Na reportagem que publicamos nesta segunda-feira em parceria com o Intercept, mostramos que mais uma vez o sistema de saúde e de justiça se apresentam como obstáculos para a garantia do direito ao aborto legal. Trazemos o caso de uma menina de 12 anos que vive na zona rural de Teresina, na mais extrema vulnerabilidade social e econômica, que está na segunda gestação, engravidada pela primeira vez aos 10 anos. Neste exato momento, Bebel* é obrigada a gestar mais uma vez, mas não somente, abrigada junto com o bebê de um ano, ela também é forçada a maternar.

Antes de ir para o abrigo, Bebel dormia no mesmo quarto em que o agressor, na casa da avó, com quem morava. O mesmo agressor que a estuprou e a engravidou dois anos antes e que possivelmente continuou a abusá-la. O processo criminal, no entanto, estava arquivado e só foi reaberto em função da segunda gestação. Mas esse agressor não é o único, há pelo menos mais um, mas pode haver mais.

Esse sistema que negligenciou a justiça para uma criança que então tinha 10 anos – violada sexualmente, obrigada a gestar, parir e depois a maternar –, é o mesmo que repete a dose. Porque afinal, se pariu uma vez, pode parir novamente. Ela pode suportar mais um pouquinho, a exemplo do caso de Santa Catarina, para entregar à adoção. Assim profetizam. 

Na cena relatada pelas fontes há autoridades públicas que se orquestram para que o aborto legal não seja um direito: não para ela, pobre, negra, reiteradamente estuprada. Há a médica que desencoraja os pais a autorizarem o direito, que vai até o abrigo tentar convencer a menina a não aceitar o procedimento, há a defensora que intercede em defesa do feto, há a juíza que nomeia uma curadora para o feto. Há várias atrizes e atores que deveriam proteger essa menina, mas não fazem, porque para eles há mais vida no feto, como já cantou Caetano.

“Tia, me tira dessa situação, como eu faço para sair dessa situação?”, disse Bebel à conselheira tutelar ao saber da gravidez.

Sua súplica, diante da nova interdição que representa a gravidez, não foi ouvida. Seu motivo mais que nobre: resgatar o que lhe foi tomado de assalto na primeira gravidez e voltar à sala de aula. Diante das negativas que se somavam, a menina começou a se automutilar e, segundo relato, tentou suicídio. O sofrimento mental dessa criança é proporcional às violências que sofreu. Foram tantas. Frente a tudo isso, prevaleceu a tese da defesa do nascituro, de uma figura jurídica que não existe na legislação brasileira, mas que persiste para violar direitos de meninas como essa, que vivia na pobreza extrema, levada a dormir com o violador e que tinha pouca ou quase nenhuma possibilidade de vencer a sina das ausências de tudo.

O estudo “Investigação sobre a inter-relação e vínculos entre violência sexual e morte de meninas e adolescentes na região da América Latina e Caribe (2010 – 2019)” faz uma relação entre violência sexual de crianças, negação do aborto legal, mortalidade materna, desparecimento e suicídio de meninas na região como parte do ecossistema da violência feminicida. “Crianças e adolescentes que sofrem violência sexual em muitos casos são estigmatizados, marginalizadas e excluídas. (…) É assim que isoladas material e moralmente, vítimas de múltiplas violências que engravidam em decorrência de violação, as crianças e adolescentes às vezes vão da ideia suicida para consumação”, diz trecho do levantamento realizado pelo Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher.

Diante dessas violações perpetuadas por agentes públicos que deveriam resguardar, entre outros, os direitos fundamentais da menina à dignidade humana e à vida livre de discriminação e violência, dez organizações denunciaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Como denunciam, a situação é emblemática de um contexto de casamento e gravidez forçados no estado do Piauí, uma realidade que atravessa o país. O Estado brasileiro — que tem agora um governo federal progressista — por meio de suas autoridades, é chamado à responsabilidade e a não compactuar com a violência sexual, gravidez forçada, tortura de meninas e suicídio, que fazem parte do continuum da violência feminicida, como mencionado no estudo.  

Depois de tanto sofrimento psíquico, a justiça recebeu o consentimento da menina para manter a gravidez e entregar o novo bebê à adoção. Sabemos como tem sido historicamente a política de adoção no país marcado pela brutal desigualdade social e racismo estrutural: a de transferir bebês de famílias pobres e pretas para famílias brancas e ricas. Por isso, há também, para além do machismo e da misoginia, o caráter racial e de classe operando para distanciar essa criança dos direitos mais elementares. 

Mais uma vez a vítima de estupro é revitimizada e descredibilizada. É minha também a revolta de Rosemary Farias, advogada, integrante da Frente Popular de Mulheres Contra o Feminicídio do Piauí e do Coletivo Advocacia Popular Piauiense, que atuou bravamente neste caso. “Não tem lógica apoiar uma decisão judicial em cima do consentimento de alguém que não não tem força para consentir. Uma criança no estado totalmente vulnerável, abalada emocional e psiquicamente. Ou seja, as autoridades constituídas estão jogando a responsabilidade para a própria vítima. A vítima é culpada. Nós somos sempre culpadas por sermos violentadas. É como se dissessem: nós não estamos fazendo porque você não quer”.   

Ao obrigar uma criança estuprada a gestar, parir e maternar, mesmo colocando em risco sua vida, servidores do Estado, que deveriam protegê-la, são corresponsáveis pela tortura imposta a ela.

Bebel sonha em voltar a estudar, mas foi medicada para esquecer de si. Sua existência e transcendência são esmagadas como baratas em uma vida totalmente destituída de humanidade – tal qual narrou a escritora Scholastique Mukasonga no livro Barata sobre os massacres em Ruanda. 

“De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público?”, perguntou Judith Butler em seu livro Vida Precária. Certamente não é a vida desta menina de 12 anos, negra e empobrecida, estuprada e engravidada duas vezes em um único ano. “Parte do que nossa dor diz ― se a dor falasse ―, parte do que essa dor implica, é que as vidas que foram perdidas deveriam ter tido a oportunidade de viver, de aspirar a uma vida que não fosse de sofrimento contínuo e deslocamento, mas uma vida vivível, uma vida que permitisse que uma pessoa amasse a vida que lhe foi dada viver”, escreveu Butler na obra sobre a construção social da sub-humanidade. 

Bebel merece viver e ter uma vida em plenitude. 

*Nome fictício adotado neste editorial para garantir-lhe personalidade e humanidade.

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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