Brasil, 30 de outubro de 2022. Não era um domingo como os outros, estava posto e sabido por toda a população que neste dia seria eleito o presidente da República. Pessoas com entendimento do que representava esta escolha sabiam que a disputa apontava para dois projetos antagônicos de futuro. Quem viveu este dia sabe bem das tensões que esgarçavam, mesmo que em silêncio digitassem na urna suas escolhas.

De um lado, pessoas brandiam a bandeira do país como se fosse sua roupa almejando a continuidade de um governo beirando ao despotismo. Manifestavam a extinção das instituições democráticas, a volta da nefasta e mortífera ditadura militar, o fim de projetos sociais e inclusivos, a aversão aos direitos humanos, à ciência e à vacina, bramindo armas como fetiche do falo, empunhadas em rompantes de ódio cravado nos corações por discursos medonhos espalhados aos milhões pelas telas cibernéticas. Nos púlpitos sanguessugas da fé dos humildes vociferavam ameaças para quem votasse contra o que defendiam.

De outro, pessoas portavam bandeiras, vestiam vermelho ou branco com a esperança de retorno à democracia plena. Estas pessoas sofriam, pois sabiam que os adversários acumulavam recursos da máquina pública, de apoiadores sedentos dos privilégios e nos usos ilícitos na guerra cultural. Mas esbanjavam esperanças de ter de volta um país que já conheceram no qual a preocupação era o fim da fome, da miséria social, das exclusões, do racismo, das fobias, do desmatamento e a garantia dos direitos sociais e humanos, em suma, a dignidade para todas as pessoas. 

A diferença no campo das ideias e ações entre ambos os grupos é profunda. Vencido o pleito, os perdedores inflamaram as ruas, estradas, pontes, praças – o que queriam mesmo? Nem mesmo eles sabem o que queriam.

A retórica discursiva foi tramada para que a maior parte dessas pessoas repetisse palavras de ordem e gestos obscenos como aqueles que saudação nazista. Pasmem, em plena rua, em São Miguel do Oeste (SC), pessoas cantando o hino nacional, guiados por um suposto líder, ergueram as mãos como faziam os adeptos do ditador genocida alemão

Assistimos a situações absurdas que, se não tivéssemos visto, diríamos ser distopia num filme de 80 anos atrás. Santa Catarina, sabemos, recebeu a grande imigração da Europa desde meados do século 19, a maioria de alemães e italianos. Vieram em levas e, após a derrota da Alemanha na Primeira Grande Guerra (1914-1918), essas pessoas foram acumulando na bagagem da memória e da cultura a ideia de serem os únicos a pertencer a este mundo, os melhores, os que mereciam um lugar sem pessoas negras, indígenas, asiáticas, sem outros costumes e com a religião a dar o norte das pautas morais. A ideia de pátria grande – heimat –, de família monogâmica heterossexual e branca, de um Deus que creditavam ser também o único, branco, olhos azuis e derradeiro salvador estava tatuada nas suas lentes de seu mundo fora reproduzida tal qual uma cartilha. 

Quando o Führer atiça os vermes da serpente, nos anos 1930, a guerra cultural estava posta. Aquelas pessoas que já moravam no Brasil e muitos de seus descendentes acreditaram nas promessas do devir sem intromissões de outros povos, culturas e raças.

Durante as perseguições e prisões no decorrer da Segunda Guerra, em Santa Catarina, pessoas perfuraram subterrâneos, fossos, camadas de paredes, esconderijos onde continuaram a cultuar o nefasto líder alemão. Mas não só isso: incutiram nas suas proles os mesmos ideários de pureza racial, meritocracia, ódio às mulheres, militarismo, armas, família, deus e pátria. Resultou no que vimos por estes dias. 

Ora, estamos em 2022. Aquelas pessoas não vivem mais. São seus descendentes a acariciar os ovos e tirar as cascas e embalar as serpentes, como estão fazendo agora, nos dias após a eleição e da vitória do oponente. Muitos são jovens e me pergunto no que pensam, o que os move, no que acreditam, qual futuro querem. Que memória ficará na imaginação das crianças usadas para fazer um escudo no ato antidemocrático? O que, às perguntas inocentes, responderam os adultos? Assim se chocam os ovos de serpentes, expressão que denota que tudo, ao nascer, pode ser altamente pernicioso e causar o mal. 

As imagens e atos repugnantes que encheram os noticiários destes dias são claros. Se as pessoas que fazem a saudação nazista sabem o que estão fazendo, é de pensar. Todavia, aqueles que “comandam” e promovem os atos antidemocráticos e nazistas sabem o que fazem. Foi ensaiado meticulosamente como também foi produzida a retórica do ódio e do mal: o comunismo, o feminismo, a democracia, a esquerda, os petistas, as abortistas, o gênero, as pessoas não brancas, as sexualidades são os males a serem extirpados.

A legislação brasileira (Lei nº 9.459, de 15 de maio de 1997) define os crimes de raça e cor: “1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”. 

Mas a Lei não mais os inibe porque tem no que chamam de “chefe” um transgressor das Leis Constitucionais. São hoje no Brasil em torno de 550 núcleos extremistas nazistas com um aumento de 270% entre janeiro de 2019 e maio de 2021, aponta o monitoramento feito pela antropóloga Adriana Dias. Santa Catarina é o estado que mais casos de manifestações nazistas aparecem, como se tem notícias nos últimos meses que antecederam e em seguida das eleições. Na quase totalidade são jovens estudantes, o que me dá o argumento de que a serpente se reproduz nas frestas e alcovas da sociedade.    

O nazismo é um cancro cultural que fez brotar raízes pela insensatez de homens e mulheres. Sentimentos nacionalistas, extremistas e supremacistas estavam sob cortinas e, com o tom fascista de governantes e seus seguidores, tem lugar e condições de mostrar a face obscura. 

Não, nenhum dos manifestantes pró destruição das instituições democráticas nasceu fascista, nazista, racista, machista, xenófobo e com ódio. São sentimentos construídos e apreendidos nas relações dos grupos onde vivem. Santa Catarina, lamentavelmente, foi, e continua sendo, um chocadouro de serpentes.

Por fim, deixo claro que nem todos os descendentes ítalo-germânicos deste Estado são nazifascistas, e uma parte consciente da sociedade escolheu a democracia e depositou suas esperanças contribuindo para eleger Luiz Inácio Lula da Silva, um nordestino que venceu pela retórica da humanidade, da inclusão e da dignidade.

 Marlene de Fáveri, 6 de novembro de 2022. Florianópolis.

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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