Primeiro de abril é Dia da Mentira, e já não sei se a data mantém alguma relevância. Em dias da mentira de anos passados até a BBC já trollou suas audiências, com farsas sobre pinguins voadores e plantações de spaghetti. Falsificar informações para veicular como piada ou paródia pode ser inofensivo, se a pegadinha for evidente, e publicações feitas no dia primeiro de abril costumavam marcar essa diferenciação. Mas mentiras veiculadas em massa e com clara intenção de manipulação viraram parte do cotidiano, e isso desgasta consensos sobre a realidade.

Só nos últimos dois meses passaram pelas nossas telas teorias da conspiração sobre Catherine Princesa de Gales; apoiadores de Trump pervertendo o sentido da sigla DEI (do seu significado verdadeiro, Diversidade Equidade Inclusão, para Didn’t Earn It, que em tradução fica “Não Mereceu”); a campanha orquestrada polemizando sobre a notícia falsa de que o governo Lula liberou o aborto em qualquer tempo gestacional; a “denúncia” performática de Carlos Bolsonaro em Washington; e o Congresso Antifeminista no Auditório Antonieta de Barros da Alesc no dia oito de março. 

Desmascarar lorotas importa, pois a verdade não é um direito garantido. O Brasil já enfrentou 13 tentativas de golpe1, seis delas bem-sucedidas, e nesse dia 31 de março o Golpe de Militar 1964 completou 60 anos. Existem datas e ações que afirmam o direito à verdade e à memória, porém não há menção a um “direito à verdade” na Constituição de 1988 ou na Declaração Universal dos Direitos Humanos

Um jeito de reafirmar nosso compromisso com ela é combatendo a prática de espalhar mentiras para fins escusos de persuasão e influência. Assim, voltarei a algumas das que acabei de mencionar, mas não sem antes estabelecer consenso sobre os significados dos termos fake news e ecossistema de desinformação.

De forma ampla, a Unesco emprega o termo desinformação para se referir a falas, mensagens, textos, imagens e conteúdos falsos e de impacto negativo. 

Na última década, o termo em inglês fake news (notícias falsas) entrou para o vocabulário comum carregando um sentido específico: obter capital social e político através da criação e distribuição de mentiras e desinformação. A relevância cultural da prática é tanta que, em 2016 e 2017, o termo foi escolhido como a palavra do ano por três instituições2. Quase uma década depois, fake news seguem sendo um problema midiático multifacetado3, e há boas sistematizações4 de seus significados e abrangência. 

Há também um campo de pesquisa, em diferentes áreas5, para quem o termo fake news não dá conta da complexidade do cenário informacional, e que se refere a um ecossistema de desinformação política. A pesquisadora e co-fundadora do Observatório da Desinformação da Unicamp, Eliara Santana, faz alertas bastante públicos sobre suas engrenagens no cenário brasileiro.

A professora Leda Gitahy, do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências, também da Unicamp, analisa de forma ampla como a desinformação tem sido utilizada para fins políticos. Coordenadora do Grupo de Estudo da Desinformação em Redes Sociais, Gitahy ainda afirma que há “um ecossistema que usa a desordem da informação em seu favor e a provoca ativamente. Ele é intencional, organizado e tem muito dinheiro”.

Em 2024, a Alesc foi palco – e justo no Dia Internacional das Mulheres – para o 1º Congresso Antifeminista de Santa Catarina. Segundo a cobertura do evento feita pela Agência de notícias da Assembleia, o objetivo era dar “tom otimista e de comemoração” à efeméride.

A justificativa da deputada organizadora foi de que “nunca se fala de forma positiva sobre a data”. Aí temos uma desinformação facilmente verificável como mentira: as felicitações, chocolates e flores costumeiramente oferecidos neste dia evidenciam que já há quem faça do oito de março um dia festivo.

A deputada também disse querer demonstrar que existem mulheres não feministas, e mentira não é. Mas ela não precisava ter usado dinheiro público num congresso para isso, visto que abundam espaços onde nem a palavra feminismo é bem-vinda.

Uma das palestrantes do congresso, pedagoga, tratou do tema “Não existe feminista cristã”. Esta é mais uma desinformação verificável como mentira, visto que as Católicas Pelo Direito de Decidir são um grupo organizado desde 1993, e não é incomum a presença de evangélicas feministas aqui mesmo no Catarinas. 

Um estudo do departamento de Psiquiatria da USP demonstrou maior sofrimento psíquico de mulheres durante a pandemia de Covid-19, mas outra palestrante, em outro ato questionável de desinformação, atribuiu o crescimento nos casos de doenças mentais em mulheres à “revolução sexual feminina”. Esta mesma palestrante também declarou que “sexo fora do casamento é tão grave quanto matar” e, como boa antifeminista, não se responsabilizou pela fala, a atribuindo à providência divina: “Não sou eu que estou falando, é Deus, está na Bíblia”, disse em entrevista, sem citar onde. 

A última palestrante também se escorou em mentiras ao negar que a entrada da mulher no mercado de trabalho foi uma conquista feminista, premissa que até poderia levar a reflexões interessantes, não fosse a afirmação baseada no entendimento errôneo de que “as primeiras mulheres a terem profissão foram as freiras católicas, em 1900”. Chega a ser constrangedor e ofensivo, pois mulheres trabalhadoras, freiras católicas e perspectivas feministas existem desde bem antes de 1900.  

Não é de hoje que o antifeminismo busca restaurar padrões patriarcais e atacar os direitos das mulheres, e importa reconhecer a ação das sujeitas universais neste estado de coisas. Sobrou perversidade no uso de verba pública para um festival de desinformação.

Mas também faltou profissionalismo da agência de notícias da Alesc ao publicar uma reportagem tão enviesada, sem pesquisar fatos para rebater as mentiras. O jornalismo pode e deve ecoar diversas vozes, mas verificando fatos e apresentando evidências da realidade, especialmente em meio ao caos criado pelas mentiras e fake news do ecossistema de desinformação dos nossos tempos.

Para o especialista em desinformação digital da Universidade de Cardiff, Martin Innes, muitas campanhas de influência são calculadas para provocar reações emocionais, inflamar divisões, e aprofundar o senso de caos social (NYT). Este ano, investigando a origem de afirmações espúrias sobre a princesa Catherine do Reino Unido, ele e sua equipe traçaram a origem de 45 contas de redes sociais a uma rede de desinformação ligada ao Kremlin, a mesma rede que já havia espalhado histórias divisivas sobre Volodymyr Zelensky e o apoio da França à Ucrânia. 

No final de fevereiro, uma nota técnica do Ministério da Saúde sugeriu mudança no prazo gestacional de procedimentos abortivos já permitidos pela lei brasileira. Menos de 24 horas depois, a Ministra da Saúde Nísia Trindade revogou a nota, mantendo a orientação anterior.

Ou seja: nada mudou na legislação de aborto no Brasil, mas esse breve período foi tempo suficiente para que grupos fundamentalista espalhassem, de forma orquestrada e maciça, a desinformação verificável como mentira de que “o governo Lula liberou o aborto em qualquer tempo gestacional”.

O fato é que com ou sem nota técnica a regular, a legislação brasileira não estabelece prazo limitante para a realização do procedimento. 

Jair Bolsonaro tem usado sua absolvição pela acusação de importunar uma baleia, e a localização dos móveis dados como roubados do Alvorada, como exemplos de suposta perseguição, igualando estas às notícias sobre sua participação na tentativa de golpe de estado de 2023.

Quando esteve nos Estados Unidos agora em março, o deputado federal Eduardo Bolsonaro usou retórica semelhante à do pai, e em vídeo curto o defendendo, invoca o caso da baleia segundos antes de sugerir que as acusações sobre o golpe são falsas. 

A gravação foi feita na rua em palco enjambrado, pois Eduardo foi vetado de uma audiência que propôs ao Congresso norte-americano, para falar sobre o “sistema totalitário do Judiciário brasileiro”. Com inglês ruim (e plena liberdade de ir e vir, algo impossível para quem combate sistemas realmente totalitários), Eduardo delira afirmando morar no seu “próprio filme sobre a Gulag”, o sistema de campos de concentração soviético. Além disso, mente sobre a existência de campos de concentração no Brasil, e sobre nossos juízes serem nomeados pelo partido comunista. 

A normalização da mentira é um dos efeitos da perversão ou diluição do sentido das palavras, outras duas formas de movimentar a desinformação pelo ecossistema. Durante sua primeira campanha para a presidência dos EUA, por exemplo, Donald Trump usou muito o termo fake news para desqualificar notícias sobre suas próprias más práticas. Em 2021 Jair Bolsonaro disse sofrer com fake news, mas também que elas são “parte da vida”, desmerecendo a necessidade de regulamentação. 

Mas, só naquele ano, ele proferiu sete informações falsas ou distorcidas por dia, e em 2023 deixou escapar ter ordenado envio em massa de fake news sobre o processo eleitoral. Sem evidências contra o pleito com urnas eletrônicas, e visando um retorno ao voto impresso, mentiu e desinformou por método.

Espalhar fake news é uma técnica de manipulação de massa do ecossistema de desinformação, e chamar de fake news o que são informações factuais é outra. As duas práticas colaboram para que seja criada confusão sobre o conceito, borrando seus significantes e misturando seus significados, atrapalhando assim os consensos sobre a realidade.

Consensos sobre a realidade, assim como respeito às diferenças e eleições livres, são características democráticas. Desestabilizá-los é um dos pilares da propaganda – este termo que nomeia conjuntos simbólicos de implantação de regras, normas e ideais. Não é uma questão pessoal ter nervos para lidar com fake news, como alguns tentam fazer parecer ser6. E nem todo mundo prefere viver negando as aparências e disfarçando as evidências da desinformação. Chega de mentiras.

Até porque desestabilizar consensos sobre a realidade, como prática autoritária, aparece também em comportamentos patriarcais. O gaslighting, que é quando se distorce informações para deslegitimar a imagem da mulher colocando-a dentro de uma forma louca e histérica de ser, é um bom exemplo dessa manipulação no campo individual.

E um bom exemplo desta mesma lógica no contexto social foi a caça às bruxas. As mulheres não foram queimadas nas fogueiras da inquisição por serem bruxas, mas sim transformadas em bruxas por mentiras e difamação até que fosse aceitável queimá-las na fogueira. Foi uma espécie de equivalente medieval de propaganda, fake news, e desinformação, afinal, o que tornou a imagem de mulheres insubmissas na de seres diabólicos.

Notas de rodapé

1 –  Carlos Fico via Luiz Costa, em O Espectro de 1964, Revista Cult 31 de março de 2024.

2 –  Em 2016 pelo Macquarie Dictionary; em 2017 pelo Collins Dictionary e American Dialect Society. (Wikipedia).

3 –  Müller, F. de M., & de Souza, M. V. (2018). FAKE NEWS: UM PROBLEMA MIDIÁTICO MULTIFACETADO. Anais Do Congresso Internacional De Conhecimento E Inovação – Ciki, 1(1). Recuperado de https://proceeding.ciki.ufsc.br/index.php/ciki/article/view/511.

4 –  Alguns exemplos: (1) Edson C. Tandoc Jr., Zheng Wei Lim & Richard Ling (2018) Defining “Fake News”, Digital Journalism, 6:2, 137-153,DOI: 10.1080/21670811.2017.1360143; (2) Gelfert, Axel. “Fake News: A Definition.” Informal Logic, volume 38, number 1, 2018, p. 84–117. https://doi.org/10.22329/il.v38i1.5068; Baptista JP, (3) Gradim A. A Working Definition of Fake News. Encyclopedia. 2022; 2(1):632-645. https://doi.org/10.3390/encyclopedia2010043; (4) Wang, C.-C. (2020). Fake News and Related Concepts: Definitions and Recent Research Development. Contemporary Management Research, 16(3), 145–174. https://doi.org/10.7903/cmr.20677.

5 –  Alguns exemplos: (1) Ares, Graziela, et al. “Memória e desinformação: os ataques da extrema-direita às universidades brasileiras.” Relações Internacionais 73 (2022): 53-66. https://hdl.handle.net/10316/101117; (2) Junior, I. F. B., Naspolini, S. H. D. F., & Picazio, J. R. A. (2023). ECOSSISTEMA DA DESINFORMAÇÃO POLÍTICA: ANÁLISE DOS MECANISMOS DE DISSEMINAÇÃO DA DESINFORMAÇÃO NO BRASIL. Revista de Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídica, 8(2)  https://indexlaw.org/index.php/culturajuridica/article/view/9203/pdf ; (3) FERREIRA, Eliara Santana. Desinformação, desinfodemia e letramento midiático e informacional–um estudo do processo estruturado no Brasil sob o governo Jair Bolsonaro e as formas de enfrentamento. Scripta, v. 25, n. 54, p. 96-128, 2021. https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=8189788; e (4) Posetti, J., & Bontcheva, K. (2020). Desinfodemia: Decifrar a desinformação sobre a COVID-19. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000374416_por.

6 –  Fagundes, Carolina Leoni, and Helena Iracy Santos Neto. “O Tratamento da mídia a uma mulher chefe de Estado.” Revista Extraprensa 12 (2019): 363-376. https://portalintercom.org.br/anais/nordeste2016/resumos/R52-0856-1.pdf

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