O filósofo Michel Foucault, em curso ministrado no Collége de France, nos anos de 1976 e 1977, publicado no Brasil sob o título “Em Defesa da Sociedade” (FOUCAULT, 2018), identificou uma forma particular de discurso historiográfico, produzido a partir do antagonismo binário entre grupos sociais. Esse discurso foi acionado de forma constante, em vários contextos geográficos e diferentes momentos históricos, para as mais diferentes finalidades, desde a conservação de privilégios da nobreza francesa, à identificação da burguesia com a Nação emergente após a Revolução. Foucault ainda afirmou que esse discurso, vinculado à ideia arcaica de “luta das raças” ou “guerra das raças” foi útil para a consecução de determinados projetos políticos ou, mais ainda, se constituiu em forma determinada e deliberada de exercer a política.

Foucault ainda vinculou o tema da “guerra das raças” com outro conceito central em seu pensamento filosófico: o “biopoder”. Os temas vinculados à natalidade, à mortalidade, à gestão da saúde da população, enfim, tudo o que se relacionada ao poder de “fazer viver” da população, tida como novo sujeito político, constituem-se em objeto do que Foucault denominou de “biopoder”.

Na aula final de seu curso, demonstrou como o discurso da “guerra das raças” foi utilizado pelo Estado Nazista que, a pretexto de “purificar o povo alemão”, valeu-se de teorias pseudocientíficas para exterminar vastos contingentes populacionais, considerados em desacordo com os ideais de normalização populacional de um Estado assassino. A este poder, uma variante do “biopoder”, Foucault denominou “tanatopoder” (FOUCAULT, 2001 e 2018).

Em desdobramentos mais recentes, com foco no contexto colonial, Achille Mbembe superou o conceito de “tanatopoder” e destacou que em determinados locais do planeta, a violência e a morte não se constituem em anomalias ou exceções, mas são instrumentos da própria política cotidiana, em estado de guerra permanente. Para Mbembe, os conceitos de “biopoder” e “tanatopoder” já se encontram superados, sendo legítimo falar-se em uma “necropolítica”, ou seja, a morte como instrumento incorporado às decisões políticas cotidianas em determinados contextos (MBEMBE, 2016).

O ponto comum nas análises de Michel Foucault e Achille Mbembe —  hostilidade e coesão social como verso e reverso da mesma medalha —  permite desvelar a ideia de que o ódio deve ser entendido não apenas como um sentimento, uma emoção ou uma patologia individual ou grupal, mas como um elemento estrutural e constitutivo das relações de poder que perpassa os mais diversos contextos geográficos e históricos. Mesmo nas raras situações de “paz social”, o ódio circula no tecido social, em estado latente, pronto para ser acionado e demonstrar sua força avassaladora.

A caça às bruxas como manifestação histórica e persistente do ódio às mulheres

Não é exagerado dizer que as mulheres, nos mais diversos locais do mundo e de forma contínua ao longo da história, têm sido alvo preferencial das mais diversas formas de violência que o ódio é capaz de desencadear.

Os estudos da filósofa italiana Silvia Federici são particularmente elucidativos nesse sentido (FEDERICI, 2004 e 2019). Federici demonstra que a caça às bruxas ocorrida na Europa, de forma mais intensa entre os séculos XV e XVII, desempenhou papel central no processo de acumulação primitiva do capital. Federici explica que a transição entre o feudalismo e o capitalismo foi caracterizada pelo fenômeno dos “cercamentos” que se constituíram no movimento de expulsão e desapossamento sistemático de pequenos agricultores, com a finalidade de desarticular as formas comunais de exploração da terra e assim possibilitar a exploração sob as formas intensivas do capitalismo então nascente. Nas formas comunais de produção, as mulheres, notadamente as mais velhas, exerciam grande influência sobre as comunidades.

Tal influência se devia, entre outras razões, ao conhecimento ancestral herdado de várias gerações  de mulheres, no contato com a natureza, no domínio das propriedades medicinais das ervas, nas técnicas de reprodução humana e de contracepção. Tal influência passou a ser exercida na resistência contra os cercamentos e nos protestos contra as expulsões e desapossamentos.

Do vasto contingente de pessoas despossuídas e que passaram a viver na marginalidade e na pobreza extrema, muitas delas eram mulheres, notadamente mais velhas, viúvas e abandonadas pela família. Nesse contexto, seus protestos passaram a ser assimilados a “maldições” e as formas de conhecimento tradicional passaram a ser associadas a poderes demoníacos.

Lentamente, as mulheres foram se transformando em “bruxas”. Essa passagem simbólica foi fundamental para o verdadeiro genocídio que se seguiu:  julgamentos, torturas e execuções públicas de centenas de milhares de “bruxas” no começo da era moderna e de forma coincidente com o nascimento do capitalismo.

Outra importante questão tratada por Federici diz respeito à descrição da sexualidade feminina como algo “diabólico”, traço fundamental da “magia” feminina e que ocupa lugar central na definição de bruxaria. Assim, para o alcance dos projetos de reforma social com a instituição de uma disciplina de trabalho mais rigorosa, era fundamental o controle da sexualidade feminina como fonte de geração de mão-de –obra dócil, útil e abundante.

Não é por outra razão que a associação da sexualidade e do próprio o sexo feminino a instrumentos do diabo é o tema central do Malleus Malificarum, provavelmente o texto mais misógino já escrito em todos os tempos, como observa Federici. O encerramento da sexualidade feminina nos restritos limites do matrimônio, sob o poder patriarcal foi fundamental para a consolidação da ordem burguesa/capitalista. “No capitalismo, o sexo só pode existir como força produtiva a serviço da procriação e da regeneração do trabalhador assalariado/masculino e como meio de pacificação e compensação social pela miséria da existência cotidiana” (FEDERICI, 2019, p. 68).

Sem embargo das tentativas de ressignificação pelos movimentos feministas, os significados negativos e estereotipados das “bruxas” e “feiticeiras” como associadas a algo demoníaco ainda são presentes em várias culturas e representações sociais nos dias atuais. Prova disso é que a perseguição e execução de “bruxas” ainda ocorre em países como Quênia, Tanzânia, Papua Nova Guiné, Benin, Camarões, República Democrática do Congo, Zâmbia e Uganda. Federici reporta que “entre 1991 e 2001, ao menos 23 mil ‘bruxas’ foram assassinadas na África, sendo esse número considerado conservador” (FEDERICI, 2019, p. 112).

No norte de Gana, há registros de “campos de bruxas”, para os quais aproximadamente 3 mil mulheres teriam sido forçadas a fugir, em razão de ameaças de morte em suas comunidades originárias. Tais perseguições são realizadas por caçadores de bruxas que atuam impunemente, à luz do dia, sob o beneplácito das autoridades locais. Justus OGEMBO (2006) destaca, ainda, a influência de seitas caracterizadas pela ênfase no exorcismo que, “tem se aproveitado de crenças indígenas dos gusii sobre forças e poderes místicos, forçando as duas principais denominações do território Gusii a reexaminar suas doutrinas sobre essas questões”.

No Brasil, há registros de que mais de 1.000 homens e mulheres tenham sido julgados pela Inquisição sob as mais diversas acusações: judaísmo, proposições heréticas, bigamia, sodomia, libertinagem, leitura de livros proibidos etc. Dentre os crimes punidos pela inquisição incluía-se a feitiçaria, preponderantemente atribuída ao sexo feminino (NOVISKY, 2002, p. 38), como prática coletiva de estigmatização de mulheres (MELLO e SOUZA, 1986, p. 158).

Nos dias atuais, a história se repete, desta vez sob as vestes do ódio racista e religioso que vitimiza de forma seletiva os praticantes de religiões de matriz africana (BRASIL, MPF, 2018), dentre os quais muitas mulheres. O contexto mostra-se particularmente preocupante quando autoridades estatais, que deveriam desenvolver ações e políticas públicas com vistas à segurança das mulheres de todos os credos e religiões, reforçam arcaicos estereótipos vinculados à “bruxaria”[1].

A violência doméstica como crime de ódio

No campo jurídico, os crimes de ódio, de forma preponderante, descrevem tipos penais em que o autor, de forma voluntária e consciente destrói, lesiona ou expõe a perigo concreto bens jurídicos como a vida, integridade física, a liberdade sexual e o patrimônio, orientado total ou parcialmente pela motivação hostil em relação à real ou percebida, raça, cor, sexo, orientação sexual, gênero, identidade de gênero, religião, etnia, origem nacional, deficiência e em alguns casos, idade, filiação política da vítima (BELL, 2002, p. 35). Sanções penais mais elevadas são atribuídas à prática dessas condutas, na maior parte dos casos, como circunstâncias agravantes de crimes comuns ou formas qualificadas de delitos específicos.

Diante dessa compreensão prevalecente, discute-se acerca da inserção da violência doméstica na categoria dos crimes de ódio. Para alguns, os crimes de ódio exigem a “intercambialidade” da vítima, ou seja, a prática criminosa deve vincular-se ao pertencimento – real ou suposto – da vítima a um determinado grupo identitário. Assim, alguns autores entendem que as peculiaridades das vítimas dos crimes praticados no âmbito da violência doméstica se distanciam desse modelo, já que se direcionam contra uma determinada mulher, e não contra as mulheres em geral (JACOBS e POTTER, 1998).

A resistência em classificar a violência doméstica como crimes de ódio deriva de dois equívocos: o primeiro decorre da incorreta compreensão do fenômeno do ódio contra as mulheres como elemento estrutural e constitutivo das relações de poder no Estado Moderno e o segundo, na insistência em situar a violência doméstica como “’fenômeno privado’ que somente diz respeito à intimidade dos casais” e não como “questão política e social global” (FALQUET, 2017, p. 23).

As já citadas contribuições de Michel Foucault e Achille Mbembe permitem desvelar o caráter constitutivo do ódio, como elemento fundante das relações do poder político e econômico nos Estados modernos, nascidos sob o influxo de hostilidades e antagonismos reafirmadores das nacionalidades e da guerra permanente como forma de garantir a “paz”. No que diz respeito especificamente às mulheres, a já mencionada caça às bruxas na Europa dos séculos XV a XVII é emblemática, por sua importância vital no processo de criação do próprio capitalismo, nos albores da modernidade (FEDERICI, 2017 e 2019).

A persistência das manifestações de ódio às mulheres em vários contextos geográficos e de forma contínua ao longo da história, demonstra seu caráter constitutivo. A América Latina – local em que nove mulheres por dia são assassinadas por razões de gênero –  é o lugar mais letal para as mulheres no mundo, fora de zonas de guerra, de acordo com relatório produzido pela ONU Mulheres.

Em El Salvador, local com as maiores taxas de feminicídio do Continente, Jules FALQUET compara a violência perpetrada pelos maridos, companheiros, namorados contra as mulheres como uma verdadeira “guerra de baixa intensidade”. Tal conclusão é respaldada por diversos relatos documentados de vítimas, em que os ofensores demonstram a preocupação em agredir fisicamente as mulheres, sem deixar marcas, aproximando a violência de gênero às torturas praticadas pelos agentes do Exército francês durante a ocupação da Argélia, ocasião em que o conceito de “guerra de baixa intensidade” foi desenvolvido (FALQUET, 2017).

A despeito da legislação penal de viés punitivo e sanções agravadas, o Brasil permanece como o quinto país do mundo em número de feminicídios. Nos anos de 2017 e 2018, os casos de feminicídios registraram uma alta de 4% em relação ao biênio anterior, somando 2.357 casos, o que significa uma mulher morta por ser mulher a cada oito horas.

A se conservar tal tendência, é possível antever que, em breve, o Brasil subirá sua posição nesse triste ranking. A maior parte dos casos de feminicídios encontra-se atrelada à não aceitação, pelo homem, do final de um relacionamento, o que leva alguns autores a definir tais crimes como “delitos de submissão”, como forma de controle do comportamento da vítima que almeja mover-se para além dos limites que lhe foram socialmente impostos (PERALTA, 2013).

Essas causas, todavia, devem ser analisadas em contexto mais ampliado, de naturalização e perpetuação das relações patriarcais, essenciais para a manutenção do status quo. Dessa forma, “a violência (…) contra as mulheres, muito longe de ser um fenômeno dolorosamente incompreensível ou um lamentável “desbordamento” de crueldade individual, aparece, ao contrário, como uma verdadeira instituição que vincula a esfera privada com a esfera pública, o ideológico/psicológico com o material, e que constitui um poderoso mecanismo de reprodução das relações sociais” (FALQUET, 2017, p. 25).

As relações de poder e o ódio às mulheres

Não há exagero em se afirmar que o ódio contra as mulheres é constitutivo e estrutural, presente nas relações de poder desde o nascimento do capitalismo e da modernidade, sob o signo do patriarcado. Tal conclusão, entretanto, não aponta para o conformismo e nem tampouco isenta os detentores do poder estatal e não estatal de suas responsabilidades no sentido de trabalhar ativamente para sua desconstrução.

A ênfase no caráter estrutural do ódio misógino serve para demonstrar a complexidade do problema e a necessidade de respostas interdisciplinares e mais abrangentes para o enfrentamento do tema.

Velhas soluções como o endurecimento das leis penais já se mostraram insuficientes. São necessários mobilização, coalizões e o ativo engajamento de amplos setores sociais para que o ódio às mulheres seja enfrentado. A sociedade brasileira não pode conformar-se com o vergonhoso crescimento dos números da violência contra as mulheres que destroem nossos afetos, roubam nossos talentos e minam nossas esperanças.

[1] “Às vésperas da visita do presidente Jair Bolsonaro ao Nordeste, um vídeo da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, começou a circular nas redes sociais. Durante discurso, Damares defende que o ‘Nordeste tem manual prático de bruxaria para crianças de 6 anos.’

Referências bibliográficas
BRASIL. Ministério Público Federal. Nota técnica: livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana. Estudo da Relatoria; Estado laico e combate à violência religiosa. Disponível em http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/pfdc/midiateca/nossas-publicacoes/nota-tecnica-livre-exercicio-dos-cultos-e-liturgias-das-religioes-de-matriz-africana.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.

FEDERICI, Silvia. Mulheres e caça às bruxas. São Paulo: Editora Boitempo, 2019.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Volume 1: A vontade de saber. São Paulo: Ed. Graal, 2001.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2018.

FALQUET, Jules. Pax neoliberalia. Perspectivas feministas sobre (la reorganización de) la violência contra las mujeres. Buenos Aires: Ed. Madreselva, 2017.

JACOBS, James B. and POTTER, Kimberly. Hate crimes, criminal law and identity politics. Oxford: Oxford University Press, 1998.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: Editora N-1, 2016.

MELLO e SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 1986.

NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil. Séculos XVI-XIX. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 2002.

PERALTA, José Milton. Homicídios por odio como delitos de sometimiento (sobre las razones para agravar el femicidio, el homicídio por odio a la orientación sexual y otros homicídios por odio). In: Revista para el análisis del derecho. Barcelona: outubro de 2013, p. 1-27.

*Cláudia Maria Dadico é juíza federal.

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