A violência doméstica é um fenômeno mundial que perpassa todas as culturas, etnias, políticas econômicas e regimes políticos. O início da visibilidade à questão da violência doméstica, que até então permanecia no âmbito do privado, se deu sobretudo, pelo fortalecimento do movimento feminista, ao final dos anos 1960. A característica mais marcante da atuação feminista é a luta por questões mais específicas das mulheres como o combate às violências doméstica, sexual e policial, e a garantia dos direitos ao exercício da sexualidade, ao aborto, à igualdade salarial e ao acesso aos equipamentos sociais.

Apresento nesse texto um breve relato de luta contra a violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras, no sentido de pontuar alguns avanços obtidos (e retrocessos) ao longo das últimas décadas, atualizando dados da temática, abordada por mim em pesquisa realizada em 2000.

O assassinato de Ângela Diniz, pertencente à alta burguesia, amplamente divulgado pela mídia em 1976, levou o movimento feminista brasileiro para a rua pela primeira vez para protestar contra a impunidade do agressor. “Quem ama não mata” foi um dos primeiros slogans do movimento, então organizado com o objetivo de monitorar, acompanhar e pressionar os representantes da justiça para solucionar casos de mulheres assassinadas por seus companheiros.

Nesse mesmo ano, feministas do Rio Janeiro criaram a Comissão da Violência Contra a Mulher exigindo que o tradicional argumento “defesa da honra” não fosse mais tolerado pelas mulheres e pela sociedade em geral, para justificar o assassinato de mulheres e para facilitar a visibilidade dos crimes cometidos dentro do espaço privado.

Ainda, no início dos anos 1980, identificada as necessidades legais específicas das mulheres, partiu-se para a conquista de políticas públicas que contemplassem essas demandas, como as Delegacias de Defesa das Mulheres e os Conselhos da Condição Feminina. Com essas conquistas, o fenômeno da violência doméstica ganha maior visibilidade.

O movimento feminista no Brasil coloca a questão da violência doméstica a partir de 1980, período em que é fundada a organização SOS Mulher em São Paulo, que na sequência expande-se para o Rio Janeiro e Pernambuco. Em Minas Gerais foi criado o Centro de Defesa da Mulher, organizações autônomas e voluntárias com a missão de atender mulheres em situação de violência. Além da assistência às vítimas, as integrantes faziam grupos de reflexão e discussão dos casos sobre as questões da violência, dando visibilidade ao tema nos meios de comunicação para promover o debate junto à opinião pública e expandi-lo a todo o território brasileiro.

O movimento fez resistência direta ao ditado “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. A mulher que se mantinha calada até então começa a se fortalecer para denunciar e procurar ajuda nesses grupos feministas. Com a ampliação na divulgação desses casos foi se fortalecendo a necessidade de políticas públicas para acolher e dar respostas, cria-se então com muita luta do movimento das mulheres as delegacias específicas, espaço para atender essa demanda já que o atendimento na delegacia geral era caracterizado pela dupla agressão por parte dos atendentes.

Com a criação dessas delegacias, a demanda reprimida ganha corpo e visibilidade e traz à tona uma realidade até então oculta: passam a ser registrados com maior precisão os tipos de violência cometidos contra as mulheres.

O que fortalece a necessidades de medidas concretas de combate as violências sofridas, assunto ate então proibido. O que era eminentemente doméstico começa a se tornar publico. Os casos registrados viram estatísticas e comprovam a urgência de  políticas públicas em coibir, prevenir e promover o combate as violências de gênero.

Em termos mundiais, temos a primeira  Conferência Mundial da Mulher, que ocorreu em 1975 no México, com o lema Mulher e Desenvolvimento. Nessa ocasião, a Organização da Nações Unidas (ONU) designou o período que compreende 1975 a 1985 , como a “Década da Mulher”.

Em 1998, a Organização Mundial da Saúde (OMS) desenvolveu uma campanha “Uma vida sem violência é um direito nosso”, o governo brasileiro participa desta campanha por meio da Secretaria dos Direitos Humanos, visando construir um pacto de combate à violência.

Nesse mesmo ano, o movimento feminista em todo mundo definiu dia 25 de novembro como o Dia Internacional pela Eliminação da Violência  Contra as Mulheres. Essa data foi estabelecida no I Encontro Feminista Latino Americano e Caribenho realizado em Bogotá 1981, em homenagem às irmãs Mirabal assassinadas na ditadura da Republica Dominicana, nos anos 1960.

A violência contra as mulheres, lembrada e combatida durante a Campanha do 16 dias de ativismo no mundo, foi debatida em 1995 na IV Conferência Mundial sobre a Mulher: Igualdade, Desenvolvimento e Paz, realizada em Pequim, China, pelas Nações Unidas, ocasião em que 130 países estiveram representados com a participação de 35 mil mulheres.

 O que dizem os dados

Por conta das lutas incessantes, a violência que tira a vida das mulheres ganha visibilidade e passa a ter nome: feminicídio. A lei do Feminicídio entrou em vigor em 9 março de 2015 e tipifica assassinato por crime de gênero. Segundo os registros dos atendimentos nas delegacias, as mulheres sofrem quatro vezes mais violência que os homens, o que demonstra uma rotinização intensa da violência intrafamiliar. Em termos atuais, temos os seguintes dados: em 2018 entre as vítimas de agressão física, 87% são  mulheres. Em números absolutos em 2018, 1206 mulheres foram assassinadas e houve 263.067 boletins de mulheres agredidas.

 

A Lei Maria da Penha

A Lei Maria da Penha, assim conhecida a Lei 11.340/2006, que visa ao enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher, foi uma grande conquista do movimento feminista e de defensoras dos direitos humanos. Mobilizados de forma atuante, com muita luta essa poderosa lei foi aprovada e prevê que agentes e instituições públicas hajam em conformidade para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher.

A lei estabelece diretrizes claras e bem definidas sobre o dever do Estado, as instituições e a sociedade para punir e erradicar a violência contra mulher. Para cada mulher assassinada o Estado deve executar medidas e políticas reparatórias que possam reduzir os danos gravíssimos causados à vítima, seus familiares e a comunidade.

É necessário romper o silêncio para que esses crimes sejam esclarecidos, ao se manter a impunidade, somos todos cúmplices da violência, não podemos deixar que as políticas reparatórios e preventivas não sejam cumpridas.

A posição do Brasil no quinto lugar como país onde mais se mata mulheres revela o quanto temos que manter a nossa luta para visibilizar esses crimes de gênero: que sejam devidamente registrados, com plena investigação das causas e circunstâncias. Que os violadores, assassinos sejam devidamente punidos.

Estabelecer medidas reparatórias e concretas são iniciativas que favorecem o enfrentamento ao feminicídio e a construção de políticas públicas que efetivamente contribuam para a erradicação da violência de gênero, seja assédio moral, violência psicológica, física, patrimonial ou sexual, as mulheres têm direito a viver e usufruir plenamente do direito fundamental à vida.

Recentemente, a Lei 13.641/2018 passou a criminalizar a conduta de descumprir a decisão judicial que desvende medidas protetivas de urgência, prevendo a pena de três meses a dois anos de detenção.

Ainda assim, o número de denúncias de violações contra as mulheres é preocupante: em 2018, a Central de Atendimento a Mulher (ligue 180) recebeu 92,6 mil ligações, e em 2019 nos primeiros 6 meses 46,5 mil denúncias, um aumento de 10% em relação ao mesmo período do ano anterior.

A maioria é referente à violência doméstica e familiar (35,7 mil), seguida por tentativa de feminicídio (2,6 mil), segundo dados do Conselho Nacional de Justiça. A magnitude desses dados são alarmantes e revela que o país vive uma real epidemia de violência contra as mulheres.

Referências
TAVARES, Dinalva Menezes. Violência doméstica: uma questão de saúde pública [Dissertacão de Mestrado FSP/USP], 2000.  Prêmio de incentivo em ciência e tecnologia para o SUS 2002-  Ministério da Ciência e Tecnologia. Disponível aqui.

TELES, M. A .Breve história do feminismo, São Paulo, Alameda Casa Editorial, 2017.

*Dinalva Menezes Tavares é psicóloga, doutora saúde pública e ativista por 38 anos no movimento feminista.

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