“Venho a esta vara, reiterar minha desistência do prosseguimento das investigações não porque não desejo mais que a justiça seja feita, pelo contrário, mas porque não me encontro mais capaz de mente, corpo e condição econômica, de continuar sacrificando a mim mesma para fazer funcionar um sistema desenhado por homens, para homens. Não desejo permanecer sendo revitimizada por uma instituição tão abissalmente desconexa da realidade das pessoas que deveriam proteger.” (Depoimento de uma vítima de violência doméstica e familiar anexado aos autos do processo criminal por ocasião da audiência realizada em novembro de 2019).
O depoimento chocante de uma mulher vítima de violência doméstica e familiar ocorrido recentemente no Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra Mulher de Florianópolis/SC, reflete uma dimensão de violência que tem sido relegada a segundo plano na intervenção e abordagem do problema: a violência institucional.
Embora a Lei Maria da Penha tenha incumbido o Poder Judiciário, ao lado do Ministério Público, de implantar juizados especializados com o objetivo promover um atendimento qualificado às mulheres em situação de violência, visando garantir assistência e proteção, em recente pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) intitulada “O Papel do Poder Judiciário no Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres”[1] (2019), evidenciou que, passada mais de uma década de existência da Lei Maria da Penha, são recorrentes as queixas relativas à falta de atenção, de amparo, de resposta efetiva do Estado e da demora da Justiça em agir, por boa parte das entrevistadas.
De acordo com o relatório apresentado, apesar de o fenômeno da violência doméstica usualmente seguir uma dinâmica pouco variada, as respostas do Judiciário são muito heterogêneas, a depender de fatores institucionais existentes e do perfil do juiz em cada unidade. Não obstante a ampliação progressiva do número de varas especializadas ou com competência específica na matéria, contando-se atualmente 134 juizados especializados presentes em todas as regiões do país, as dificuldades para concretizar os dispositivos da Lei Maria da Penha são sentidas por todas,/os e, diretamente, pelas mulheres que buscam na Justiça uma esperança para conseguirem sair da situação de violência e risco vivenciados no cotidiano.
Entre as principais dificuldades constatadas pelas pesquisadoras em termos do
atendimento recebido e do processamento dos feitos, é recorrente que as mulheres que têm suas situações de violência doméstica e familiar judicializadas indiquem aspectos relacionados à carência de informações e esclarecimentos, a dificuldade de acesso a representante da Defensoria Pública para a audiência, do pouco espaço de fala em audiência, a não efetividade de medidas protetivas, da falta de unidade quanto às decisões judiciais entre os processos (sejam só criminais ou criminais e da área de família), do reforço de estereótipos de gênero em algumas audiências e da ausência de encaminhamento para atendimento psicossocial e para a rede externa.
Soma-se a esse quadro, a morosidade dos processos e, muitas vezes, a consequente prescrição e impunidade dos agressores, demonstrando o sofrimento causado pela demora, especialmente no âmbito de relações que se restabelecem sem um julgamento da situação violenta e, o mais importante, pela ausência de proteção.
Para muitas mulheres vítimas, desde o atendimento recebido na Delegacia de Polícia, instituição que foi bastante criticada em diferentes cidades, as expectativas foram frustradas desde o primeiro atendimento. A falta de apoio e de acolhimento, descaso, desamparo e até mesmo a recusa de atendimento para a solicitação das medidas protetivas de urgência, têm sido fatores que desencorajam as mulheres vítimas a buscarem a proteção prevista na Lei.
Já no contexto das varas e juizados, mulheres vítimas de violência dizem que sentiram discriminação e descrédito em seus depoimentos. Há casos de sentimento de frustração, mesmo com medidas protetivas e com o processo criminal em tramitação. Para elas, o fato de terem voltado a se relacionar com o acusado causa reprovação por parte dos atores jurídicos e isso faz com que se sintam desconfortáveis nas audiências, além de relatarem ter se sentido pressionadas para avaliar a coerência de seus depoimentos.
Outros fatores, como os transtornos decorrentes de audiências canceladas, a ausência de amparo psicológico quando as mulheres expõem seus sentimentos durante as audiências e a responsabilização das próprias mulheres pelo não cumprimento das medidas protetivas por parte dos acusados são indicados na pesquisa como causadores de sofrimento adicional.
Todos esses aspectos contribuem para que o fenômeno da sobrevitimização aumente a escala dos danos suportados pela vítima. A vitimização secundária é o sofrimento adicional provocado pelas instâncias formais de controle social no decorrer do processo, iniciando-se pelo atendimento policial até a apuração do crime, transformando a vítima do delito em vítima desse sistema, uma vez que, embora incumbidas de garantir os seus direitos, acabam, pelo contrário, reforçando o seu sentimento de descrédito e de desamparo.
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Em decorrência desse quadro, as mulheres entrevistadas, de um modo geral, afirmaram-se desanimadas com o atendimento que lhes foi prestado pelo Poder Judiciário. No entanto, quando perguntadas se voltariam a procurar a Justiça em caso de novas violências ou se indicariam para amigas que estivessem em situação de violência semelhante, a maioria informou que tanto pessoalmente procuraria quanto indicaria para colegas.
A pesquisa aponta que, acredita-se que respostas ambíguas, entre decepções e recomendações, surgiram a partir de um sentimento de conformação, já que as mulheres indicaram a procura da Justiça por reconhecerem se tratar da única instância disponível para lidar com a violência, por entenderem que devem lutar por seus direitos ou por acreditarem na possibilidade de uma justiça, mesmo que tardia.
Embora deva-se reconhecer que algum esforço tem sido empreendido no sentido de capacitar os profissionais envolvidos na aplicação da lei, de desenvolver projetos variados de conscientização e atendimento, inclusive para autores de violência, é preciso enfrentar as dificuldades internas do sistema judicial para concretizar os dispositivos da Lei Maria da Penha.
A especialização dos Juizados vai além da estrutura material e do provimento de servidores e da existência de equipe multidisciplinar, mas exige que sejam viabilizadas condições que vão desde espaço físico adequado para o atendimento, para possibilitar que sejam prestadas as informações à mulher sobre o processo em espaço reservado e não em balcões, demandando tempo e disponibilidade dos envolvidos para realizar essa escuta e orientação qualificada, até a disposição física e de acesso à sala de audiências, para que ela não tenha que encontrar o agressor e outras testemunhas de defesa no corredor dos fóruns, causando novos episódios de pânico e temor pelo confronto ou intimidação.
A garantia de que a mulher seja assegurada à assistência jurídica integral desde o atendimento na Delegacia de Polícia, durante o processo judicial e até o julgamento de eventual recurso, ainda é uma realidade distante em nosso país, em face das notórias dificuldades estruturais da Defensoria Pública, exaurindo a sua capacidade econômica para viabilizar a contratação de advogados privados, quando possui condições financeiras.
Por outro lado, embora a Lei Maria da Penha preveja a competência mista dos Juizados especializados para os processos cíveis e criminais que decorram da violência contra a mulher para garantir a unidade de julgamento em relação às demandas relacionadas à apuração do crime e as de vara de família. Por insuficiência estrutural frente ao elevado número de processos, essas unidades restringem-se ao julgamento das ações criminais e às medidas protetivas, sendo cada vez mais frequentes os casos em que os juízes de família decidem os processos relacionados ao divórcio, guarda e às visitas aos filhos em comum, de forma contrária à decisão do magistrado que determinou as medidas de proibição de aproximação e contato com a mãe que foi vítima de violência, gerando insegurança jurídica e temor para a mulher.
Mesmo prevendo a Lei Maria da Penha a possibilidade do magistrado determinar medidas protetivas à ofendida, com o seu encaminhamento a programa de proteção na rede municipal para viabilizar o atendimento necessário, sobretudo psicológico, após o episódio de violência, durante e após o(s) processo(s) judiciais, ainda são escassos os encaminhamentos nesse sentido, seja pela insuficiência dos serviços disponíveis no município, seja porque, após o julgamento das ações, não é possível realizar-se o monitoramento e acompanhamento da situação de risco vivenciada pela vítima, que, inclusive, é aumentado em razão do processo judicial.
Por fim, é preciso enfrentar concepções heterogêneas no enfrentamento das convenções tradicionais de gênero pelos operadores jurídicos, pois são frequentes as controvérsias sobre a interpretação da lei e sobre os próprios limites do Poder Judiciário em implementar políticas e em atender mulheres, como indicou o relatório da pesquisa. Alguns profissionais não acreditam que o Judiciário tenha o papel de dispensar atenção especial às mulheres, mostrando-se indignados frente a ampliação da atuação pública na área ou ao que se referem como “uso indiscriminado do Direito Penal”.
Muitos magistrados, promotores de Justiça e defensores públicos, inclusive, demonstram certa frustração em sua atuação cotidiana diante do excesso de processos, escassez de pessoal e a cobrança por celeridade e produtividade, mas, sobretudo, diante da impotência do poder público em garantir proteção efetiva às mulheres, seja frente as idas e vindas na dinâmica das relações entre elas e seus agressores, às dificuldades para monitorar as medidas protetivas ou ao próprio caráter estrutural da violência doméstica.
Se os dados produzidos nos indicam que estamos distantes do atendimento humanizado e do ideal protetivo almejado pela Lei Maria da Penha às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, também nos mostra que o caminho a ser construído vai além das campanhas de conscientização e ações de capacitação dos operadores, mas demanda responsabilidade e compromisso das instituições do sistema de Justiça para refletir sobre as necessidades apontadas e superar as dificuldades no funcionamento das unidades, para que não se transformam, elas mesmas, em fonte de angústia e desesperança para muitas mulheres que recorrem ao Poder Judiciário como última instância de socorro e proteção.
*Helen é promotora de Justiça titular da 34ª Promotoria de Justiça da Comarca de Florianópolis/SC, com atribuições no Juizado da Violência Doméstica e Familiar da Capital. Mestre e Doutora em Direito, Estado e Sociedade pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (GEVIM), do Centro de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público de Santa Catarina.
[1] Disponível em https://www.cnj.jus.br.