O órgão especial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) da Lei 18.637/2023, por doze votos contra dez. A legislação reproduz o programa do movimento Escola Sem Partido no estado. Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal impôs uma série de derrotas às leis deste tipo, com dez casos com julgamento definitivo.
A votação sobre a ADI foi retomada nesta quarta-feira (18), após pedido de vista do desembargador Altamiro de Oliveira, depois que o relator Alexandre D’Ivanenko apresentou um voto que apontava a inconstitucionalidade da lei. A ação foi proposta pelo diretório estadual do Psol em março deste ano, quase um mês após a lei ter sido sancionada pelo governador bolsonarista Jorginho Mello (PL).
A legislação foi elaborada pela deputada estadual de extrema direita, Ana Campagnolo (PL), conhecida por promover perseguição a profissionais da educação. No início do seu primeiro mandato, em 2019, a parlamentar lançou um disque-denúncia contra professores, que foi barrado pelo Supremo.
Durante a discussão sobre a constitucionalidade da legislação no Tribunal acompanhada pelo Catarinas, alguns magistrados demonstraram não compreender o teor da legislação. O doutor em direito e advogado pela ação, Rodrigo Sartoti, considerou que o debate foi inferior às expectativas e à gravidade da norma.
“Alguns desembargadores entenderam que a lei institui uma semana facultativa, mas, na verdade, ela cria novos deveres aos professores, ou seja, altera o regime jurídico deles, viola a competência privativa do Governador de Estado [já que só poderia ser de iniciativa do executivo] e, principalmente, o direito de ensinar e aprender”, disse Sartoti em entrevista após a sessão.
Anteriormente, o Centro de Apoio Operacional do Controle de Constitucionalidade do Ministério Público de Santa Catarina havia se manifestado a favor da procedência da ADI.
O advogado que peticionou a ação diz que o próximo passo será recorrer à Suprema Corte. “A decisão de hoje por maioria do Tribunal de Justiça de Santa Catarina viola uma decisão do STF, em uma ADI que julgou inconstitucional uma lei extremamente semelhante, que só muda o título”, afirmou.
Na primeira audiência do julgamento da matéria, em 2 de agosto, o procurador-geral do Estado, Márcio Vicari, defendeu a constitucionalidade da lei na tribuna.
O Catarinas questionou a Procuradoria Geral sobre qual o seu interesse em defender a lei proposta por uma deputada e com textos similares a outras derrubadas pelo Supremo. Em retorno, a assessoria afirmou que é dever constitucional do procurador-geral defender a constitucionalidade das leis, conforme o Artigo 85, parágrafo 4º da Constituição Estadual.
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Até a publicação desta reportagem, não tivemos retorno da Secretária do Estado da Educação sobre a implementação da legislação na rede estadual de ensino.
Lei institucionaliza perseguição a professores e professoras
Na prática, a legislação vem sendo utilizada como argumento para perseguir professores. Segundo o Sindicato dos Trabalhadores em Educação na Rede Pública de Ensino do Estado de Santa Catarina, eles recebem ao menos dois casos de perseguições de docentes por mês. No entanto, a maior parte não chega ao conhecimento da organização, pois os trabalhadores têm medo de denunciar.
“É tão grave tirar a liberdade de cátedra, como faz essa lei, quanto é violar a liberdade de imprensa. Talvez mais grave, porque o professor inclusive tem que educar os seus alunos na totalidade da liberdade, inclusive da liberdade de imprensa, da liberdade de expressão, do ponto de vista crítico”, afirmou Evandro Accadrolli, coordenador estadual do sindicato.
Apesar de não fazer referência direta, a Lei 18.637/2023, sancionada em fevereiro deste ano, repetia o programa do Escola Sem Partido, no qual instituições de educação devem promover atividades para conscientizar estudantes sobre o direito de liberdade de aprender conteúdos “politicamente neutros” e “livres de ideologia”, termos citados no texto da legislação. A lei institui a Semana Escolar Estadual de Combate à Violência Institucional Contra a Criança e o Adolescente no calendário estadual.
De acordo com o advogado Rafael Kirchhoff e integrante da Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBTI, este tipo norma é defendido por um espectro político ligado à extrema direita e ao fundamentalismo religioso que têm o objetivo de gerar um ambiente de desconfiança na comunidade escolar.
“Ela estabelece uma genérica neutralidade ou ensino livre de ideologia que pode servir à perseguição de docentes, pois qualquer abordagem ou conteúdo que desagrade a família ou determinadas posições políticas poderá ser acusada de parcial ou ideológica”, disse.
O termo “violência institucional”, presente no texto da legislação catarinense, foi uma novidade trazida pela normativa em relação ao modelo do Escola Sem Partido. Ele apareceu anteriormente no antigo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado por Damares, no Governo Bolsonaro.
Em 2021, o Manual da Taxonomia de Direitos Humanos da Ouvidoria Nacional previa denúncias por “ideologia de gênero” ou “doutrinação” nas escolas, identificadas como violências institucionais contra crianças e adolescentes em sala de aula. Após muitas críticas e denúncias sobre a instrumentalização da perseguição a docentes, o manual foi atualizado em julho de 2022.
Para Renata Aquino, professora de história e integrante do Professores Contra o Escola Sem Partido, esse entendimento de que a “doutrinação” poderia ser interpretada como uma “violência institucional” foi um legado de Damares. “Se ela não criou, ela popularizou essa tática que vimos a Campagnolo utilizar”, afirmou Aquino.