Não dá para ficar alheia ao que vem ocorrendo no Brasil e, por consequência, em Santa Catarina, no teor das manifestações de extrema direita. Desde que produzi a tese de doutorado que resultou no livro Memórias de uma (outra) guerra: cotidiano e medo durante a Segunda Guerra Mundial em Santa Catarina, defendida em maio de 2002, os temas sobre os fascismos e suas manifestações me são de interesse e acompanho, apreensiva, os desdobramentos. 

De início, advirto que é um textão pois não dá para falar de Nazismo hoje sem um contexto histórico, mesmo que breve. Pensemos a Europa no final do século 18 quando já havia alguns Estados Nações consolidados e boa parte da área geográfica ocupada pelo Reino da Prússia (fundação em 1701) que, em 1871, lidera a Unificação da Alemanha, embora mantenha-se um Reino até 1918, com o fim da Primeira Grande Guerra. O país Alemanha surgiu entre guerras intestinas e acordos diplomáticos, lembrando que o capitalismo se afirmava como modelo econômico, e isso diz muito sobre interesses nacionais.

Com a unificação alemã concluída, formou-se o Segundo Reich – Segundo Império Alemão – e a proclamação de Guilherme I como kaiser – imperador, a Alemanha exerce poder sobre outros países e afirma-se como potência estratégica militar e econômica. 

Durante todo o século 19, ideias construídas pelos discursos do Romantismo Alemão através da literatura, da poesia e religiosos estavam renovando raízes culturais nas manifestações da subjetividade e da individualidade com a supervalorização dos sentimentos. Sobressaiam discursos pautados na civilização, na religião e no sentimento de pertencimento a um grupo cultural.

A historiadora Cynthia Machado Campos mostrou como a noção de pertencimento na cultura alemã comportou forte componente linguístico, percebendo os esforços, na Alemanha no início do século 19, de ligar a missão de perpetuar a língua e o sangue alemão, veiculados em apelos românticos – a palavra Kultur relacionada à identidade coletiva, ou afirmação da identidade alemã. 

Os apelos aos sentimentos de uma grande pátria propunham a pertença a um povo, uma cultura e costumes, uma nação nos moldes da civilização. O trabalho como redenção, a disciplina com exercícios físicos e exaltação dos corpos viris e fortes, o culto a Heimat – pátria em português – como centro da moral alemã acoplado ao sentimento de pertença e identidade regiam os discursos.   

Com esse espírito, a Alemanha entra no século 20. Com a desonra do exército perdedor da Primeira Grande Guerra, algum bode expiatório teria que ser criado – eis que o anti-semitismo é encorajado e tem seu líder, Adolf Hitler. Mas não só estes, sabemos. Se a década de 1920 foi dura para a reconstrução da Alemanha, a década de 1930 gestou o que de pior e mais nefasto aconteceu na história recente da humanidade: a ideologia Nazista e toda sua carga de extremismos, supremacia branca e raça pura. O projeto era dominar o mundo.

A imigração europeia, especialmente a alemã e desde meados do século 19, traz consigo os ideários de pátria e nação cristalizados. Sim, moravam no Brasil, mas não importava onde tivessem nascido: um alemão seria sempre alemão, a nacionalidade estaria vinculada ao sangue mesmo que a cidadania estivesse vinculada ao Estado brasileiro. Ou seja, sentimentos de lealdade e identificação eram manifestados na forma de viver na cotidianidade: escolas alemãs, clubes de caça e tiro, festas, igrejas, cultos, nomes, uso da língua, imprensa, nos casamentos endogâmicos, ritos funerários, apego ao trabalho, educação rígida, etc. 

Ou, uma “comunidade política imaginada”, no sentido dado por Benedict Anderson (Nação e consciência nacional, p.14). Onde vivesse, o alemão poderia construir sua Heimat, desde que mantivesse os laços culturais e sentimentais com o lugar de origem, a identificação étnica, à pátria, portanto. Não é de estranhar que os apelos ao Partido Nazista tivessem eco nestas terras tupiniquins.

Na época em que eu pesquisava, surpreendia-me com a força do Partido Nazista no Brasil e mais evidente no Estado Catarinense. Todavia, segundo René Gertz, o número máximo era de 5 mil membros em todo o Brasil e nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, havia entre 400 e 500 partidários, isso para 25 mil nascidos na Alemanha nestes dois Estados. Em 1940, a população do Brasil era de 40 milhões de habitantes, consideremos. 

Entre 1928 e 1938, organizações nazistas funcionaram no Brasil sem que incomodassem ao governo que também recebia milhares de alemães imigrantes fugindo da guerra, sobretudo movidos pelos problemas socioeconômicos enfrentados pela recessão naquele país após a Primeira Guerra. Essa onda migratória com fortes laços com a pátria alemã viria formar os primeiros grupos nazistas no Brasil embevecidos, sobretudo, pelo nacionalismo que emergia na Alemanha sob o domínio de Hitler. 

Vários membros da comunidade teuto-brasileira foram membros da Seção Brasileira do Partido Nazista da Alemanha, organização que veio a constituir-se na segunda maior célula de adeptos fora da Alemanha, com 2.822 integrantes. Como organização estrangeira, somente alemães natos podiam filiar-se; os descendentes nascidos no Brasil podiam atuar somente como simpatizantes. E não foram poucos a simpatizarem com as ideias nazifascistas.  

Todavia, se não havia repressão antes de 1938, o medo do governo Vargas de que o Partido Nazista assumisse a liderança sobre os teutos (alemães nascidos no Brasil) contribuiu para que o número de membros permanecesse muito baixo. Esta é uma explicação histórica, embora não esqueçamos do jogo de forças no cenário internacional e as aproximações com os Estados Unidos – leia-se aqui desde a apropriação da imagem de Carmem Miranda, os acordos estratégicos que, enfim, fizeram Getúlio a descer a balança para o lado dos Aliados.

Quem eram esses partidários nazistas? A historiadora Priscilla Perazzo observou que, a partir das profissões dos 69 presos políticos ligados ao Partido Nazista detidos em Florianópolis – campo de concentração de Trindade – em dezembro de 1943, “os partidários nazistas constituíam um distinto grupo social urbano: mantinham ligações diretas com empresas e consulados alemães, dependendo deles para sua sustentação econômica dentro da colônia alemã existente em São Paulo ou Florianópolis”. 

Estas empresas e alemães que tinham ligação e trabalhavam para o Nazismo, após 1938 passaram a viver sob vigilância policial, como se percebe nas ações da polícia e nas prisões e criação de campos de concentração e de afastamento com a entrada do Brasil na Guerra, em agosto de 1942. A criação, em 1932, da Ação Integralista Brasileira (AIB), movimento de caráter conservador e ultranacionalista, e o sucesso nas eleições municipais de 1936, quando foram eleitos oito prefeitos e 72 vereadores só em Santa Catarina, configurou-se na segunda força política do Estado.

Evidente que Getúlio Vargas, após o Golpe do Estado Novo, em novembro de 1937, temeroso destas forças políticas, fez colocar na ilegalidade partidos ou agremiações, fosse de nazistas, integralistas e, claro, com feroz perseguição aos comunistas. Governava no alto de seu autoritarismo, o que não significou que os nazistas estivessem mortos, muito pelo contrário. Nos anos da Segunda Guerra, a perseguição aos partidários do Nazismo foi eficaz. Todavia, esconderam-se nos seus clubes fechados, casas, grupos cultuando o líder alemão. 

Terminada a Guerra, havia que se reorganizarem, reaver bens perdidos ou lamentar as perdas tanto econômicas quanto simbólicas por conta das apreensões, extorsões, exonerações, demissões, afastamentos da cidade de moradia, dentre outras, como a vergonha de uma prisão ou constrangimentos. Amoitaram-se, por pouco tempo, porque logo alguns daqueles alemães perseguidos e prisioneiros durante a Guerra voltaram às esferas pública e política. E a vida continuou.

Mas o sentimento nacionalista pautado nas ideias nazistas estava cristalizado. E, como é evidente, muitos deles estiveram presentes e assumiram cargos com golpes militares tanto no Brasil quanto em toda a América Latina.   

Embora tenhamos notícias de manifestações isoladas de nazifascismos, foi preciso inserir na redação da legislação brasileira (Lei nº 9.459, de 15/05/97) a definição dos crimes de raça e cor – “1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”. 

Mas a Lei não mais os inibe, e demônios submergem na capa de defensores da pátria. O século 21 prometia a bonança, relações mais igualitárias, paz e convivência, era o que diziam os votos ditos aos quatro cantos entre festejos, união de credos e crenças. Era a promessa do devir.   

Vivemos, no Brasil, desde então, a importante governança democrática que cumpriu a Constituição no que é mais caro à sociedade: a inclusão de todas as pessoas através de políticas públicas para minimizar preconceitos e a consciência de que somos um país cuja pluralidade é real e deve ser respeitada. E isso incomoda os donos do capital, das financeiras, das grandes empresas, políticos sem compromisso com a sociedade e, pasmem, dentro de igrejas na voz de pastores que cooptam fiéis com discursos demoníacos. 

Sentimentos nacionalistas, extremistas e supremacistas estavam encobertos. Com o avanço da direita pelo mundo, saíram das tocas. Não, não se tornaram fascistas de uma hora para outra: já eram assim, perversos racistas, machistas, homofóbicos, xenofóbicos. E, se já eram, é porque aprenderam nas suas relações da infância, das famílias, dos grupos com os quais conviviam. 

Em 2015, foram localizadas 75 células neonazistas no Brasil; em 2021, saltaram para 530 núcleos extremistas com um aumento de 270% entre janeiro de 2019 e maio de 2021, aponta o monitoramento feito pela antropóloga Adriana Dias. Já um levantamento na Central de Denúncias de Crimes Cibernéticos da plataforma Safernet Brasil contabilizou uma explosão de denúncias sobre conteúdo de apologia do nazismo nas redes: em 2015, foram 1.282 casos; em 2020, saltou para 9.004, ou um crescimento de mais de 600%. 

Estes grupos vêm a reboque da violência de forma geral acoitados pelas manifestações da extrema direita em todo o mundo, e reverberam-se nas franjas do cotidiano. Quem são eles? São na quase totalidade homens que vergam seu machismo em primeiro lugar, expõe seu radicalismo e intolerância na defesa de crenças e fechados ao diálogo ou negociação. Em uma frase: fanáticos extremistas. 

Um exemplo é o aparecimento dos grupos do Involuntary  Celibates – INCEL, que descreve homens, na maioria jovens, que se definem como  celibatários involuntários e tem como princípio o ódio às mulheres e as culpabilizam por suas relações sexuais frustradas. Organizados através de websites, promovem ataques mortíferos em várias partes do mundo, como aconteceu em Toronto, Canadá, em 2018, que matou dez pessoas. 

Estes grupos extremistas se desdobram em mais grupos cuja violência reverbera explícita. No Brasil, eles existem e promovem o culto à masculinidade, ódio às pessoas negras, aos LGBTQI+, aos nordestinos, aos imigrantes, aos indígenas, aos direitos das mulheres e negam o Holocausto. Temos visto estas ocorrências em atos como atear fogo em pessoas negras nas ruas, cartazes pela cidade como ocorreu em 2021 quando uma bandeira nazi foi vista na janela de um apartamento de luxo em Florianópolis, manifestantes contra a vacina na câmara dos deputados em Porto Alegre portando a suástica, cartazes de ódio em Blumenau em 2017, alunos flagrados numa instituição privada de ensino em Criciúma em 2021 postando vídeos fazendo a saudação nazista, a piscina do professor de Pomerode que exibia uma suástica, uma fábrica, a Panzer Militaria, em Timbó (SC) que fabricava objetos nazistas. Isso em 2021, mas há mais exemplos a serem citados.

Temos visto as representações destas masculinidades tóxicas nas mais diversas manifestações cotidianas que passam quase despercebidas. E não é que, quando o (des)presidente aparece em público, está sempre rodeado de pitbulls mal-encarados? As suas apresentações são mostradas para captar a imagem de homem viril, másculo, desportista, rodeado de pares tatuados. Quais representações senão a de masculinidade tóxica? E quando disse que a filha mulher veio de uma “fraquejada?” Ou quando, em 2016, respondendo a deputada Maria do Rosário, disse que “Ela não merece [ser estuprada] porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria”? E poderia narrar muitos outros desses covardes atos – sim, covardes porque se apoiam na truculência e na violência como prova de superioridade.

O que dizer de uma população que elegeu um ex-militar conhecido por sua apologia à tortura e por seus comentários agressivamente machistas, homofóbicos, racistas e supremacistas? 

Os exemplos de manifestações supremacistas mostram isso, como quando ele, o (des)presidente, em maio de 2020 aparece bebendo um copo de leite, numa simbologia da supremacia branca. E, lembro que, em janeiro de 2020, o Secretário Nacional da Cultura do atual (des)governo, Roberto Alvin, proferiu um discurso oficial semelhante ao de Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, tendo ao fundo a sinfonia de R. Wagner, um furioso antissemita.

Adriana Dias encontrou um material que é prova irrefutável do apoio de neonazistas brasileiros ao hoje presidente da República quando, em 2004, era apenas um barulhento e improdutivo deputado, e que a sua base é, há quase duas décadas, composta por neonazistas. Isto diz muito do que vivenciamos hoje, muito. 

O que dizer do movimento Escola Sem Partido que, desde 2015, vem infernizando a vida de professores e professoras? O mote era, e continua sendo, o que chamam de “ideologia de gênero” com explícito teor de ódio às mulheres, às sexualidades e às inclusões de temas contra a proliferação de preconceitos. Inconstitucional, mas mesmo assim fez estragos irrecuperáveis na educação e na vida de profissionais da educação. 

O professor Luiz Felipe Miguel situa as bases sobre as quais o grupo em torno deste movimento promoveu o clima de “pânico moral”, transmitindo a impressão de que muitas instituições, especialmente pelas ligadas à educação, estavam solapando os valores da família tradicional por meio da chamada “ideologia de gênero”, produzida pelos setores mais conservadores da Igreja Católica e adotada no Brasil também por outras denominações religiosas, evidenciando na construção da visão de mundo da extrema direita brasileira no poder. 

Então, o “caso Monark” está movimentando as redes sociais e os discursos nestes dias (7 de fevereiro), evidenciando como influenciadores manifestam suas convicções racistas, nazistas e outras mais. O episódio do Flow Podcast, no qual Monark (Bruno Aiub) defendeu o nazismo como liberdade de expressão – isso na presença dos deputados federais Kim Kataguiri (Podemos-SP) e Tabata Amaral (PSB-SP). A manifestação do youtuber, que foi acolhida por Kataguiri, é mais uma das atitudes descabidas resultantes da impunidade mancomunada aos despropósitos deste governo. Ah, o Monark pediu desculpas, chorou as pitangas num vídeo, quem tem pena dele? Eu não.

Só pessoas ignorantes ou de má-fé associam o Nazismo com liberdade de expressão e reivindicam a volta de um Partido Nazista. Como pode um deputado não reconhecer este contraditório? Pode. E não é ingenuidade, é projeto político mesmo. O que os senadores fizeram com as manifestações explicitamente nazistas do (des)governo e de vários de seus ministros e assessores? A impunidade faz proliferar grupos neonazistas e proto-fascistas a olhos vistos.  

Apesar de tantas impunidades e manifestações nazistas em atos e publicações, parte está sendo criminalizada. Monark foi demitido. Assim também foi Adrilles Jorge, comentarista da Jovem Pan, assim como foram outros, o que não garante que caiam no limbo cibernético – terão guarida em outros grupos negacionistas, extremistas, fascistas, machistas, por certo. 

Sim, “a liberdade de expressão não pode servir para violar o princípio da dignidade humana”, conforme parecer do Supremo Tribunal Federal (STF). Mas, cuidemos, porque estas punições vêm pela força das pressões nas redes sociais e na esteira de que não existe direito absoluto numa sociedade democrática. “A liberdade de expressão não é ilimitada. Ela não autoriza manifestação discriminatória ou preconceituosa”, disse o promotor de justiça do Grupo de Atuação e Combate ao Crime Organizado do Rio de Janeiro (Gaeco-RJ). 

No mesmo patamar em que gritam os extremistas por liberdade de expressão e o direito de violentar estão os bens jurídicos – o direito à vida e a dignidade da pessoa humana são inegociáveis. São DIREITOS HUMANOS. 

Para finalizar, defender os valores éticos e fundamentais de preservação dos direitos das pessoas de existirem com dignidade deve ser a pauta de todas as crenças, ideologias, partidos políticos e da sociedade. Tomemos tento nas próximas eleições. Muito cuidado. 

Por uma educação e cidadania que elimine a produção de masculinidades tóxicas, valorize as pessoas e lhe permitam os direitos de existirem em paz. Muitas de nós sabemos o que é viver num mundo de violências, num país onde o patriarcado, o racismo e os efeitos perversos do capitalismo reverberam no cotidiano.

“Em nome de interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam. Abdicar de pensar também é crime”. Hannah Arendt.

Marlene de Fáveri, 13 de fevereiro de 2022. Florianópolis.

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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