Sancionada em fevereiro pelo governador bolsonarista Jorginho Mello (PL), a lei 18.637/2023 institui o programa do movimento Escola Sem Partido (ESP) em Santa Catarina, declarado inconstitucional em ao menos dez decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). O Ministério Público de Santa Catarina informou que o Centro de Apoio Operacional do Controle da Constitucionalidade (CECCON) está analisando o caso. Proposta pela deputada de extrema direita Ana Campagnolo (PL), a legislação inclui a Semana Escolar de Combate à Violência Institucional contra a Criança e o Adolescente no calendário estadual, o que, na prática, institucionaliza a perseguição aos professores.
“É uma lei que tira a essência do professor, que é a liberdade de produzir conhecimento e discutir a diversidade. Ela é tão grave que podemos compará-la a uma legislação que tira a liberdade de imprensa da sociedade. Ela tira a liberdade do professor de ensinar”, afirma ao Catarinas Evandro Accadrolli, coordenador estadual do Sindicato dos Trabalhadores em Educação na Rede Pública de Ensino do Estado de Santa Catarina (Sinte/SC).
Imediatamente após a ratificação da lei, o Sinte/SC se reuniu com o secretário da educação Aristides Cimadon, porém a conversa não teve avanços formais. Na audiência, foi solicitada a imediata revogação da norma, chamada pelas/os trabalhadoras/es de Lei da Mordaça. O pedido está sendo formalizado pelo Sindicato. Além disso, o Sinte está levantando todos os pontos inconstitucionais da legislação para entrar com uma ação na Justiça. “Vamos preparar uma forte campanha para toda a sociedade, com materiais que abordam a importância da liberdade de cátedra, da liberdade de aprender e ensinar, e contra essa forma autoritária de impor um formato”, conta Accadrolli.
Por e-mail, a assessoria de comunicação da Secretaria de Estado da Educação (SED) enviou um posicionamento sobre a ratificação da norma:
“O governo de SC respeita sempre, dentro dos limites da Constituição Estadual, as decisões tomadas em conjunto pelos representantes eleitos para representar o povo catarinense. O projeto foi aprovado pela maioria dos deputados para se tornar lei porque viram na proposta mérito em manter os alunos focados no ensino e afastados de discussões ideológicas”, diz a nota.
A inconstitucionalidade do Escola Sem Partido
O Supremo Tribunal Federal impôs uma série de derrotas às leis do tipo Escola Sem Partido nos últimos anos. O Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas cita dez casos com julgamento definitivo a favor da liberdade de ensino e contra a censura. A lei estadual alagoana, por exemplo, conhecida como “Escola Livre” proibia, tal qual a catarinense, a “prática de doutrinação política e ideológica” em sala de aula e afirmava ser um direito dos pais que seus filhos recebam uma “educação moral livre de doutrinação política, religiosa ou ideológica”. Ela foi objeto das ações diretas de inconstitucionalidade 5537, 5580 e 6038 e, em 2020, foi declarada inconstitucional pelo plenário do STF.
“Essas normas foram declaradas inconstitucionais, seja porque invadiam a competência exclusiva da União para estabelecer diretrizes e bases para a educação nacional, seja porque violavam princípios constitucionais, tais como o da liberdade de aprender e ensinar, da laicidade estatal, da proporcionalidade, da liberdade de expressão, e o direito à educação voltada ao desenvolvimento da personalidade e à preparação para o exercício da cidadania”, explica o mestrando em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro da diretoria da Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBTI (Anajudh), Rafael Kirchhoff.
Em fevereiro, o STF também declarou inconstitucional a lei de Rondônia que proibia o uso da linguagem neutra nas escolas. Em Santa Catarina, o Tribunal de Justiça declarou que a lei que autoriza o ensino domiciliar ou homeschooling, aprovada na gestão anterior, contradiz a legislação federal, ainda cabe recurso dessa decisão. A norma estava suspensa desde dezembro de 2021.
Violência institucional é a nova “doutrinação”
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A lei aprovada no estado repete o programa do Escola Sem Partido, no qual instituições públicas e privadas devem promover atividades para conscientizar estudantes sobre o direito de liberdade de aprender conteúdos “politicamente neutros” e “livres de ideologia”.
“A lei catarinense pressupõe uma violência de docentes contra estudantes jamais demonstrada em termos concretos. Também estabelece uma genérica neutralidade ou ensino livre de ideologia que pode servir à perseguição de docentes, pois qualquer abordagem ou conteúdo que desagrade à família ou determinadas posições políticas poderá ser acusada de parcial ou ideológica”, diz Kirchhoff.
A legislação apresenta pequenas mudanças na estrutura, aprovadas principalmente durante a tramitação do projeto. Uma das diferenças é o uso da expressão “violência institucional” para criminalizar professores, quando anteriormente era comum a utilização do termo “doutrinação”.
“Esse movimento de repaginar ‘doutrinação’ chamando de ‘violência institucional’, eu observei pela primeira vez no Ministério da Damares, quando ela usou o Disque 100 para tentar colher denúncias de supostas violações que os professores fazem no contexto da sala de aula contra crianças e adolescentes. Esse é um legado da Damares. Se ela não criou, ela popularizou essa tática que, agora, vemos a Campagnolo utilizar”, explica Renata Aquino, professora de história e integrante do Professores Contra o Escola Sem Partido.
Se há uma década, os professores progressistas eram os alvos mais comuns da estratégia ultraconservadora de censurar debates de gênero, raça e sexualidade, atualmente há um entendimento de que todo professor que segue o conteúdo escolar está sob ameaça. A lei pode abrir brecha para teorias negacionistas e para que conteúdos científicos possam ser identificados como ideológicos.
“Um giro importante que o bolsonarismo fez foi fortalecer o vínculo das pessoas que promovem a censura com o negacionismo científico. Qualquer ciência fica sob perigo uma vez que os defensores da censura estão vinculados ao negacionismo científico. Nesse momento, combater a censura na escola é defender o currículo escolar, é defender o direito dos estudantes, das novas gerações a terem acesso ao conhecimento científico que a sociedade já produziu”, defende Aquino.
No especial Gênero na Escola, lançado pelo Catarinas em 2022, demonstramos como as violações sistemáticas à liberdade de ensino, provocadas por movimentos antidemocráticos como o ESP, provocaram fissuras nas relações que envolvem a comunidade escolar e o ensino-aprendizagem. A sensação de insegurança e medo passaram a fazer parte da rotina docente na última década e essa foi uma das principais consequências das tentativas de implementação de leis como essa.
“Não acredito que essa lei seja colocada em prática ou vá mudar o sistema de alguma forma, mas a estratégia da extrema direita de criar um pânico moral faz com que ela ganhe com a propagação de desinformação e insegurança”, afirma Aquino. Para a historiadora, o momento agora é de tentativa de “reconstrução do tecido social das relações escolares e de pensar em como desfazer essa imagem de professores criminosos para colocar algo que faça mais sentido no lugar”.
O que é o Escola Sem Partido?
O Escola Sem Partido é um movimento fundado pelo procurador do estado de São Paulo, Miguel Nagib, em 2004, que articula uma agenda conservadora para a educação brasileira.
Desde 2014, o ESP capilarizou os ataques contra docentes e instituições de ensino promovidos por movimentos reacionários, utilizando expressões como “ideologia de gênero” e “doutrinação” para incitar um pânico moral e fortalecer a narrativa de que a integridade das crianças, da família e da nação estariam ameaçadas por debates que questionassem as estruturas de poder.
O primeiro projeto de lei do movimento foi feito sob encomenda de Flávio Bolsonaro, que era Deputado Estadual pelo Rio de Janeiro. Posteriormente, Nagib disponibilizou versões para serem apresentadas nos âmbitos municipais, estaduais e nacional no seu site. Leia mais aqui.
Autora da lei tem histórico de perseguição à docentes
A perseguição aos professores é uma prática recorrente na atuação da deputada estadual Ana Campagnolo (PL). Ela foi eleita, em 2018, após mover uma ação por perseguição ideológica e religiosa contra a historiadora Marlene de Fáveri. Foi um dos primeiros casos de ataques individuais a docentes com repercussão nacional no país. Em 2018, a ação foi julgada improcedente por falta de provas. No início do seu primeiro mandato, a bolsonarista chegou a lançar um disque-denúncia contra professores, que foi barrado pelo STF. A parlamentar Ana Campagnolo não se manifestou sobre a ratificação da legislação até o fechamento desta reportagem.