“É um trabalho de cunho político. É muito importante reconquistar a terra que o Estado está pedindo de nós como reintegração de posse”, ressalta a indígena.

A primeira indígena do Brasil a defender um título de pós-graduação na área de Arqueologia foi premiada por excelência em pesquisa no mês de novembro pela Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB). Walderes Coctá Priprá é mestra em História (PPGH) pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), orientada pela professora doutora Juliana Salles Machado Bueno, e graduada em Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica (UFSC).

O Povo Laklãnõ/Xokleng vive atualmente no Alto Vale do Itajaí (SC), em dez aldeias, com uma população estimada em 2.500 pessoas. O território está entre os municípios de José Boiteux, Doutor Pedrinho, Vitor Meireles e Itaiópolis, onde a pesquisa foi realizada.

Uma parte desse território ancestral do Povo Laklãnõ/Xokleng está em disputa, pois o governo do estado de Santa Catarina protocolou um pedido de reintegração de posse ancorado na tese do “marco temporal”, segundo a qual os direitos indígenas às terras ocupadas seriam revisados e estabelecidos a partir de 1988, logo após a Constituinte.

Segundo o artigo n° 231 da Constituição Federal, é dever do Estado reconhecer “aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las”. 

Neste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu início ao julgamento do pedido, um marco na história da demarcação de terras indígenas do Brasil, visto como uma das maiores mobilizações do Movimento Indígena na atualidade. Como consequência, a aprovação do pedido poderá embasar outras decisões judiciais de acordo com interesses políticos regionais, o que está trazendo muitas preocupações aos Povos Indígenas, já que a proposta é inconstitucional.

Em entrevista ao Portal Catarinas, Walderes Coctá Priprá, do Povo Laklãnõ/Xokleng, moradora da Aldeia Bugio, nos contou seus planos para o futuro e afirmou que o prêmio é muito significativo para o seu povo, pois, de forma coletiva, estão contando a própria história por meio dos locais de memória revelados pelas pessoas mais velhas da comunidade.

CATARINAS – O que motivou você a fazer uma pesquisa na área da arqueologia? Como foram os resultados da pesquisa? Como foi a construção de seu projeto?

WALDERES: O que me motivou a fazer a pesquisa na área da arqueologia é que existem muitas coisas relacionadas ao Povo Laklãnõ, há muitas histórias, mas essas histórias não especificadas na vivência do povo que a historiografia e a arqueologia trazem como do grupo Jê do Sul. Então, eu sentia essa necessidade de escrever a história do Povo Laklãnõ, principalmente na área da arqueologia. É isso que me motivou a estudar na área da arqueologia. Agora, estamos com o projeto de doutorado e se der tudo certo eu vou me especializar mais ainda na área da arqueologia e, dessa forma, ajudar o meu povo porque a gente precisa muito de historiadoras/es, arqueólogas/os, antropólogas/os, médicas/os, dentistas, a gente precisa de muitos profissionais. Então, os nossos anciões sempre nos incentivam.

O meu projeto foi desenvolvido junto com os anciões na roda de conversa que temos aqui na aldeia. Nessas conversas eu sempre via a necessidade de registrar esses locais de acampamento, locais de memória do Povo Laklãnõ. Os anciões falaram que a intenção era mapear os nossos locais e eles mesmos se disponibilizaram a caminhar junto. Foi assim que surgiu o meu projeto de fazer esse levantamento dos locais de memória.

Eu sou professora desde muito jovem já, comecei a trabalhar como professora na escola Vanhecú Patté desde os 18 anos, trabalhei muito tempo ali, comecei em 2004. Eu sempre vi a necessidade de escrever a história do Povo Laklãnõ. Eu sempre fui apaixonada pela história do Povo Laklãnõ, que é o meu povo, e foi isso que me motivou a estar fazendo o curso de História. Quando eu terminei o meu curso de Licenciatura Intercultural Indígena Sul da Mata Atlântica (UFSC) eu não fui direto para a pós, esperei porque eu queria fazer dentro da área da História. Quando surgiu a oportunidade, mergulhei de cabeça.

Os resultados da pesquisa vieram também em razão das conversas com os anciões aqui dentro da Terra Indígena. Eu conversava com eles em rodas de conversa. Dentro do meu trabalho eu não trago essa metodologia como “entrevistas”. Toda vez que eu escrevia alguma coisa no trabalho eu sempre retornava para eles perguntando se era daquele jeito. Foi um trabalho bem colaborativo mesmo. Eles mesmos gostaram do resultado. Fiquei bem feliz porque através das nossas conversas eu consegui mapear, consegui chegar em alguns lugares que são pontos importantes. Ainda tenho muita coisa para fazer em relação ao trabalho, mas neste momento estou feliz pelo resultado que a gente tem conseguido.

CATARINAS – Quais os maiores desafios para uma estudante, pesquisadora e professora indígena?

WALDERES: Sou mãe e tive que deixar a minha filha, em 2018 eu  tinha somente uma filha, e em 2019 tive um menino. Para mim foi bem difícil deixá-los, mas ao mesmo tempo eu sabia que eles estavam sendo bem cuidados. Então o desafio foi ficar fora da Terra Indígena, me adaptar ao mundo não indígena, até porque eu nunca tinha morado fora da Terra Indígena. Eu nasci e cresci dentro da Terra Indígena, dentro da Aldeia Bugio. Ter que viver de um modo que a gente não vive para mim foi bem desafiador. E também cumprir aquela carga horária de leitura que era uma coisa que na graduação a gente não tinha. Mas eu consegui, sou bem focada e conseguir os resultados para mim foi bem importante.

CATARINAS – Quais os planos para o futuro com a finalização da pesquisa?

WALDERES: O meu plano para o futuro é fazer o doutorado, estou finalizando o meu projeto para enviar a algumas universidades que já abriram inscrição. A minha intenção maior mesmo é estudar na Universidade de São Paulo, é meu sonho. E dando certo eu vou estudar arqueologia. Acho que vai ser um trabalho bem legal e vou dar continuidade ao que já venho desenvolvendo com a minha comunidade.

Eu só tenho a agradecer por esse momento e essas oportunidades. A gente também tem que aproveitar porque não é sempre que temos oportunidade para falar da nossa história, falar do Povo Laklãnõ. Então, para mim é sempre importante. Eu sou bem agradecida mesmo por mais esse momento.

CATARINAS – Como você ficou sabendo do prêmio? Qual o significado que esse prêmio tem para você?

WALDERES: Sou associada à Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB), onde foi feita a divulgação das pessoas que haviam ganhado a premiação da graduação, do mestrado e do doutorado. A gente estava na reunião de votação e foi nesse momento. Eu fiquei muito feliz. Eu não tenho palavras para dizer sobre o momento. Primeiro eu falei para a minha família. Estava no meu quarto, gritei para minha mãe e para o pessoal que estava aqui em casa que eu tinha ganhado, e todo mundo queria ver. Passou e eu fui conversar com alguns anciões. Um ou dois dias depois já começou a ser divulgado e várias pessoas começaram a compartilhar. Eu lembro que eu tinha ido na casa do Seu João Patté, estava conversando com ele, falando que o nosso trabalho tinha rendido um prêmio e ele ficou super feliz, o pessoal comentando nas casas dos anciões que eu ia falar do prêmio.

Na verdade, esse prêmio não foi uma conquista só minha, foi uma conquista do meu povo. Então eu compartilhei com todos assim esse momento, porque para nós foi um momento bem ímpar. Eu fico super feliz de ver a felicidade nos olhos deles, dos anciões, para mim foi o mais importante. E vendo como eles receberam a notícia foi muito bom, eu fiquei bem feliz mesmo de poder contribuir com a história do meu povo.

CATARINAS – Qual a importância de sua pesquisa para o seu Povo Laklãnõ/Xokleng?

WALDERES: O Povo Laklãnõ é um povo único no Brasil. Os Kaingang a gente vai encontrar em São Paulo, no Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul. Já o Povo Laklãnõ não. Você vai encontrar somente aqui em Santa Catarina, aqui no Alto Vale do Itajaí. É muito importante para nós poder contar a nossa história, a nossa visão, porque até hoje a história que foi contada foi o não indígena falando sobre nós. É um momento que nós temos a oportunidade de falar de nós mesmos. É muito importante para o povo e sempre foi um incentivo dos nossos anciões pra gente estudar e retornar para a Terra Indígena para de alguma forma apoiar o nosso povo.

A importância do meu trabalho é levar a história do Povo Laklãnõ para fora de Santa Catarina, para os outros estados e, se possível, até fora do país. A gente sabe que está vivendo uma conjuntura política muito ruim para os Povos Indígenas, onde nós temos no centro da discussão, o Povo Laklãnõ, a questão do pedido do Estado de Santa Catarina para que a gente devolvesse as terras de uma área onde era chamada de FATMA, hoje denominado Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA/SC).

Clique aqui e leia a matéria sobre o adiamento da votação da tese genocida do marco temporal. #MarcoTemporalNão #DemarcaçãoJá

Esse meu trabalho mostra que esses locais onde o Estado diz que não é do Povo Indígena a gente sabe que é porque está registrado, porque tem história, e não é só o Povo Laklãnõ que diz, tem outros historiadores também que falam. É um trabalho também de cunho político. Então, isso é muito importante para nós e a gente vai conseguir, com certeza, reconquistar a terra que o Estado está pedindo de nós como reintegração de posse.

Falando da PL 490, isso tem tirado o sono de muitos Povos Indígenas, inclusive o nosso, é um Projeto de Lei inconstitucional e isso tem prejudicado muito a nossa comunidade. Essas histórias, esses trabalhos, não só o meu, vários outros trabalhos desse povo que está saindo das universidades com certeza vão ajudar e muito.

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  • Vandreza Amante

    Jornalista feminista, antirracista e descolonial atua com foco nos olhares das mulheres indígenas. A cada dia se descobr...

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