situações de violência e de encaminhar a denúncia para interromper essa violência, além do que considera um “agravante”: o sistema de saúde do RS conta com apenas um serviço que realiza o procedimento de aborto legal após 22 semanas.
“Essa resolução, na prática, fez com que as meninas mais vulneráveis, que têm maior dificuldade de acessar informação, de identificar que está em um processo de violência, de que fosse devidamente encaminhada para os serviços de aborto legal, estavam ali totalmente desassistidas”, completou.
Renata também lembrou que dois hospitais que oferecem o serviço de aborto legal no Rio Grande do Sul foram diretamente impactados pela enchente. O Hospital Materno Infantil Presidente Vargas, em Porto Alegre, que precisou reagendar um procedimento de aborto legal no período em que ficou sem água e o Hospital Universitário de Rio Grande, em Rio Grande, ficou com os serviços suspensos por um período em função dos alagamentos dentro da unidade.
A enchente, que bloqueou estradas e dificultou o acesso às cidades, quase impediu uma mulher de acessar o serviço de aborto legal. Apesar das dificuldades, a equipe de um hospital em Santa Maria mobilizou-se para realizar o procedimento. Embora o hospital não estivesse formalmente cadastrado para oferecer o serviço, a equipe tinha acesso ao protocolo para aborto legal e estava em processo de cadastramento. Com o deslocamento para Porto Alegre inviabilizado pelas condições das estradas, o procedimento foi realizado em Santa Maria, destacando a importância de equipes treinadas mesmo em hospitais que não são especializados, uma vez que as dificuldades logísticas podem acabar impedindo o acesso a serviços de saúde em cidades de referência.
Violência sexual e saúde mental
Em São Leopoldo, na Região Metropolitana de Porto Alegre, a ONG Proame Cedeca — Centro de Defesa da Criança e do Adolescente —, atuou durante a enchente de 2024 auxiliando as famílias a deixarem suas casas e acompanhando a situação dos abrigos. Após o período mais agudo da crise, a organização continuou prestando atendimento às crianças e adolescentes, tanto na sua sede quanto em escolas da região.
Na percepção de Micheli Fabiana Duarte, que é diretora da organização, e Vanessa Troleiz, que atua como psicóloga, a enchente afetou desproporcionalmente meninas e mulheres. Elas ficaram mais vulneráveis a riscos como abuso sexual e violência, especialmente nos abrigos. Além disso, muitas precisaram assumir responsabilidades, como cuidar dos irmãos, e em algumas situações, abandonar a escola para ajudar na reconstrução de suas casas.
Em um dos casos acompanhados pela Proame, uma adolescente que teve a sua casa atingida pela enchente acabou sendo vítima de violência sexual enquanto estava abrigada na casa de um familiar. A mãe, tentando protegê-la, acreditou que seria mais seguro deixá-la na casa do parente do que em um abrigo. A violência, no entanto, só foi descoberta quando a adolescente retornou para a escola. Sua mudança de comportamento chamou a atenção de uma educadora, que a encontrou praticando automutilação no banheiro. Parceira do Proame, a escola acionou a ONG para oferecer suporte, e foi nesse momento que a jovem revelou o abuso praticado por quem deveria protegê-la.
A Proame, então, acionou o Conselho Tutelar e formalizou a denúncia para garantir o suporte necessário à adolescente. O episódio ilustra como as situações de crise e a busca por segurança podem expor crianças e adolescentes a novos riscos, mesmo quando a família age com a intenção de protegê-las. O caso também reforça a importância do papel da escola em identificar sinais de sofrimento e agir em parceria com organizações especializadas.
A ONG passou a atender mais casos de violência doméstica e sexual após a enchente, com relatos de abusos nos abrigos e em casas de parentes, como o narrado anteriormente. O aumento do tempo que as famílias passaram juntas em espaços com pouca privacidade teriam contribuído para essa situação. Nos abrigos emergenciais, onde muitas pessoas ficaram por cerca de um mês ou 40 dias, as meninas teriam ficado mais expostas a riscos de abuso devido à falta de privacidade e proximidade com outras pessoas, incluindo pessoas de diferentes contextos sociais.
“A gente tem inclusive uma sala montada dentro de uma escola para atender toda a região Nordeste do município. A busca por atendimento psicológico é para contar essas situações de abuso, de ideação suicida. É absurdo, porque o volume [de casos] é muito expressivo”, disse Vanessa.
Outra questão apontada pelas profissionais, foi o impacto que a enchente provocou na saúde mental dos adolescentes, com aumento de automutilação, ideação suicida e tentativas de suicídio. A perda de pertences pessoais, que fazem parte da sua identidade, causou grande impacto.
“Os adolescentes trazem muito a característica da roupa que vestem: o meu boné, o meu tênis [que foi perdido]. Eles passaram a conviver com coisas que foram doadas. Pode parecer bobagem, mas a gente que atua muito com o adolescente sabe que isso causa um impacto na saúde mental deles, porque é a identidade, é a característica, é aquilo que me faz ser quem eu sou”, destacou Vanessa.
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Vanessa fez ainda um alerta sobre casos de exploração sexual de crianças e adolescentes após a enchente, pois algumas famílias acabaram em situações ainda mais vulneráveis com a perda de emprego e renda.
“A gente tem falado com o Conselho Tutelar que tem aumentado o número de meninas sendo exploradas sexualmente para trazer dinheiro para casa”.
Para lidar com todas essas questões, na avaliação das integrantes da ONG, é essencial que os planos de contingência em casos de crise climática sejam construídos com a participação de crianças e adolescentes, pois eles sabem o que faz a diferença em suas vidas.
Conselho Tutelar perde histórico de atendimentos em enchente
A conselheira tutelar Terezinha Vergo, que trabalha na unidade do Centro de Porto Alegre, destaca que o efeito surpresa foi um dos grandes problemas. Ninguém estava preparado para um evento de tais proporções, embora estudos já alertassem para o risco de chuvas intensas e enchentes no estado gaúcho.
Para ela, a falta de água potável e luz dificultou o trabalho dos conselheiros e a assistência à população. Parte dos conselheiros passou a fazer plantão de atendimento no abrigo montado no Clube Geraldo de Santana, no bairro Santo Antônio, em Porto Alegre. Pelo menos três conselheiros perderam suas casas na enchente e dois Conselhos Tutelares da Capital foram inundados, o que fez com que muitos expedientes e registros de atendimento fossem perdidos. A falta de digitalização dos procedimentos dificultou a recuperação de informações. “Nossos atendimentos eram todos manuais, feitos no computador, perdemos tudo”, contou.
Terezinha também avalia que a enchente intensificou a vulnerabilidade de meninas e adolescentes, especialmente em relação à violência sexual. Ela acrescenta que o registro dessas violências não funcionou muito bem.
“Na enchente, o que aconteceu com frequência foram notícias de abusos nos abrigos. A gente entra nos abrigos e, realmente, o privado some. As famílias ficavam lado a lado – homens, mulheres, crianças e grávidas. Muitas mulheres com seus filhos começaram a migrar de abrigo em abrigo por causa do assédio e do abuso, mas não há um registro oficial da quantidade de casos”, apontou a conselheira.
Terezinha, assim como as integrantes do Proame, reforça o impacto da enchente na saúde mental das crianças e dos adolescentes, com aumento de traumas, ansiedade e outros transtornos. Ela afirma que há precariedade de atendimento em saúde mental e os serviços de saúde pública estão sobrecarregados.
“Eu atendo um caso de uma menina de 12 anos que não sai do quarto por causa da enchente. A água subiu até o teto da casa dela. Depois a família voltou, pintou tudo, mas não adiantou. Provavelmente, essa menina precisa ser tratada por uma psicóloga, ela tem que ser ouvida”, disse Terezinha.
Medidas de prevenção incluem planejamento e recursos financeiros
O artigo “Crise Climática e Gênero: o Duplo Flagelo das Vítimas de Eventos Climáticos Extremos“, publicado na Revista de Vitimologia e Justiça Restaurativa pela pesquisadora Ana Wernke, discute as vulnerabilidades enfrentadas pelas meninas e mulheres em abrigos temporários após desastres climáticos.
Entre os pontos destacados, está a exposição à violência, agravada pela falta de infraestrutura adequada para atender às necessidades específicas dessa população. Ativistas que atuaram como voluntárias na enchente no Rio Grande do Sul relataram problemas similares aos mencionados na pesquisa, como falta de privacidade e segurança; estruturas precárias, com ausência de energia elétrica, que favorecem abusos. Também há risco de exploração e tráfico de pessoas.
O artigo também destaca o impacto na saúde mental das pessoas afetadas e as dificuldades de acesso a serviços essenciais, incluindo água potável, saneamento, cuidados de saúde em geral e serviços de saúde sexual e reprodutiva. Além das condições precárias de vida, a subnotificação de violências em contexto de crise climática é comum, já que muitas vítimas não denunciam os abusos por medo ou falta de suporte.
Para mitigar esses problemas, o estudo sugere ações como a criação de um sistema de coleta de dados sobre as condições de vida de meninas e adolescentes nesses espaços. Também enfatiza a importância de treinar funcionários e voluntários para oferecer um atendimento adequado, especialmente às vítimas de violência.
“Os planos de resposta a riscos e desastres devem contemplar a questão do abuso e da violência em abrigos pós desastres, realizando a integração de políticas para a melhor gestão de ocorrências em eventos extremos. Aliado a isso, prever a promoção da saúde mental dessas populações com vistas a programas de prevenção e resiliência”, completa o artigo.
O artigo “Justiça Climática Infantojuvenil: Impactos da Crise Climática em Crianças e Adolescentes e o Comentário Geral Nº 26 do Comitê de Direitos da Criança das Nações Unidas”, publicado na revista Cadernos do CEAS (Salvador/Recife), em 2024, aborda o mesmo tema, incluindo as particularidades da infância indígena. Os autores do estudo são Flávia de Ávila, Karyna Batista Sposato e Victoria Cruz Moitinho, da Universidade Federal de Sergipe (UFS); e José Lucas Santos Carvalho, do Ministério Público do Estado de Sergipe.
Além de contextualizar a vulnerabilidade etária, em decorrência das limitações motoras e de menor percepção a riscos, o artigo detalha diversas vulnerabilidades enfrentadas por crianças e adolescentes em contexto de catástrofe climática. Entre elas, estão a vulnerabilidade socioeconômica, associada à pobreza e ao acesso limitado a serviços básicos; a privação de direitos; como acesso à água potável e redes de proteção; e as violências, incluindo violências baseadas em gênero, casamento infantil, trabalho infantil, rapto, tráfico e abuso sexual.
O estudo faz uma ressalva em relação às crianças indígenas, que são particularmente afetadas em situação de crise climática devido ao contexto territorial, como o impedimento de acesso à terra e aos recursos naturais, além de sua conexão ancestral e espiritual com o meio em que vivem. O racismo ambiental e a falta de segurança alimentar comprometem a resiliência dessas comunidades.
“As sucessivas violações a que são submetidas, como o impedimento do acesso à terra, aos seus territórios e aos recursos naturais resultam em conflitos territoriais, retiradas e migrações forçadas, o que lhes priva de aspectos importantes de sua identidade. Também são sujeitas ao racismo ambiental, que resulta em consequências como devastação ambiental e mortes por confrontos com invasores”, descreve o artigo.
O artigo aponta ainda a necessidade de se implementar políticas públicas específicas para proteger crianças e adolescentes dos efeitos da crise climática. Além disso, destaca a importância do financiamento climático para viabilizar ações de assistência técnica, capacitação e subsídios, reforçando o papel dos países desenvolvidos na cooperação com nações em desenvolvimento.
Contrapontos:
- Hospitais
- O Hospital Universitário de Rio Grande informou, via assessoria de imprensa, que foi diretamente atingido pela enchente de maio de 2024. Em 3 de maio, iniciou-se um plano de contingência. Três dias depois, suspendeu consultas ambulatoriais, exames e cirurgias eletivas. No dia 9, foi construída uma passarela de acesso até o hospital. Na sequência, iniciaram as transferências dos serviços para locais sem risco de alagamento. No dia 17, o hospital parou de receber novos pacientes e iniciou um processo de realocação de pacientes internados em outros serviços de saúde. Os serviços foram retomados no dia 7 de junho de forma gradativa. A unidade providenciou transporte aos trabalhadores e atendimento psicológico.
- Nós entramos em contato com a assessoria de imprensa da Prefeitura de Porto Alegre para solicitar um contraponto referente a situação do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas, mas não tivemos retorno.
- Conselho Tutelar
- Entramos em contato com a coordenadora dos Conselhos Tutelares de Porto Alegre no período da enchente, Aline Goulart. Ela afirmou que um dos Conselhos ainda “não retornou para o atendimento no território”. Porém, não respondeu às perguntas sobre a perda dos registros de atendimentos na inundação.
- Tentamos contato com a Prefeitura de Porto Alegre para solicitar informações relacionadas aos Conselhos Tutelares, mas também não obtivemos resposta.
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Esta é uma produção do Catarinas, dentro do compromisso com o FP2030, uma iniciativa global para assegurar acesso universal a planejamento familiar e direitos reprodutivos até 2030, com apoio da FP2030, Share-Net Colombia, Profamilia, Save the children.