É fascismo? É nazismo? O Patriarcado 4.0 levanta o braço
Na cerimônia de posse do segundo mandato de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos não faltaram referências nazi-fascistas; Melania, ícone de sujeita universal, escondeu o rosto.
Nas imagens que compõem as ilustrações principais para este texto – feitas em 20 de janeiro de 2025 na cerimônia de posse do segundo mandato de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos – constam Mark Zuckerberg (Meta), Jeff Bezos (Amazon), Sundar Pichai (Google), e Elon Musk (Tesla, X), homens cis detentores de alguns dos principais meios de comunicação da atualidade cujo patrimônio líquido combinado contabiliza trilhões de dólares, com o último notoriamente fazendo a saudação nazista em captura e transmissão ao vivo da NBC.
Em meu último texto de 2024 para o Catarinas comentei que o Patriarcado 4.0 vinha aí, citando as doações que estes mesmos “tech bros” já haviam feito para Trump. Em janeiro, grandes empresas de tecnologia ajustaram suas políticas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI), e para pior. A Meta, por exemplo, descontinuou programas de DEI, encerrando iniciativas relacionadas à contratação, treinamento e seleção de fornecedores. Além disso, um memorando interno destacou que o termo “DEI” tornou-se “polêmico”, e a equipe dedicada ao tópico não foi mantida. A empresa também encerrou seu programa de verificação de fatos realizado por terceiros, e relaxou certas políticas de moderação de conteúdo.
A Amazon já em 2024 passou a eliminar programas específicos de DEI. O X não fez anúncios públicos significativos sobre mudanças nas políticas de DEI – mas já há tempo deixou claro que “variação” é aceita na empresa, como demonstrado na foto abaixo, publicada no então Twitter pelo próprio Musk, após reunião em 19 de novembro de 2022, quando adquiriu a plataforma.
Naquela mesma semana Musk se autointitulou “absolutista da liberdade de expressão”, e cheguei a publicar um texto no Portal Catarinas criticando a perversão com que ele opera a linguagem – replico abaixo um trecho:
“A existência de sentido em permutações de palavras que levem à equalização dos conceitos de ‘liberdade’ e ‘absolutismo’ tampouco resiste à observação da realidade com o uso da lógica e da razão. Os acontecimentos desta semana deixam isso ainda mais patente: o autoproclamado ‘absolutista da liberdade de expressão’ enxotou de sua empresa aqueles que expressaram com liberdade o que pensam dele. Fica muito evidente que Musk é um absolutista da própria liberdade de expressão.”
O Artigo 19 é um princípio da Declaração Universal dos Direitos Humanos desde 1948, e diz que “Todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
Já o termo “meritocracia” foi popularizado pelo sociólogo britânico Michael Young em seu livro satírico The Rise of the Meritocracy (1958), originalmente como uma crítica ao sistema baseado em méritos.
A meritocracia como “sistema” idealiza o sucesso individual ignorando desigualdades estruturais que afetam o acesso a oportunidades. Essa visão frequentemente legitima privilégios preexistentes, e perpetua exclusões sociais sob a aparência de justiça.
Contrariando os princípios da realidade e do bem comum, em seu discurso inaugural Trump afirmou que, já nesta semana, poria “fim à política governamental de tentar incorporar socialmente a raça e o gênero em todos os aspectos da vida pública e privada”, e que modelaria “uma sociedade daltônica e baseada no mérito”, dizendo ainda que “a partir de hoje, será política oficial do governo dos Estados Unidos que existam apenas dois gêneros, masculino e feminino”.
Gênero é um espectro que reflete a complexidade humana e transcende construções simples, e até mesmo a ideia de liberdade de expressão e a falácia da meritocracia: falar sobre pessoas que existem e são marginalizadas não é meramente ideológico, mas sim parte intrínseca da luta por justiça social. O reconhecimento científico de que gênero não se limita ao binário masculino e feminino vem de campos como a biologia, a fisiologia e a genética, que abarcam a diversidade além dessa dualidade.
A Organização das Nações Unidas estima que até 1,7% das pessoas no mundo sejam intersexo, uma população imensa, composta por pessoas que nascem com variações naturais e características que não se enquadram completamente em definições típicas de masculino ou feminino, pois fatores cromossômicos e hormonais não se alinham rigidamente ao binário.
E por falar em binário, chamo atenção agora para o estilo da primeira-dama Melania Trump na cerimônia de posse. Melania é um dos ícones do fenômeno conservador da “sujeita universal“, que exalta uma visão essencialista do que significa ser mulher, a partir de falsos pressupostos do binário de gênero, e do enaltecimento da fêmea feminina submissa ao poder de Deus, dos homens e da supremacia branca cisheteronormativa.
Para a revista Marie Claire, seu look consolida esta imagem; em reportagem especial, a pesquisadora em gênero e moda Thais Farage comenta que Melania passa a impressão de mulher recatada e modesta, e que, ao cobrir o rosto, deixa o de Trump ainda mais em evidência, se colocando em segundo plano.
A Secretária de Meio Ambiente e Clima, e vereadora mais votada do Rio de Janeiro, Tainá de Paula (PT), trouxe outra reflexão importante no seu Instagram sobre as vestimentas da primeira-dama, semelhantes às indumentárias nazistas. Os nazistas, que tinham plena consciência do poder da imagem e da linguagem, se vestiam muito bem, e a combinação de chapéu cobrindo os olhos com gola alta branca da roupa escolhida por Melania se assemelha bastante aos uniformes utilizados pelo führer e pela SS, como pode ser visto nas imagens abaixo.
Para a secretária, ontem foi dia de dar conta do que a moda pode comunicar, sugerindo que alguns trajes indicam a existência de racismo, xenofobia, e retirada de direitos, denotando significados tão mortíferos quanto os discursos que os acompanham.
Em seu perfil de Instagram, a vereadora mais votada de Criciúma-SC, Giovanna Mondardo (PCdoB), publicou uma montagem da cena de Musk fazendo a saudação nazista com uma cena do próprio Hitler fazendo exatamente o mesmo gesto, e a legenda “Pra vcs tudo é n@z1sm0, até saudação n4zi5t@ é n@z1sm0”. O post foi subsequentemente removido pelo próprio Instagram, como mostra o print abaixo.
O deboche de Mondardo encontra eco na minha exasperação com quem insiste em passar o proverbial pano para a semiótica nazi-fascista empregada com tanto afinco e obviedade para ilustrar as intenções do patriarcado do nosso tempo-espaço. Em meu livro “Patriarcado Gênero Feminismo” (Editora Zouk, 2022), escrevi o seguinte:
“São de conhecimento público algumas das técnicas características desta fase do acirramento acelerado de um projeto transnacional de poder, que soa como fascismo e tem forma de patriarcado. Falo de coisas como análise de big data aplicada ao emprego das redes sociais para pulverização personalizada de fake news e firehosing, por exemplo. Soa sofisticado – e é mesmo; porém os termos não deixam de ser uma ‘gourmetização’ das boas e velhas mentira e manipulação de massas. Agindo conforme o legado do gênio da propaganda nazista Joseph Goebbels, muitos dos corpos masculinos e brancos correntemente (e constantemente, e nunca não) ocupando os assentos mais valiosos da política institucional no Brasil e no mundo vêm manipulando opinião pública com a repetição de mentiras até que estas se tornem verdades.
Uma forma notória que o poder tem de manipular e mentir para impor verdades é a propaganda, este termo técnico da teoria da comunicação que nomeia o conjunto de dispositivos simbólicos que implantam ideais como discurso.
Política é disputa, o material da política é o simbólico, e na surrealpolitik estão em jogo sobretudo significados. Ideologia de gênero, kit gay e mamadeira de piroca foram apenas três das muitas mentiras que fomentaram o sem-fim de fake news que sustentaram e ainda sustentam a surrealpolitik em que estamos metidos desde antes que qualquer ideal de democracia tenha sido triturado pela institucionalização, e por eleição, de sujeitos que se valem de mitologia patriarcal para estarem no poder.
Terra plana, vacinas causando autismo, globalismo, a doutrinação marxista nas escolas – claramente um resultado do comunismo no Brasil, onde tampouco houve uma ditadura militar – aquecimento global ser invenção, ciência e opinião terem o mesmo valor: foram muitas as mentiras que precederam e moldaram nosso atual estado de coisas.”
O dia de ontem me fez pensar no poema “Primeiro Eles Vieram”, do Pastor Martin Niemöller sobre os nazistas (frequentemente atribuído a Bertold Brecht), que reproduzo em português, abaixo:
“Primeiro eles vieram pelos comunistas
E eu não falei
Porque eu não era comunista
Então eles vieram pelos socialistas
E eu não falei
Porque eu não era socialista
Então eles vieram pelos sindicalistas
E eu não falei
Porque eu não era sindicalista
Então eles vieram pelos judeus
E eu não falei
Porque eu não era judeu
Então eles vieram por mim
E não sobrou ninguém
Para falar por mim”
A atualização desse poema para o neofascismo/nazismo requentado do agora — ou, como o venho chamando, “Patriarcado 4.0” — bem que poderia ser:
“Primeiro eles vieram pelos que pensam gênero
E estou falando isso publicamente desde 2015
Pois estudo gênero”