Ser feminista é questão de sobrevivência no Brasil que mata meninas
Engana-se quem acredita que homens sem poder na estrutura social não exercem dominação masculina.
Renunciar à luta pela igualdade de gênero no Brasil, quando somos um dos países com maior número de mulheres e meninas assassinadas pelas mãos masculinas, é, no mínimo, covardia. As mulheres negras são as principais vítimas de feminicídio. São também as meninas pretas e pardas que mais sofrem com o abuso sexual. As garotas empobrecidas estão sendo devoradas todos os dias. A vulnerabilidade em que se encontram as faz presas fáceis de homens de todas as raças, classes sociais e idades.
Uma delas, de dez anos, foi violentada e morta a facadas pelo amigo do irmão, em Campinas, em novembro de 2024. As circunstâncias do crime são reveladoras da fragilidade social em que a vítima se encontrava, aproveitadas pelo seu assassino. O amigo do irmão passou na casa onde a vítima morava para irem juntos à escola.
No caminho, desistiu, pois percebeu que a menina ficaria sozinha, e voltou para cometer o crime. O fato interessante é que o crime já estava desenhado na mente, e a oportunidade apareceu.
O que isso nos revela? Que garotos, homens, idosos estão apenas esperando o momento de saltar em cima da presa. Pode ser uma menina a caminho da escola numa rua pouco movimentada, num quarto desacordada, num consultório sem os pais, na casa vazia da família.
Rita Segato, no livro Cenas de um pensamento incômodo, diz: “Aquilo que desperta o desejo é o ‘espetáculo do eu’ como dominador, como devorador de um alter nutritivo na busca por um posicionamento como sujeito de poder.” Este “eu” dominador de mulheres e crianças é forjado no processo de socialização quando, aos meninos, se ensina a virilidade, a violência, a ridicularização de meninas e mulheres, a utilização dos corpos femininos como objeto, a força e a agressividade como princípios da masculinidade, o comando. Enfim, que para existir, é preciso devorar.
Para os homens da base da pirâmide social, explorados à sua volta na sociedade de classe, a única recompensa no capitalismo é o poder sobre crianças e mulheres. E engana-se quem acredita que abrirão mão disso tão facilmente. Em 2023, um pedreiro que dormia na obra, ao lado de uma casa onde viviam uma mãe e suas três filhas, ao perceber que as mulheres estavam sozinhas, pulou o muro, abusou e assassinou todas elas. Engana-se quem acredita que homens sem poder na estrutura social não exercem dominação masculina.
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Uma menina de treze anos foi assassinada pelo pastor João das Graças Pachola, de 54 anos. Ele ofereceu-lhe carona e, segundo testemunhas, tinha esse costume com as adolescentes. Outra, indígena de 14 anos, foi brutalmente assassinada e teve o corpo mutilado por um homem de 33 anos. Outra, ainda, de 14 anos, pelo vizinho; uma de 9, pelo padrasto; uma de 7, pelo tio; outra pelo namorado da tia. Meninas não estão seguras nem nas ruas, nem nas casas, nem nas escolas, nem nos consultórios médicos, nem nas igrejas.
Rita Segato, no mesmo livro citado, revela:
– Que a agressão contra os corpos das mulheres era uma declaração de masculinidade diante do mundo; uma forma expressiva, não instrumental, de violência;
– Que essa declaração era apenas uma obediência a um mandato que o grupo estabelecia a cada um de seus membros: o da masculinidade;
– Que o mandato de masculinidade era, portanto, um mandato de estupro;Que o abuso sexual representava uma sina que ia além da morte — o abuso sexual é a morte e assegura o patriarcado;
– Que a habilidade de impor a morte era a única maneira de os homens confirmarem sua masculinidade;
– Que esse destino impunha uma camisa de força genital às mulheres — a primazia decisiva da condição de mulher sobre a pessoalidade: “Você é uma mulher, nada mais do que isso — eu limito você aos orifícios e às protuberâncias de sua genitália” é o que o estupro declara;
– Que longe de ser uma infração, lesionar uma mulher era o cumprimento de um comando inapelável imposto aos membros daquilo que hoje chamamos de “corporação masculina”;
– Que a masculinidade tem a estrutura organizacional de uma corporação, assim como as máfias, as forças policiais, os grandes conglomerados econômicos, as forças militares e o Poder Judiciário;
– Que a lealdade ao grupo corporativo é o valor supremo, e seu ordenamento interno é estritamente hierárquico e autoritário;
– Que apenas o processamento, a ingestão e a desintegração de uma vítima sacrificial mantêm e reproduzem a fraternidade masculina, num ciclo de retorno ininterrupto e mortal;
– Que o grupo corporativo masculino é erigido sobre a cobrança de um encargo feminino por meio da subjugação, o que alimenta a masculinidade de modo regular;
– Que é por meio de seus pares que um agressor é instigado a cometer o abuso, e é a eles que ele dedica a exibição da posse forçada.
O que a antropóloga nos joga na cara é que, assim como a branquitude — entendida como o lugar de poder e privilégio de pessoas brancas, que se alimenta através de práticas de racismo, exclusão e extermínio —, a masculinidade é motivadora da dizimação de meninas em nossa sociedade. Logo, não existe masculinidade saudável, diferente, sã — ela é a causa dos crimes cometidos.
Como disse a escritora mineira Dalva Maria Soares: “Masculinidade tóxica é pleonasmo”.
É este “mandato” de violência e abusos que os homens sentem os compelindo, que está matando nossas meninas antes mesmo de desabrocharem para a vida. O combate à masculinidade, reguladora dos estupros, dos assassinatos, das tantas violências físicas e psicológicas, é urgente. E homens não vão entregar o poder de bandeja — é preciso muita luta e vontade política para que a masculinidade seja vencida por relações de igualdade entre homens e mulheres.
A “energia” masculina agressiva, invocada por Mark Zuckerberg, está devorando nossas infâncias. Ela precisa ser exterminada, não incentivada nas instituições. Os masculinistas que vão para o inferno, mas, no mundo em que vivemos, ser feminista é questão de sobrevivência.