O ano era 2006, e lá estava eu, jovem universitária, realizando minha pesquisa no presídio feminino. Outras tantas visitas já tinham ocorrido, sabia de muitas injustiças, conhecia alguns relatos, já havia conversado com algumas sobre a situação de sua pena, mas aquele dia era diferente. Dias antes, eu fui assaltada em um fim de tarde.
Dois homens, tão ou mais jovens que eu, se aproximaram armados e levaram minha bolsa. Mesmo com toda a compreensão sobre desigualdade social e o impacto na violência urbana, a revolta com o ato foi algo inevitável.
A revolta me acompanhou na visita ao presídio. Era um dia frio de julho, em um presídio sem janelas cobertas, e eu conversava de maneira distante com as mulheres que ficavam em uma ala reservada a grávidas e mulheres com crianças de até três anos de idade, isso até reparar manchas de sangue em uma escadaria que levava ao dormitório.
Eu, com certo desdém: “não acredito que vocês brigaram”. A resposta: “antes fosse”. Da resposta, tenho o relato de que no domingo anterior, uma das mulheres grávidas teve contrações. As outras presas avisam os agentes penitenciários, que dizem a elas “a mandem ficar quieta, que não é hora de ter filho”. Horas passam, a mulher tem dor, até que a bolsa estoura, e mais um aviso é dado. Dessa vez lhe dizem “manda ela vir até a portaria que a gente leva para o hospital”. Mas não deu tempo. À noite de um
domingo, em que fazia 8ºC, nasce um menino em uma escadaria. As presas pedem socorro e cobertas. Nenhum agente auxilia mãe ou filho – “essa aí pode estar aidética”.
Depois de mais de uma hora, mãe e filho são socorridos. O menino precisou ser internado na UTI e talvez ficasse com sequelas. O meu relato não é exceção. A violência contra presos no Brasil é um dado
alarmante. Recentemente, o Ministério Público Federal, em ação de improbidade administrativa, denunciou tortura, maus tratos e tratamento desumano no complexo penitenciário de Americano, em Santa Izabel, no Pará – há falta de alimentação, medicamentos, além de empalamento e perfuração dos pés dos presos. Mas e as mulheres?
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As mulheres não são compreendidas como sujeitos em instituições prisionais. Há uma invisibilidade em relação ao tema, que faz com que passem desapercebidas violações específicas de gênero. Isso, ignorando o dado que entre 2006 e 2016, o número de mulheres privadas de liberdade aumentou 656% – de seis mil para 42 mil (Infopen Mulheres, 2018). O Brasil é o quarto país com maior população carcerária feminina no mundo.
A mulher presa no Brasil tem o rosto de uma jovem (50% têm de 18 a 29 anos), negra (62%), com o ensino fundamental incompleto (50%), com um filho (18%) ou mais (57%). E essa mulher foi presa por tráfico (62%) – Infopen Mulheres, 2018. Os dados nos falam de uma realidade já conhecida no Brasil: a pobreza é punida com prisão. Mas há um dado importante no caso das mulheres: a maior parte não representa um papel importante no tráfico de drogas e a maioria ingressa no tráfico em busca de
um meio de sustento dos filhos.
Nesse ponto nos questionamos da eficácia da pena de prisão a esses crimes. Primeiramente, essas mulheres têm filhos, e o destino deles é afetado de forma drástica com a prisão. Não raro, os filhos não contam com a figura do pai, tendo na mãe a única referência familiar. Com a prisão, os filhos ficam aos cuidados de parentes ou são mandados a abrigos para adoção – e assim se repete um ciclo do abandono e de violência.
Outro ponto são as instituições prisionais. As barbáries que ocorrem em presídios masculinos também acontecem em instituições voltadas às mulheres, com o incremento da “neutralidade de gênero”. Entre os itens de higiene básica não consta absorvente. A família que leve, alguma universidade faça uma campanha… não tem? Que a mulher resolva com miolo de pão.
E visita íntima? Algumas instituições entendem que mulheres são assexuadas, dificultando o acesso. Bem, e se a mulher fizer sexo e engravidar? Tenha seu filho algemada – mais de um terço das mulheres presas grávidas relatam o uso de algemas na internação para o parto (Nascer nas prisões, Fiocruz, 2017).
Os dados da realidade das mulheres aprisionadas no Brasil, combinados com relatos de uma prisão, que vão de “tratamento” de um tumor uterino com aspirina à punição por desacato com a transferência de uma mãe para a ala das infanticidas, levaram aquela menina de 2016 a questionar quem são as pessoas presas e quais as condições que elas (sobre)vivem. Se o seu feminismo e sua militância não enxergam essas
mulheres, está na hora de você abrir os olhos.
*Lívia de Souza é feminista, cientista política, mestre em Direito, doutoranda em Ciência Política na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (NEPEM/UFMG).