“Sexo ruim é uma questão política, de desigualdade no acesso ao prazer”, escreve a escritora britânica Katherine Angel, problematizando as noções liberais de consentimento. Em “Amanhã o sexo será bom novamente”, livro publicado pela editora Bazar do Tempo, a autora defende que as relações sexuais são atravessadas por dinâmicas de poder, e a desigualdade social também se manifesta na cama. 

Angel é graduada em Filosofia, com PhD em História da Psiquiatria e Sexualidade pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Ela vive em Londres e escreve para veículos como o The Guardian. “Amanhã o sexo será bom novamente” é seu terceiro livro, e o único traduzido para o português – a tradução é de Rita Paschoalin. 

Em 28 de outubro às 15h, a Bazar do Tempo fará uma conversa sobre a obra com as jornalistas Cristina Fibe e Renata Izaal, na Primavera dos Livros, no Rio de Janeiro. 

Em entrevista ao Portal Catarinas, Katherine Angel explica por que um conceito legal não dá conta de garantir um bom sexo. Segundo a autora, o sexo consentido também pode ser doloroso, humilhante, perturbador ou simplesmente ruim. 

Jess Carvalho: Você diz que sentiu um arrepio quando publicou seu primeiro livro sobre sexo. Sentiu o mesmo com a publicação deste novo livro? Como escrever sobre sexualidade afeta sua vida cotidiana?

Katherine Angel: Sempre é angustiante ter um livro publicado. Uma vez que está disponível, você tem que deixá-lo seguir seu caminho. As pessoas farão o que quiserem com ele – o que é empolgante, mas também causa ansiedade. Fiquei muito satisfeita com a recepção de “Amanhã o sexo será bom novamente”; parece ter ressoado com muitos tipos diferentes de pessoas em diferentes espaços políticos e culturais. Tive algumas conversas maravilhosas desde que o livro foi lançado.

Muita de sua teoria gira em torno de uma crítica à cultura do consentimento. Você pode explicar às nossas leitoras por que acredita que o consentimento, uma palavra frequentemente usada pelos movimentos feministas, pode ser perigoso para as mulheres?

O consentimento é crucial e é o mínimo necessário. Devemos ter relações sexuais apenas com pessoas que sabemos que desejam ter relações sexuais conosco. Também é vital continuar insistindo nisso, uma vez que vemos ao nosso redor a quantidade de violência, coerção e assédio que existe.

Minha crítica se concentra em uma tendência que vejo no discurso de abordar principalmente as mulheres e instigá-las a conhecer seu próprio desejo claramente e comunicá-lo de forma clara aos parceiros sexuais. O problema disso é que pode ser muito difícil para as pessoas dizerem não claramente – pois isso pode desencadear violência – e também é desafiador dizer sim claramente.

Isso ocorre porque as mulheres são rotineiramente envergonhadas e punidas por expressar desejo sexual e porque o desejo nem sempre está prontamente acessível para nós. Insistir que as mulheres sejam de uma maneira específica sexualmente – confiantes, claras, conscientes – para que estejam seguras da violência me parece como colocar um fardo excessivo sobre um ideal que as mulheres devem cumprir. E quando instamos as mulheres a cumprir um ideal, sabemos o que acontece quando elas não o cumprem: são punidas. Também sou muito cética em relação ao investimento excessivo em um conceito legal como forma de resolver os problemas muito complexos sociais, políticos e relacionais do sexo. Precisamos acertar a lei, mas um conceito legal não permitirá um bom sexo.

Você também escreve sobre como a cultura da confiança pode ser perigosa para o feminismo, porque a partir daí começamos a classificar sentimentos como ansiedade e falta de confiança como menores e abjetos, embora sejam respostas naturais a uma cultura patriarcal que nos coloca em posições de medo e desconfiança. Como, então, incentivar outras mulheres a construir segurança de maneira acolhedora?

Não gosto de um suposto discurso feminista que fetichiza a ideia da mulher “confiante”, porque geralmente se transforma em um instrumento para julgar as mulheres quando não atingem esse ideal. Pode ser muito fácil dizer: bem, ela não foi clara/confiante o suficiente, então só tem a si mesma para culpar… Também está fundamentalmente entrelaçado com um discurso neoliberal de sucesso individual em detrimento do pensamento coletivo sobre a vida social. Também não sou a favor de qualquer fetichização da vulnerabilidade. Mas o que vemos em tantas conversas sobre violência sexual e sexo ruim é a necessidade de manter a figura da mulher “machucada”, abjeta e ferida fortemente afastada. Isso decorre do desejo coletivo de nos tornarmos menos vulneráveis à violência. É uma resposta compreensível. Mas isso nos ajuda? Eu não acho.

Em certo ponto, você argumenta, citando Emily Owens, que o apego ao consentimento é uma fantasia liberal. Você acredita que o consentimento e a confiança são pautados, com maior força, pelo feminismo liberal? Como você observa a interação de diferentes correntes do feminismo com essas duas palavras-chave?

A ênfase no consentimento deriva diretamente de uma história de pensamento liberal, que, embora tenha seus méritos, parte de um cenário idealizado de dois sujeitos (homens, brancos) de poder igual, trocando contratos e bens. Não deve ser surpresa que o conceito de consentimento não esteja completamente equipado para nos ajudar na complexa paisagem desigual do sexo contemporâneo. O que é ruim no sexo ruim não é capturado pela conversa em torno do consentimento.

Muitas vezes, o sexo consentido é doloroso, humilhante, perturbador, “ruim”, por razões relacionadas à desigualdade e ao desequilíbrio de poder. Precisamos ir além das noções liberais de consentimento se quisermos compreender o que é importante e político sobre os vários tipos de sexo ruim que as pessoas experimentam.

O que você pensa sobre a relação consentimento-confiança em relacionamentos não heteronormativos?

“Amanhã o Sexo Será Bom Novamente” foca, em certa medida, em questões de poder e violência entre homens e mulheres, e nas normas de masculinidade que agravam os problemas nos homens heterossexuais. Mas grande parte do que tenho a dizer se aplica de forma geral, independentemente do gênero. O sexo é uma área de vulnerabilidade e risco para qualquer pessoa (incluindo homens), e o poder opera de várias maneiras em diversos tipos de relacionamentos. Precisamos pensar de forma mais ampla e imaginativa sobre o que todos nós trazemos para o sexo – nossas esperanças, medos, histórias e as normas e contextos sociais em que estamos inseridos – se quisermos tornar o sexo um espaço satisfatório, excitante e seguro para todos.

O que é fundamental para fazer o sexo ser bom novamente?

Começar a partir da realidade em vez de a partir de ideais. Começar com o conhecimento de que todos somos vulneráveis no sexo e que desequilíbrios de poder e normas de gênero moldam todos os nossos encontros sociais, incluindo os sexuais. Se pudermos abraçar o medo e o risco universais que o sexo implica – e se pudermos fazer o sexo importar menos – podemos abrir uma porta para mais prazer.

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  • Jess Carvalho

    Jess Carvalho é jornalista e pesquisadora da bissexualidade. Atua como editora, repórter e colunista no Portal Catarinas...

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