Escritora do roteiro do primeiro longa-metragem gravado em Santa Catarina. A primeira mulher a se formar em direito no estado. Única mulher a participar do Grupo Sul, que produzia diversos produtos culturais. Autora de livros de poesia e infantis. Professora concursada do Instituto Estadual de Educação. A trajetória de Eglê Malheiros é marcada pelo pioneirismo e pela luta. Nesta segunda-feira, 3 de julho, ela completa 95 anos e sua história está prestes a ganhar as telas do cinema. No dia 12, será lançado o telefilme documentário Eglê e, em paralelo, o Projeto Acervo Eglê reunirá cerca de 3 mil peças históricas da artista e educadora.

“É uma bela homenagem aos 95 anos de minha mãe”, define, ao Catarinas, Sônia Malheiros Miguel, filha de Eglê.

“A história dela é muito bonita, mas não no sentindo da beleza tradicional, porque tem muitas tragédias, desde o assassinato do pai dela quando ela tinha quatro anos, por razões políticas. Eu, como filha, acompanho de perto e é impressionante o chamado que ela teve quando era muito jovem, nessa questão de justiça, igualdade e educação. E ela aí com seus 95 anos, essa questão ainda se coloca quando ela conversa”, destaca.

Hoje, Eglê mora com Sônia em Brasília. A filha relata que a mãe tem algumas dificuldades por conta da idade e sofre da doença de parkinson, mas tem total consciência de que o documentário está sendo produzido e até mesmo participou do projeto. A diretora do longa, Adriane Canan, compartilha que Eglê deu opiniões sobre o documentário, assistindo trechos durante a montagem e conversando sobre o processo com a equipe.

“Nossa escolha foi buscar todos os caminhos para que Eglê narrasse seus percursos em todo o filme. Entrevistas para a televisão dos anos 1980, fitas cassete dos anos 1990, fotografias, documentos históricos, textos de todas as décadas, entrevistas atuais: é a partir dela que conhecemos sua história. E ela foi muito generosa conosco em todos os encontros. A generosidade e a coerência são traços muito fortes de dona Eglê. E aparecem muito no filme”, ressalta Canan.

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A equipe do documentário é formada inteiramente por mulheres | Crédito: arquivo pessoal.

“Para mim, a mensagem principal é a coerência dela. O filme vai resgatando coisas que mostram isso: a luta por um mundo melhor e mais acolhedor”, diz Sônia, que trabalhou em organizações feministas, é pesquisadora de gênero e reconhece a influência da mãe para que seguisse esse caminho. “Eu não tenho a menor dúvida de que quem eu sou e minha forma de me colocar no mundo é muito inspirada nela”, diz. 

A filha relata que a característica multifacetada de Eglê é o que torna a mãe única. “Ela sempre teve curiosidade por muitas áreas. A gente sempre brincava que ela deveria ter feito medicina, porque ela adorava a área, pesquisava, lia sobre. Na arte, ela atuou nas peças e quando ela era jovem, foi convidada para ir embora com um grupo de teatro”, exemplifica.

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Eglê Malheiros na juventude | Crédito: arquivo pessoal.

Para Sônia, a feliz coincidência de o documentário estrear próximo ao aniversário de 95 anos da mãe visibiliza ainda mais a trajetória de Eglê. “Ela recebeu convites de professores que querem aprofundar a história dela em trabalhos. O documentário vai colocar luz sobre uma mulher que vale a pena conhecer” finaliza.

Com uma equipe formada apenas por mulheres, produção da Margot Filmes, coprodução da Lilás Filmes e Calendula Filmes, o documentário foi contemplado pelo Prêmio Catarinense de Cinema 2019/ANCINE/FSA. A estreia, em duas sessões, será realizada no dia 12 de julho, no Museu da Escola Catarinense (MESC), em Florianópolis. O telefilme já está pré-licenciado pela Cine Brasil TV, canal dedicado à produção audiovisual nacional independente.

Trajetória

Eglê Malheiros nasceu em Tubarão (SC), em 1928, mas logo em seguida a família se mudou para Lages (SC). É a primeira de quatro irmãos. Em 1932, seu pai, Odílio Cunha Malheiros, advogado e diretor do Jornal A Defesa, foi assassinado por motivações políticas. No mesmo ano, a mãe de Eglê, Rita da Costa Ávila Malheiros, se muda para Florianópolis com os quatro filhos pequenos.

Eglê cresceu em Florianópolis e desde muito menina desenvolveu o gosto pela leitura, pelo conhecimento em diversas áreas e pela militância. Estudou em Porto Alegre (RS) e em Joinville (SC). Começou a lecionar ainda muito jovem. Ao retornar a Florianópolis, com 18 anos, cursou a Faculdade de Direito de Santa Catarina e foi a primeira mulher a se formar em Direito no estado. Também aos 18 anos, ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB), no qual já militava anteriormente, e exerceu grande participação. Sua mãe, Rita, também era filiada ao PCB e chegou a ser candidata a deputada federal nas eleições de 1947. 

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Formatura de Direito | Crédito: arquivo pessoal.

Foi também nesse período, no final dos anos 1940, que Eglê construiu, com outros companheiros de diversas áreas das artes, o Círculo de Arte Moderna, mais conhecido como Grupo Sul. Sua atuação foi muito potente: Eglê foi a única mulher a participar do Grupo Sul durante toda sua trajetória, que envolve teatro, cinema, artes plásticas, a Revista Sul e as publicações das Edições Sul. Eglê Malheiros assina inúmeros textos nas edições da Revista Sul, onde também atuava em várias funções. Em 1952, pelas Edições Sul, ela publicou seu primeiro livro de poemas intitulado “Manhã”.

Com Salim Miguel, escritor com quem se casou em 1952, teve cinco filhos e uma parceria para toda a vida. Ao lado dele, escreveu o argumento e o roteiro de “O preço da ilusão”, primeiro longa-metragem realizado em Santa Catarina e produzido pelo Grupo Sul. 

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Em visita ao Rio de Janeiro, com companheiros do Grupo Sul e Carlos Drummond de Andrade | Crédito: arquivo pessoal.

Professora concursada do Instituto Estadual de Educação (na época, em 1948, chamado de Instituto de Educação Dias Velho), lecionou História Geral, História do Brasil e História de Santa Catarina. Foi presa em Florianópolis por cerca de 50 dias em abril de 1964, logo após o golpe civil-militar, e impedida de continuar lecionando até 1979.

Durante 1965 e 1979, a família de Eglê Malheiros e Salim Miguel viveu no Rio de Janeiro, onde Eglê, além de mãe e dona de casa, cuidando dos cinco filhos, trabalhou como tradutora, roteirista de cinema e na Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, da qual foi diretora-secretária. Entre 1976 e 1979 foi uma das editoras da revista Ficção (1976/79). Também fez Mestrado em Comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 

Em 1979, após a anistia, a família retornou a Florianópolis e Eglê retomou a atuação no magistério, por mais dois anos, e se aposentou na sequência. Em 1986, foi candidata a deputada constituinte.

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Crédito: arquivo pessoal.

Em sua produção literária estão também os livros “Desça, menino” (1985), “Vozes veladas” (1996) e “Os meus fantasmas” (2002). Além disso, Eglê possui inúmeras publicações em coletâneas e obras coletivas. Assinou também uma coluna no Diário Catarinense.

Após a aposentadoria, ela continuou participando ativamente da vida cultural, social e política em Santa Catarina, embora não mais filiada a nenhum partido, mas posicionando-se sempre na coerência por uma sociedade digna e de direitos para todos. Em sua residência, em Florianópolis, junto ao marido Salim Miguel, recebeu com generosidade muitas e muitas pessoas que pesquisavam a trajetória do Grupo Sul, a sua própria história e os temas aos quais sempre dedicou a vida.

Em meados dos anos 2010, mudou-se para Brasília com o marido, Salim, por necessidade de cuidados médicos. Salim faleceu em 2016, depois de 64 anos de casamento. Atualmente, Eglê vive com a filha, Sônia Malheiros, em Brasília e conta com todo o apoio e afeto dos demais filhos, Antônio Carlos Miguel, Veet Vivarta, Luis Felipe Miguel e Paulo Sérgio Miguel. 

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Documentarista Adriane Canan com Eglê Malheiros durante a produção do filme | Crédito: Carol Marins.

Projeto Acervo Eglê

Além do documentário, está em andamento o Projeto Acervo Eglê, conduzido pelas artistas visuais Gabi Bresola e Leila Pessoa, da equipe de tratamento arquivístico do documentário Eglê. “Durante o processo de pesquisa e tratamento dos arquivos para o filme, percebemos o tanto de material histórico incrível que Eglê Malheiros guardou. Desenvolvemos então o Projeto Acervo Eglê com a finalidade de triagem, higienização, catalogação, classificação, pequenos restauros de conservação preventiva, digitalização e acondicionamento do acervo de mais de três mil itens, entre manuscritos, originais, documentos e fotografias”, conta Gabi Bresola. 

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Gabi Bresola e Leila, responsáveis pelo Projeto Acervo Eglê | Crédito: arquivo pessoal.

O tratamento arquivístico teve início em janeiro de 2023 e o projeto prevê uma publicação em formato digital com textos e imagens, ainda sem data de lançamento. Itens do acervo estarão expostos no dia 12 de julho, no MESC, em um conjunto de homenagens que inclui a projeção do documentário.

O projeto Acervo Eglê conta com recursos do Edital do Fundo Municipal de Cultura de Florianópolis (0623/21), é realizado pela Ombu produção e tem parceria cultural do IDCH/Instituto de Documentação e Investigação em Ciências Humanas, onde o acervo será acondicionado, Centro de Ciências Humanas e da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e Instituto Meyer Filho.

Serviço

O quê: Homenagem aos 95 anos de Eglê Malheiros em Florianópolis, com exposição e sessões de documentário.

Quando: 12 de julho, quarta-feira.

Local: Museu Da Escola Catarinense (MESC) – Rua Saldanha Marinho, 196, Centro, Florianópolis.

Abertura da exposição:  às 17 horas, no hall de entrada do MESC.

Sessões do documentário: às 18 e às 20 horas. Cada sessão comporta 70 pessoas e a entrada será gratuita, por ordem de chegada com distribuição de senhas.
Classificação do documentário: livre.

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  • Daniela Valenga

    Jornalista dedicada à promoção da igualdade de gênero para meninas e mulheres. Atuou como Visitante Voluntária no Instit...

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