Em um dos estados líderes em violência doméstica e estupro, o decote da deputada estadual Ana Paula da Silva (PDT), a Paulinha, que tomou posse na última sexta-feira (1) na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) foi o assunto mais comentado sobre o evento nas redes sociais e até mesmo fora delas. Os discursos de ódio, mais precisamente de conteúdo misógino, tomaram tamanha repercussão que a Alesc emitiu uma nota de repúdio aos comentários ofensivos.

“Reforçamos que este tipo de visão não cabe mais em uma sociedade diversa, onde todo cidadão tem o direito de se expressar. E que o ataque a qualquer parlamentar é também um ataque ao Parlamento e, por consequência, à democracia”, disse a nota.

A assembleia também divulgou o código de vestimenta das/os parlamentares, descrito no Artigo 101 do Regimento Interno. Segundo o documento, deputadas/os, servidoras/es que assessoram a mesa e jornalistas credenciados devem usar “traje passeio completo”. Não há menção a decotes ou ao comprimento de saias.

“Fui prefeita por dois mandatos e sempre me vesti desse jeito. Algum tempo atrás quando eu consegui passar por cima de uma série de preconceitos que muitas vezes a mulher se autoimpõe por conta do que a sociedade espera e deseja de nós, eu decidi que não ia mais me sujeitar e deixar de me comportar e me vestir como desejasse”, afirma a deputada em entrevista ao Catarinas.

“Não quero ser sex symbol, tem dias que saio com calça, camiseta e sem batom, mas tem dias que quero sair mais deslumbrante, mais arrumada. É meu direito e tem que ser assegurado a todas as mulheres”, ressaltou.

A parlamentar conta que ao chegar em casa após a posse ficou assustada com os comentários em série na publicação da foto em sua página pessoal. Para os mais ávidos em defender a moral e os bons costumes de uma sociedade marcada pela desigualdade de gênero, a vestimenta da deputada poderia justificar até mesmo a violência sexual contra ela.

“Não me afeto com diferença de opinião, quando a gente se coloca na vida pública está sujeito ao julgamento. Pode até achar que minha roupa está imprópria, que não gostou, mas aí a chegar ao nível da agressão, de dizer que eu merecia ser estuprada, que se eu fosse estuprada não deveria abrir a boca para reclamar”, relata perplexa.

Paulinha está abalada com o que tem vivido desde a última sexta-feira. “Isso começa a perturbar de uma forma perversa. Não esperava que pudesse passar por um processo de violência como esse, nenhuma mulher se coloca num cenário para viver isso”.

Paulinha em diálogo com deputadas estaduais durante a posse/Foto arquivo pessoal

A deputada acredita que se as pessoas que a agrediram fossem questionadas fora desse contexto jamais admitiriam que têm posturas machistas. “O que ocorreu foi um ato de machismo: ‘tu és mulher, então aprende a te comportar, porque não pode andar vestida dessa maneira’. Passar por situação de rotulação por conta de um decote ou tamanho da saia é muito ridículo, estamos em 2019”.

Prefeita de Bombinhas por dois mandatos, Paulinha conquistou em 2017 o terceiro lugar no ranking de Governança Pública das Cidades Brasileiras, divulgado pelo Conselho Federal de Administração.

“O estado não se apropriou dessa grande vitória, porque eu sou mulher. Tudo isso que a gente edificou foi comigo assim, vestindo roupas curtas e decotadas às vezes”.

De acordo com sua experiência, mulheres que convivem em ambientes muito masculinos em algum momento se “violentaram em frente ao espelho”, ao abrir mão da roupa que queriam vestir por receio de parecerem indecentes. “A mulher já se coloca nesse processo de autorregulação, isso não é saudável. Pra me empoderar e defender pautas importantes para a vida das pessoas eu precisei passar primeiro por esse convencimento”.

Os agressores devem ser processados judicialmente, como informou a deputada. Um policial militar está entre os que proferiram comentários de ódio. A conduta foi relatada em documento enviado ao Comando Geral da Polícia Militar.

“Crime é crime, as pessoas não podem agredir as outras por conta de suas escolhas pessoais, orientação sexual ou religião. Essas atitudes criminosas têm que ser punidas, não vou abrir mão de representar e judicializar tudo que foi ofensivo”, afirma.

Ainda que os homens ocupem cerca de 90% das cadeiras legislativas, essa foi uma posse histórica no estado mais conservador do país, quando cinco mulheres assumiram seus mandatos – uma a mais do que ano passado. Paulinha foi a quinta parlamentar mais votada. Em toda a história do parlamento catarinense, foram eleitas somente 17 mulheres.

“O julgamento às mulheres pela forma como se vestem é absolutamente cruel. Isso se dá porque a nossa representação é tão minúscula que quando a mulher chega acaba destoando. Tem gente que disse que a roupa não é apropriada para o trabalho, mas era uma sessão solene, e em solenidade, veste-se de forma mais festiva e colorida. Existem muitas mulheres que gostam de decotes, não sou diferente de nenhuma delas”, pontua.

Para uma análise completa sobre compostura nos espaços públicos há que se colocar os homens também sob a mira do mesmo julgamento ao qual as mulheres estão expostas, defende. “Falando de postura e etiqueta, quantos deputados a gente vê com a gravata pelo meio da barriga ou o botão quase estourado, um cinto apertado mal colocado, muito para baixo ou para cima. Ninguém fala nada, por que as mulheres têm que ser objetos de estudo em sua vestimenta?”.

Feminista, a mais nova parlamentar da Alesc acredita que o episódio é uma oportunidade para a sociedade refletir sobre seus valores machistas, principalmente no estado que tem a segunda maior taxa de violência doméstica contra as mulheres, o primeiro em tentativa de estupro e o segundo em estupro, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018.

“Vivemos uma onda de conservadorismo que tem patrocinado essa violência nas redes. Quando a violência acontece precisa ser rompida e a gente tem que dar uma resposta à altura. Como catarinense penso sobre o quanto a gente precisa vencer desafios para construir essa equidade de gênero”.

Corpos invasores de espaço de poder

Para a primeira vereadora de Florianópolis, a feminista Clair Castilhos, a repercussão da roupa da deputada não passa de “puro machismo e preconceito”. Enquanto vereadora, Castilhos também precisou conviver com críticas em relação à sua vestimenta – calça jeans e sandálias – por configurar quebra de decoro para alguns. “Eu dizia ‘falta de decoro são as asneiras que vocês dizem na tribuna’”, conta.

“As pessoas têm o direito de se vestirem como se sentirem bem. O regimento não prevê nada sobre a roupa das mulheres porque não estão habituados à nossa presença nestes espaços. Eles têm que se acostumar no executivo e legislativo ao jeito que gostamos de nos vestir”, defende a feminista.

Ainda segundo a ex-vereadora, a imoralidade a ser verificada numa casa legislativa não está propriamente visível aos olhos. “É uma puta hipocrisia, enquanto aqueles homens de terno absolutamente formais fazem tudo que é sorte de coisas indecentes, imorais e corruptas por trás. Por conta de uma presença que supostamente está fora do padrão normativo da casa causa espanto. O que tem que causar espanto são as ilegalidades que ocorrem lá dentro e quem ninguém averiguou”.

“Antes da roupa é a presença dela que incomoda. A roupa é pretexto para falatório irrelevante sobre um corpo visto como não pertencente”, afirmou Joanna Búrigo, fundadora da Casa da Mãe Joanna e mestre em Gênero Mídia e Cultura.

Segundo a especialista, um Tweet da recém empossada deputada federal (PSOL-RJ) Talíria Petrone sustenta a tese. A parlamentar declarou que já no primeiro dia mais de uma vez tentaram impedi-la de passar em lugares “exclusivos para deputados”.

“Também apoia esse pensamento a fixação de certos republicanos estadunidenses com a congressista Alexandria Ocasio-Cortez, por exemplo, que independe de suas roupas”, destaca.

Conforme contextualiza Búrigo, a socióloga e professora Nirmal Puwar afirma que corpos femininos e/ou não brancos que emergem em espaços de poder são considerados “invasores de espaço”, porque suas meras presenças perturbam o status quo, que é masculino e branco. “A inclusão de uma pluralidade de identidades nestes espaços chacoalha suas fundações, e não é à toa que lideranças negras, LGBTQI e femininas incomodam a ponto de serem sistematicamente proscritas desses espaços”, analisa.

Para além da baixa representatividade das mulheres na política institucional, Tainá de Paula, arquiteta e ativista da Partida, avalia que o momento político do país caracterizado pela alta polarização tende a vulnerabilizar ainda mais os corpos femininos. Ela defende o autocuidado como ferramenta fundamental para as mulheres se preservarem nesses espaços.

“O que essa conjuntura do Bolsonaro coloca como desafio, até para exercitar nossa interseccionalidade, é que todas as mulheres estão no mesmo pé, não têm mais direitos. Do ponto de vista democrático, todo mundo está tendo seu direito negado. Num estado de exceção que direito e liberdade sobre o próprio corpo você tem para usá-lo como instrumento político?”, questiona a ativista.

Atualizada às 17h41 de 5 de fevereiro.

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