Em uma manhã fria, logo cedo, estava aguardando sentada com o meu notebook, uma manta e uma xícara de café preto puro, o meu momento de fala. A minha responsabilidade era apresentar sobre o Instituto Rebbú e as atividades inovadoras que estamos realizando para uma mesa composta por pessoas de entidade política, organizações da sociedade civil e corpo docente e discente de uma instituição particular de ensino do estado do Ceará. O ambiente era formal, as questões de diversidade foram logo postas no início, era fundamental a autodescrição para inclusão de pessoas com baixa ou nenhuma visão e aparentemente, estava no script usar a palavra “todes”. Digo script, porque muitos falaram: “bom dia, todes”, até que uma pessoa, quis se explicar melhor:

“Bom dia – pausa – a – pausa – todes. Todes – pausa – para – pausa longa – garantir a – pausa – a diversidade” 

Eu, como uma pessoa expressiva, não consegui esconder o meu susto diante da câmera. Parecia que a pessoa havia sido obrigada a falar aquilo, porque ela não conseguia pronunciar e mesmo assim, teve que justificar com muita dificuldade porque estava dizendo a palavra todes. 

Imediatamente passou um filme na minha cabeça. A linguagem neutra já existe há mais de 10 anos, começou com “x” e o “@”, sendo fortemente censurada por não incluir pessoas com deficiência, já que softwares de leitura inclusiva não compreendem o “@” (não possui som no português) e como o “x”  substitui a vogal, não forma o conceito de sílaba. Então, o “e“, nos últimos anos passou a ganhar força como um potencial substituto para inclusão de pessoas não binárias e transgênere, ou seja, incluir pessoas que questionam o tradicional binarismo ele ou ela. 

Na teoria, problema resolvido, pois Ela e Ele, tornam-se ELU. 

Dela e Dele > DELU.   

Todas e Todos > TODES. 

Como tudo na vida, nada é igual na teoria. Seres humanos são complexos, e logo que a solução do “E”, passa a se tornar popular, os ataques foram e continuam constantes: 

Estão matando a língua portuguesa! Já houve uma revisão ortográfica! Homem é homem, com o, e mulher é mulher com a! 

A reforma ortográfica, para mim, foi um processo. Auto-retrato passou a ser autorretrato, mas bem-vindo, continuou com hífen! Bugou, gente. Confesso que até hoje preciso dar um google para ter certeza como escrever algumas palavras. Mas sobrevivemos! 

Agora, já adicionar o “e”, é tão mais simples, mas incomoda muita gente. Assim como o todas incomoda, menos que o todes, mas também incomoda. 

A verdade é que dar protagonismo e direito às pessoas invisibilizadas, é o que incomoda. Porque quando a palavra TODES é dita, significa dar o mínimo de respeito a como um grupo decidiu ser chamado por uma luta política, social e de direitos humanos. Quando você não consegue falar a palavra ELU, precisa de pausas, soa frio ou sente raiva, sinto lhe informar, mas essas sensações dizem respeito a você. E isso me preocupa demasiado, afinal, se não conseguirmos avançar no português, quem dirá nos outros direitos. Não sei você, mas estou bem cansada de ver gente morrendo por transfobia e dos ataques transfóbicos na internet. De onde vem tanto ódio? 

Meu nome é Juliana, sou uma mulher branca, cisgênero e pansexual. Gosto de ser chamada pelo meu nome, pelos pronomes femininos e fico desconfortável quando erram. 

Todos não me representa.

O homem ir à lua não me representa.

Porque no momento das conquistas, da remuneração e do reconhecimento intelectual, o masculino é priorizado. Não somos iguais, somos diferentes e partimos de condições socioeconômicas diferentes e percorremos caminhos diferentes, a partir disso, cada pessoa merece, minimamente, escolher como quer ser chamada. 

Eu finalizo este artigo mais cansada de quando comecei. Parece tão óbvio falar que gostaria de um mundo mais colorido, diverso, com mais as, es, us e mais colaboração. Mas é tão difícil executar isso na prática. 

Sei lá, queria poder falar ELU sem receber uma palestra depois de algum “intelectual” sobre como eu matei o português e sem risos irônicos. Queria poder andar livre de mãos dads com a minha parceira em qualquer lugar do Brasil. Queria poder se casar, adotar, ter licença maternidade, levar as crianças na escola, trabalhar, enfim, ter uma vida tranquila, sem ser questionada, ofendida e sem ter sempre que andar com medo e à procura de uma advogada. 

Se eu queria isso, imagine os TODES. 

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