“Mulheres: chegou a nossa vez”, anuncia Rita Segato, a caminho da FLIP
Após 40 anos de Brasil, o fim do “cancelamento”: os livros da antropóloga finalmente ganham edições em português, pela Bazar do Tempo
Aos 71 anos, Rita Laura Segato está no auge de seu reconhecimento no país que escolheu para viver: o Brasil. Nascida em Buenos Aires, ela morou quase 40 anos em Brasília, onde escreveu todos os seus livros e ainda conserva um apartamento. Distante há quatro anos, ela diz que pretende voltar à nação onde fez história.
Em 2002, a antropóloga elaborou uma proposta de políticas públicas e ações afirmativas para populações indígenas, junto com um grupo de 41 mulheres indígenas no Brasil. No mesmo ano, foi coautora da primeira proposta de cotas para estudantes negros e indígenas na educação superior brasileira. Além disso, contribuiu amplamente para o debate sobre violência de gênero e decolonialidade na América Latina.
No próximo sábado (26), o público poderá ouvir Rita Segato na Feira Literária de Paraty (FLIP), às 19h, em uma mesa ao lado de Saidiya Hartman e Luiz Maurício Azevedo, com mediação de Djamila Ribeiro. Direto de Córdoba, onde parou antes de embarcar para o Rio de Janeiro, ela conversou com o Catarinas e comemorou a tradução de sua obra para o português, após um longo período de “cancelamento”.
Jess: No Brasil, o cenário é de guerra contra as mulheres. Uma guerra institucionalizada por Bolsonaro, um presidente que afirma sua masculinidade por meio da misoginia e inspira seus seguidores a fazerem o mesmo. Dentro de um contexto de polarização política, você acredita que o retorno de Lula à presidência é capaz de mobilizar avanços reais nessa pauta?
Rita: Eu estou convencida de que a violência contra a mulher não decresce porque não há uma real compreensão do que significa essa violência. Sem entender, não é possível tocar no fenômeno, ou seja, fazer regredir essa violência. As pessoas repetem mecanicamente ideias voluntaristas, dizendo que não se deve fazer isso ou aquilo. Mas, para mim, a ideia do “não se deve” não é suficiente para modificar uma prática, há que se entender com mais profundidade o que está acontecendo e por que isso acontece. Eu tenho me dedicado, há mais de 25 anos, a entender o que significa a violência de gênero em geral, mas é necessário um trabalho coletivo de reflexão. Sem compreender não se pode resolver – disso tenho convicção, para mim é quase como uma fórmula.
Eu estive agora em um seminário na Universidade Nacional de San Martín, onde eles têm um laboratório que estuda os discursos de ódio, o que eu acho que é um tema central, porque toda essa política neonazista, como algumas pessoas falam, ou conservadora, ou neoconservadora, na verdade é uma política de ódio. Esse laboratório fez vários tipos de levantamento de dados, e uma conclusão que eles chegaram é que 75% do discurso de ódio se dirige às mulheres, e 5% às sexualidades dissidentes. Quer dizer: 80% está dirigido a impedir que as pessoas possam ter uma soberania sobre seu corpo, e o uso do seu corpo.
Então, temos que nos perguntar por que o inimigo das fortunas, do grande capital, é o corpo da mulher ou as sexualidades desobedientes.
Esta é a pergunta que eu tenho colocado nas minhas últimas exposições: qual é a relação entre o dono do agronegócio, das grandes corporações, e o domínio sobre o corpo de uma mulher grávida que quer abortar? Não é fácil responder a essa pergunta, porque a primeira resposta a gente rapidamente joga por terra. É a moral? Falso. Se a razão fosse moral, se fosse a defesa da vida, a vida seria defendida em qualquer lugar, ou seja, o menino e a menina migrante, as crianças expostas aos maus-tratos, ao tráfico, à fome. A defesa da vida por razões morais não deveria se restringir ao feto.
Esses rebanhos colocados na rua para falar contra a mulher, quando interpelados pelos jornalistas e perguntados sobre por que estão passeando com aquelas estruturas de feto gigantes, que seriam cômicas se não fossem trágicas, não sabem responder. Eles não sabem o que estão fazendo ali.
No caso de Bolsonaro, o discurso de ódio denota seu desejo de poder. Ele quer dizer à nação que pode arbitrar.
O que temos que ver é se a nação brasileira, e todas as nações que estão passando por situações similares – embora não tão graves, porque o Brasil vivenciou a forma extrema do espetáculo da arbitrariedade –, conseguirão estabelecer uma comunicação entre a política de Estado e o povo, as pessoas.
Esse espaço político da comunicação com as pessoas comuns foi ocupado pela igreja, e isso não pode continuar. Eu chamo essas igrejas de igrejas corporativas. Religião e sociedade foi o meu tema de pesquisa durante muitos anos, sobretudo, quando eu cheguei ao Brasil. Durante a minha pesquisa na Penitenciária de Brasília, observei a presença do cristianismo naquele ambiente. Tinha a pastoral católica, com uma presença muito menor, e tinham muitas igrejas evangélicas dentro do presídio. A longo prazo, eu descobri que quando uma antropóloga ou um antropólogo estuda as igrejas, tem que separar muito bem o povo de igreja, porque o povo busca vocabulário para expandir e expressar sua espiritualidade, e isso é absolutamente válido e intocável. Em todos os discursos religiosos, as pessoas buscam afirmar sua espiritualidade pessoal e desenvolvê-la, mas existe o empresariado nas igrejas, e isso deve ser estudado separadamente. Eu separo completamente o povo do empresariado das igrejas evangélicas de ultradireita.
Jess: Essa sua fala traz uma dimensão bastante estrutural para o problema, mas neste momento o que a gente tem visto é as pessoas se apegarem a Lula como uma espécie de resolvedor, justamente por ser um líder popular. A campanha de Lula ganhou força a partir da disseminação estratégica de uma visão binária do cenário político brasileiro: a democracia contra o fascismo, o respeito contra a misoginia, o bem contra o mal. Como você enxerga esse movimento?
Rita: Exatamente assim. Eu acabei de dar uma entrevista à CNN, em espanhol, onde eu disse que as eleições causaram certo alívio não só ao Brasil, mas a todas as pessoas de bem, de espírito democrático, de toda a América Latina. Ainda que 58 milhões de pessoas tenham votado pela ditadura. Nós precisamos dialogar com essas pessoas para entender quem disse a elas que a tortura é boa, que didatura é boa, que a misoginia é boa, que o racismo é bom. Essas 58 milhões de pessoas são um gigantesco objeto de estudo. A clínica Brasil.
Fernanda Pessoa: O que o Brasil pode aprender com a resposta da Argentina à ditadura – a luta por verdade, memória e justiça?
Rita: Não se esqueçam que na Argentina atravessamos um problema não muito diferente do que se atravessa no Brasil. É um problema mundial: Itália, Espanha, Estados Unidos, Costa Rica passaram por isso. É um fenômeno tão complexo quanto entender a relação entre a mulher grávida que não quer ter um filho e os donos das grandes fortunas. Moral não é, porque não se prega a mesma moral para todas as vidas, somente aquela que está dentro do útero da mulher. Até pouco tempo atrás, na história do catolicismo, quem não tinha livre arbítrio, não era humano. Esse fanatismo contra o aborto, essa proibição pseudo-moral, é nova até mesmo para a igreja católica.
Onde se tem liberdade para abortar, muitos médicos se declaram objetores de consciência. Bem, eu não acredito nisso, acho que aí existe uma questão de gênero, classe e até de raça.
Quem praticava o aborto, durante muito tempo, nas mulheres de todo o mundo, eram as aborteiras. As aborteiras eram enfermeiras, mulheres pobres e geralmente não brancas. Conheço casos na cidade onde estou hoje, Córdoba, de médicos que praticaram abortos na família, mas são objetores de consciência na vida pública. Acho que o que existe nos médicos é um escrúpulo social e racial de não enxergar-se naquela posição, a posição da pessoa inferiorizada, estigmatizada pela classe, pela raça e pelo gênero.
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Agora, sobre a pergunta que você me fez, na Argentina se soube, em uma grande lição de história, o que aconteceu, e se condenou uma grande parte dos torturadores. Eles estão pagando na cadeia, justiça se fez. No Brasil, isso ficou encoberto. Até a figura mais querida, a maior defensora dos interesses do povo, ficou aquém das suas obrigações de fazer justiça e reparar. Não tem reparação sem verdade, não se pode pagar com dinheiro. Precisa haver uma reparação – material e moral – da dignidade humana da vítima. Além disso, temos uma geração que não viveu na ditadura, que não sabe o que foi esse sofrimento, esse medo, a perda de pessoas queridas… Na Argentina também deveríamos mostrar melhor o que foi vivenciar essa época, e isso ficou para trás porque temos problemas novos que estão levando o povo em direção a esses discursos de ódio, que são os discursos de direita.
Precisamos entender a origem do ressentimento. Existe um poço de rancor e de fúria disponível para a direita se apropriar e manipular o povo.
Eu acho que está faltando, do lado do campo crítico e do campo democrático, a defesa de uma democracia que não seja somente formal, onde se vota e volta pra casa ver televisão, ou se vai para a igreja.
Existe muito trabalho pendente. Eu brincava com os meus alunos que se chegasse um marciano e lesse a constituição e as leis, em busca de conhecer o Brasil, ele jamais teria noção de como é esse país. Isso representa a distância entre Estado e sociedade, entre essa democracia formal e burocrática e uma democracia que a gente ainda não pensou em que consiste. É urgente a reflexão coletiva sobre o que seria uma vida democrática no Brasil, na Argentina e em outros países.
Fernanda: Você foi coautora da primeira proposta de cotas para estudantes negros e indígenas na educação superior, feito à Universidade de Brasília em 2002. Posteriormente o tema tomou a mídia, foi amplamente difundido entre a população e tornou-se lei em 2012. Como avalia o impacto das cotas na educação? Atualmente, quais os principais desafios a serem enfrentados para seguir tornando o acesso à universidade democrático e plural?
Rita: No último capítulo do livro que a Bazar do Tempo está apresentando na FLIP, eu faço uma reflexão sobre isso. Na Universidade de Brasília, em 1998, nós tivemos um caso de discriminação de um estudante de doutorado do departamento de antropologia que foi reprovado sem que um único ensaio que ele escreveu tenha sido corrigido. O movimento negro, por muito tempo falou das ações afirmativas, disso não tenho dúvida, mas na universidade, a partir desse caso, houve avanço. Nesse ensaio eu digo que houve a luta, houve a vitória, mas também houve a ocultação do processo – e eu indago o porquê. Por que o Brasil nunca ficou sabendo dessa luta tão importante que se deu dentro da UnB?
O colegiado que não dava ouvidos a esse aluno, um estudante negro do recôncavo baiano, filho de uma costureira, que vinha de um ambiente de pobreza, mas era brilhantíssimo e chegou a um doutorado de nota 7 na CAPES. Antes dele não havia reprovações nesse departamento, o primeiro foi um aluno negro da cor do ébano. Aí começou uma luta interna por uma nota, por justiça, que foi longa e partir daí, o professor José Jorge de Carvalho e eu começamos a pensar: se é tão difícil manter um estudante negro em um programa de elite como é o da UnB, vamos propor uma reserva de vagas.
No início, o Globo Repórter fez uma reportagem sobre essa proposta e então um deputado do Rio de Janeiro escuta sobre ela e faz uma proposta que obriga a Universidade Estadual do Rio de Janeiro a aplicar as cotas. A mesma coisa aconteceu com a Universidade Estadual da Bahia, que pediu à Assembleia que essa mesma lei estadual fosse levada para a Bahia. A Universidade de Brasília foi a única que deliberou internamente até conseguir a votação pelo colegiado máximo da instituição.
Houve silenciamento sobre a história dessa luta, a luta por um estudante, dos muitos estudantes negros que foram injustiçados, reprovados – apenas um. A luta foi brava, foi difícil para ele e para todos os aliados. E mais: é tão forte o racismo no Brasil que eu era coordenadora da pós e ele teve uma dúvida se ele poderia ter razão. Eu disse que provas são provas, e os ensaios não tinham um único sublinhado, o professor não tinha deixado uma única marca de que tinha lido os trabalhos. Esse aluno procurou o professor, como de praxe, perguntando o que estava errado em sua prova, para poder corrigir. Ele bateu na porta, o professor abriu e disse: eu não falo com nulidades. Isso não se fala. Um professor jamais chama um aluno de nulidade, porque uma nulidade é uma não-existência. Eu sou testemunha desse processo.
O que é lutar pelas cotas? É uma revolução? Não. Uma vez eu falei, em uma conferência que eu fui, que tínhamos 20% de cotas. E aí um professor de Belize me perguntou qual era a porcentagem de pessoas negras no Brasil e eu disse que são 51%. É por isso que eu digo: a luta pelas cotas foi o que finalmente nomeou a raça e o racismo no Brasil – o primeiro país da América Latina a fazê-lo. Eu chamo essa luta de um processo de agitação. Não muda a realidade porque esses 20% que começam a ingressar se transformarão numa elite com relação aos seus pares. Qual é a responsabilidade desses alguns para o coletivo do qual eles fazem parte? Essa é uma reflexão que veio a acontecer depois, no começo ela não estava posta, chego a dizer que era evitada.
A universidade pública é o corredor por onde se transita as pessoas que chegam às escrivaninhas do Estado, onde se decide para onde se destinam os recursos da nação.
É daí que saem as pessoas que decidem para onde se destinam os recursos do Brasil. Tem um estudo que mostra que praticamente todos os juízes do Supremo, com uma ou duas exceções, se muito, transitaram pela universidade pública.
Jess: Obrigada pelo resgate dessa memória tão importante para a nossa história, Rita. Um prazer ouvi-la de você. Vamos falar um pouco do seu novo livro, que será lançado agora na FLIP? Ele reúne ensaios escritos ao longo de três décadas de trabalho. Olhando em retrospectiva, o que mudou? Pode compartilhar conosco os principais aprendizados da sua trajetória?
Rita: O que será lançado na FLIP é o livro “Cenas de um pensamento incômodo”, que reúne textos sobre diversos temas, como gênero e encarceramento, que estavam dispersos e inacessíveis. Às vezes as pessoas me escrevem perguntando como podem ter acesso a eles. Esta foi a oportunidade de juntá-los.
Em 2003, em um livro chamado “As estruturas elementares da violência”, eu falo que tem uma economia simbólica que circula por dois eixos: um eixo vertical, que é de castigo à vítima – e daí sai a performance do grupo chileno Las Tesis. Na minha tese, digo que o violador é o mais moral dos sujeitos, um disciplinador. Não é um louco, anômalo, solitário. Ele viola em companhia, castigando a vítima para mostrar sua posição de submissão. O eixo horizontal fala sobre a insensibilidade e a falta de empatia como formas de se comprovar macho aos olhos de seus pares.
A esse eixo horizontal, que eu chamo de irmandade ou clube masculino, nesses últimos textos eu já vou chamar de corporação. Todo o edifício de poder vai ter réplicas das normas de estrutura de uma corporação basal, que é a corporação da masculinidade. Um desses textos tem um nome muito bonito: nenhum patriarcão fará a revolução. Sabe por quê? Porque nenhum conseguiu reorientar a história para um rumo mais benigno para a sociedade. Então vamos, nós mulheres, pensar em alguma forma de impulsionar a história para a direção de um horizonte menos nebuloso. Mulheres, chegou a nossa vez.
Jess: Rita, um prazer inenarrável te ouvir, estamos emocionadas e muito felizes por você ter aceitado o nosso convite. Estarei na FLIP para ouvir essa mesa histórica também.
Rita: Estou muito emocionada de ir à FLIP. Vocês têm que compreender que durante meus anos na UnB, fui cancelada. Por isso, os meus livros foram todos escritos no Brasil, mas somente agora foram traduzidos pela Bazar do Tempo. Somente o primeiro foi publicado pela editora da UnB, os outros tive que publicar fora. E agora, pela primeira vez em 40 anos de Brasil, a Bazar do Tempo está traduzindo toda a minha obra em português. Eu estou há mais tempo no Brasil do que na Argentina.
Fernanda: De fato, todos os seus livros que tenho são edições argentinas.
Rita: Porque fui cancelada pelas minhas lutas. Uma coisa maravilhosa que aprendi com os britânicos foi: either makes you or breaks you. Quer dizer: se isso não te quebrou, então você voou.