Não é não! A campanha contra o assédio sexual no carnaval, que segue em financiamento coletivo até 16 de janeiro, mal chegou a Santa Catarina e teve resultado imediato, evidenciando na arena pública que os homens não sabem a diferença entre assédio e paquera. Nem todo homem é fato, mas estamos diante de uma prática recorrente na sociedade, afinal quatro em cada dez brasileiras já relataram ter sido vítimas de alguma forma de assédio sexual, conforme pesquisa divulgada pelo Datafolha em 2017. Mais de 600 casos de importunação sexual foram registrados no estado em 2019, segundo informou a Coordenadoria das Delegacias de Polícia de Atendimento à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DPCAMIs).

Representante dessa parcela dos homens que não sabem que não é não, o deputado estadual Jessé Lopes (PSL), já conhecido por seus posicionamentos que evocam o ódio às feministas, usou das redes sociais para mostrar seu desconhecimento sobre a lei e sobre a cultura de violência contra as mulheres. Ele ainda não sabe que não é não. 

O assédio sexual, que passou a ser tipificado como crime de importunação sexual no artigo 215 da Lei 13.718/18, é caracterizado pela realização de ato libidinoso na presença de alguém e sem o seu consentimento. A pena para quem praticar este crime varia entre um e cinco anos de prisão. 

O parlamentar passa por cima da legislação ao afirmar em suas publicações que “assédio é direito das mulheres”, pois “massageia o ego, mesmo que não se tenha interesse na pessoa que tomou a atitude”. Para ele, a atuação do coletivo “parece até inveja de mulheres frustradas por não serem assediadas nem em frente a uma construção civil”. Tudo isso dito por um deputado do estado que ocupa o segundo lugar em taxas de tentativa de estupro e o terceiro em estupro, segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019.

A informação sobre os limites entre uma cantada e um assédio é central para o coletivo “Não é Não”, que há quatro anos, mesmo antes dessa classificação penal, atua em várias capitais do país para conscientizar as mulheres. “A gente lamenta que um parlamentar se posicione desta forma, é uma figura pública e deveria estar no governo em prol da nossa segurança. Um dos nossos objetivos é uma reeducação no sentido do assédio para que as pessoas compreendam a diferença entre assédio e paquera e que possamos combater isso de forma mais efetiva, de alguma forma trouxe o assunto à tona, ficou muito em evidência esse debate”, afirmou ao Catarinas a integrante do coletivo, Mari do Brasil.

Na última segunda-feira (13), o grupo divulgou a “Nota de apoio às mulheres”, na qual manifesta apoio e solidariedade a “todas as mulheres que, como nós, tiveram suas histórias de luta – e, por que não dizer, sofrimento – diminuídas pela fala pública de um parlamentar em suas redes sociais”.

Outra frente feminista que também manifestou repúdio à posição do deputado foi o 8M Brasil de Santa Catarina. “É inadmissível o posicionamento do referido parlamentar, que mais se indigna com as feministas do que com os horrores que sofrem as mulheres. Um deputado eleito deve procurar atuar de modo a proteger todos os cidadãos e cidadãs, zelando para que as leis sejam cumpridas e melhorando a vida da coletividade”, diz trecho da Nota de apoio à Campanha Não é Não.

O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDIM) também manifestou indignação com relação às falas do deputado e informou que vai buscar vias legais para que sejam tomadas as providências cabíveis. O órgão ainda reforçou que posicionamentos como esse “atrapalham a criação de políticas públicas efetivas de gênero”.

Outro posicionamento que merece destaque foi o longo editorial escrito pela editora Luciana Corrêa, editora chefe do Jornal do Almoço, da Rede NSC, e lido pela jornalista Laine Valgas ao vivo, após a reportagem sobre o caso exibida nesta segunda-feira. 

A Bancada Feminina da Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc), composta por cinco parlamentares, também se mobiliza para pensar formas legais de responsabilizar o deputado pela apologia ao crime. Ainda que a mobilização da sociedade civil em repúdio ao posicionamento do parlamentar esteja sendo orquestrada com competência, como acredita a deputada Ana Paula da Silva (PDT), ela defende que tal postura seja tratada também no âmbito jurídico. 

“O parlamento não pode fazer de conta que isso não existiu. Nosso objetivo é ir além da nota de repúdio, do confronto de visões, vamos fazer representação judicial na Comissão de Ética e onde mais for possível. Ninguém melhor que as mulheres do parlamento para representar toda a sociedade feminina, inclusive aquelas que não compreendem que precisam ser defendidas para dar um basta nesta situação”, afirma a deputada. 

Segundo explica, o primeiro compromisso de uma/um parlamentar é com o cumprimento das leis, o que Lopes tem ignorado em suas manifestações. “Não podemos fazer incitação ao descumprimento de leis, ainda mais quando tratam de agressão, algo que de fato vai trazer prejuízo irreparável na vida de alguém. O estímulo à violência que ele promove não pode ser tratado com um comentário banal, uma brincadeira, é a banalização de um crime, é quase um convite à promoção de um crime o que o deputado patrocina hoje da forma como se expressa”.

A manifestação de uma posição antifeminista não pode servir de pretexto para a incitação ao crime contra as mulheres, como assinala a parlamentar. “Ir contra o feminismo é direito, mas ele não pode de modo algum a esse pretexto estimular pessoas a cometerem assédio. É ridículo, fora de propósito, é desmerecer não só a história de luta das mulheres, é um sofrimento que está no nosso cotidiano”.

Paulinha já nos relatou situações de violência quando foi entrevistada pelo Portal sobre o linchamento a qual foi submetida nas redes por usar um vestido decotado no ato de posse. “Passei por situações de assédio que eu que me considero empoderada não soube como reagir, tem certas situações que são tão constrangedoras que a mulher fica congelada. Ponho-me a rever na minha memória todas às vezes que passei por isso, agora imagine mulheres que estão expostas a situações mais difíceis na sua vida”.

Em 2019 Santa Catarina registrou 59 casos de feminicídio, o maior número já reportado desde que o crime foi tipificado em 2015. Como lembrou o grupo 8M Brasil SC, toda violência contra a mulher começa quando um homem não aceita um não. “Tivemos 59 mulheres mortas em SC em 2019. Me choca que em 2020 alguém se posicione dessa forma frente a um assunto tão sério”, colocou a deputada.

Recentemente abordamos o ataque do deputado às feministas que participaram da performance “Um estuprador no teu caminho”, no qual ele recupera clichês históricos para ridicularizar o movimento. “Sinto muito por ele, porque é um cara que nunca se permitiu sentar para ter uma conversa franca e honesta com a própria mãe, tias, com as mulheres que convive porque não é possível, não dá para confundir assédio com paquera”, finaliza a parlamentar.

Foto: Coletivo Não é Não

A Campanha Não é Não
Com atuação na Bahia, Distrito Federal, Goiás, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo, no Carnaval 2020 o coletivo passa a ter presença também em Santa Catarina, Amapá, Espírito Santo, Paraíba, Piauí e Rio Grande do Sul. A ação consiste na distribuição e aplicação de tatuagens temporárias com a mensagem “Não é não!”. Durante a abordagem, as integrantes da Campanha oferecem a tatuagem e durante a aplicação explicam a intenção a iniciativa.

A campanha mobiliza embaixadoras locais para que organizem equipes de voluntárias e mapeiem coletivos feministas, blocos de carnaval e apoiadoras que tenham como foco oferecer um ambiente seguro às mulheres, garantir o respeito ao corpo, sua integridade física e liberdade. “A intenção do coletivo é de propor uma ação de reeducação em relação ao que é assédio, também de estabelecer e fortalecer uma rede de apoio para mulheres e de oferecer esse acolhimento para possíveis vítimas de assédio”.

Conforme argumenta a integrante, há uma crença fomentada pela cultura machista de que no Carnaval pode tudo, e o crime de assédio passa a ser justificado pelo fato de os foliões, de forma geral, estarem alcoolizados. “Não é porque é carnaval que se pode assediar as mulheres e isso é parte da nossa luta para que as pessoas entendam. As tatuagens são o meio, porque utilizamos o corpo, que é o principal alvo de agressões e assédio, como outdoor da nossa luta e também como uma identificação para que possa ser estabelecida uma rede de apoio para mulheres durante o carnaval, período em que estamos mais vulneráveis a esse crime”.

O financiamento coletivo é voltado para custear a confecção e distribuição de tatuagens temporárias. As artes trazem a mensagem do projeto — “Não é Não!” — e serão entregues gratuitamente às foliãs nos blocos de rua. A campanha para arrecadação dos recursos está disponível até a próxima quinta-feira (16 de janeiro) por meio da plataforma Benfeitoria.

“O maior resultado é perceber que as mulheres estão cada vez mais empoderadas e mais cientes das possibilidades e dos seus direitos e do quanto de respeito nós merecemos e a consciência de que assédio é crime”, relata a integrante. 

Criada em janeiro de 2017 pelo grupo de amigas Barbara Menchise, Aisha Jacob, Julia Parucker, Nandi Barbosa e Luka Borges, o movimento teve início após um episódio de assédio sofrido por uma delas em um ensaio de bloco de carnaval. Naquele ano foram mobilizadas 40 mulheres que se uniram na arrecadação de R$ 2.784 em apenas 48 horas, que foram usados para a confecção de 4 mil tatuagens, distribuídas gratuitamente pelas ruas da cidade. Hoje o grupo conta com embaixadoras em 16 estados brasileiros e segue crescendo, espalhando a mensagem contra o assédio pelos quatro cantos do país.  

O ridículo político
Quando vemos um parlamentar ter a coragem de defender publicamente a prática de um crime que tem gênero entendemos a dimensão da cultura machista, a qual também chamamos de cultura do estupro, em que o homem subjuga o corpo da mulher a ponto de não de respeitá-la em sua decisão mais íntima. “A importância da campanha é confirmada porque não se trata só de um ‘equívoco’ desse tipo de homem, mas de uma posição pública e uma atuação política empenhada em naturalizar agressões e constrangimentos contra mulheres. Não se trata, portanto, de uma posição inocente ou meramente ignorante, mas de um embate político que se disfarça e adota uma posição cínica: as ações graves e danosas ficam covardemente disfarçadas sob o manto da brincadeira ou da zoação – inclusive para escaparem de qualquer penalização criminal”, afirma Cristiane Brasileiro, integrante da PartidA.

O parlamentar se utiliza de um método pautado em ridicularizar pautas mais caras aos movimentos sociais a fim de gerar likes e repercussão nacional, a exemplo do presidente da República e de outras/os parlamentares bolsonaristas, reforçando a noção de “ridículo político”, desenvolvida pela filósofa Marcia Tiburi, em ensaios publicados como livro em 2017. “É, por um lado, uma ação política destituída de qualquer conteúdo de preocupação com os tantos problemas e dramas coletivos que o país vive. Nesse sentido, uma ação marketeira superficial e irresponsável, que transforma a política num ridículo dispensável – como já descrevia Márcia Tiburi há anos”, analisou Brasileiro.

Por outro lado, a entrevistada acredita que se trata também de uma ação política cujo conteúdo, se levado a sério, tente a interditar ainda mais a participação das mulheres na política. “Empenhado em naturalizar todo tipo de abuso e violência contra as mulheres, de fato uma de suas consequências é tornar o campo político completamente inóspito à atuação de mulheres comprometidas com as causas das mulheres. Ou seja:  mulheres que não se submetam a fazer papel de laranjas, capachos ou fantoches de homens endinheirados e sem escrúpulos”.

No recente artigo “Jessé Lopes é um bom deputado? Não é, não”, o jornalista Upiara Boschi faz uma análise do primeiro ano de mandato do parlamentar no esforço de ir além das “costumeiras polêmicas” e, conclui ao final, que ele não foi competente em nenhuma das métricas. De acordo com o colunista, o parlamentar apresentou três projetos de lei “em que dá vazão a suas obsessões”: obrigar alunos da Udesc a fazer exame toxicológico, permitir que agentes socioeducativos usem equipamentos de segurança e repressão, e vender as residências oficiais do governador e da vice-governadora. Também propôs duas emendas constitucionais uma pelo fim do recesso parlamentar, outra para retirar da Constituição a expressão “orientação sexual” no âmbito das obrigações do sistema estadual de educação.

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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