A luta pelo fim da violência contra a mulher deve começar pelo fim de todo o silêncio sobre o assunto. Duas experiências recentes me marcaram profundamente, e desejo compartilhá-las, para refletir um pouco sobre seu significado, dentro do amplo espectro de discussão sobre a violência enfrentada pelas mulheres, no Brasil e em toda parte.
A primeira experiência aconteceu há pouco, nesse novembro de 2019, quando tive a oportunidade de assistir ao belíssimo filme de Karim Aïnouz, A vida invisível[1]. O impacto maior que o filme nos causa é justamente o peso do silêncio em torno da imensa violência que recai sobre as mulheres, atravessando suas vidas, desde sua criação, passando pelo casamento, pelas escolhas profissionais e pela (não) realização de seus sonhos.
Como não se comover diante da sofrida trajetória das duas mulheres que protagonizam o filme? A narrativa inicia com uma cena alegórica: as duas irmãs, muito jovens, estão diante do mar, tendo atrás de si a beleza desafiadora da floresta. Enfrentam a beleza e o medo, que naquele instante se entrelaçam diante de sua contemplação. São jovens e estão abertas aos desafios, mas não imaginam, nem de longe suspeitam, que o opressivo amor paterno será capaz de ferir de morte todos os seus planos.
A vida invisível nos fala da dureza de ser mulher nos anos 1950, e se nos toca tão profundamente, é porque sabemos que aquilo que nos mostra não pertence apenas ao passado. Afinal, as duras escolhas (ou imposições) entre o destino casamento-maternidade versus liberdade, carreira, trabalho e realização, a patologização ou punição dos comportamentos transgressores por parte das mulheres, não são problemas que apenas nossas mães e avós viveram.
O filme nos mostra como é doloroso sobreviver à violência, que atravessa nossas vidas. Essa dor é vivida pelas personagens no enfrentamento do poder patriarcal encarnado na autoridade exclusiva e incontestável do pai dentro da casa onde são criadas.
Esse lar tipicamente patriarcal (mantido por um pai senhor de todas as decisões e por uma mãe calada e obediente) define o destino das duas irmãs: uma terá que enfrentar todas as dramáticas consequência de sua transgressão; a outra, viverá em silêncio o desespero de não transgredir. Sobre ambas, o peso do silêncio e da invisibilidade.
A segunda experiência remonta já há alguns meses, e se deu a partir dos episódios em torno da eleição da primeira parlamentar negra para a Assembleia da República em Portugal[2]. Joacine Katar Moreira, cidadã portuguesa nascida na Guiné-Bissau, tem sofrido, desde a campanha, toda sorte de ataques, que culminaram, após sua eleição, numa intensa polêmica gerada pela presença de uma bandeira da Guiné-Bissau nas manifestações de comemoração de sua eleição.
Tal fato foi suficiente para que a fúria daqueles que já a atacavam desde a campanha subisse de tom, chegando ao ponto de sugerirem o impedimento de sua posse como deputada, já que a candidata eleita seria “estrangeira”, e não “portuguesa”. A esse ataque se sobrepuseram comentários maldosos sobre sua aparência física (afinal, Joacine é uma mulher negra) e sobre a gaguez que se manifesta em sua fala.
Estrangeira na diáspora ou em seu próprio país, a mulher colonizada vê em seu corpo, interpelado pelo olhar do europeu, o seu não-pertencimento. Sobrepõe-se, portanto, a este corpo marcado pelo gênero, o estigma da racialização. Como afirma a afro-portuguesa Grada Kilomba, “sou categorizada como uma raça que não pertence”.
Corpo desnudado diante do olhar voyeurista e da fantasia colonial do europeu:
“Esperam de mim que eu provoque prazer, sou despida impacientemente, pergunta, após pergunta”. O corpo de mulher negra, lugar de desejo, fantasia de prazer primitivo e selvagem, não é aceito como corpo ativo e político, como mente criadora. Ser exótica e exalar mistério e sexo, este parece ser o único papel ainda a cumprir.
Leia mais
E o papel não cumprido provoca o castigo, naturalizado e sancionado pela ordem colonial. “Vá para o país dela e já pode descascar bananas”; “Se agora está assim, um indiano, uma senegalesa, uma angolana e mais dois não sei de onde, na próxima legislatura podemos ter chineses, brasileiros paquistaneses, romenos, ucranianos…” As frases citadas não deixam dúvidas quanto ao não-valor, segundo a lógica de seus adversários ultraconservadores, de pessoas como Joacine (como nós?) enquanto seres humanos, o que evoca os princípios do pensamento decolonial, que compreende toda a modernidade ocidental assentada sobre a dicotomia humano/não-humano, definida pelos colonizadores[3].
Humanos, neste caso, seriam os portugueses, em especial os homens brancos. Não-humanos são os outros, os não-brancos e tudo o que gira em torno da manutenção da vida e do bem estar do senhor patriarcal, em especial as mulheres colonizadas e seus corpos disponíveis.
O filme de Karim Aïnouz nos fala de vidas invisíveis. E de quanto a resistência é, apesar de difícil, indispensável. Sendo constantemente caladas e punidas, as duas irmãs que protagonizam a história, não cessam de tentar sobreviver, de resistir, cada uma à sua maneira; uma abertamente, outra, de forma tímida e oblíqua. Quantas mulheres ainda têm suas vidas invisibilizadas, suas vozes caladas?
O desejo de calar Joacine Moreira é o desejo de impor a ela, e a tantas como ela, o silêncio. Em torno de sua candidatura e de sua eleição, muito barulho se fez, no desejo de lhe impor esse silêncio. Não são poucos aqueles que se manifestaram a favor de seu “retorno à África”. Frases desse tipo, e o desejo de silenciamento da voz de Joacine, abarcam todas as cumplicidades que sustentaram, no passado colonial, e sustentam ainda hoje, nas permanências da colonialidade do poder, os crimes de ódio contra as mulheres, associados aos crimes de racismo e xenofobia, ou seja, todas as mortes que as sociedades coloniais não quiseram passar a limpo.
Como afirma Joana Gorjão Henriques, em seu livro Racismo no país dos brancos costumes, “o que há, sim, neste país dos brandos costumes, é um pacto de silêncio sobre as condições de desigualdade de uns e as vantagens com que outros nascem devido à sua ‘cor’ e fenótipo. É um pacto violento entre quem sabe mas esconde, e entre quem não sabe nem quer ver, mas que oculta o facto de vivermos numa sociedade inebriada com a mitologia de que não há racismo” (HENRIQUES, 2018, p. 11).
Sobre silenciar o racismo e acreditar em democracia racial, nós, brasileiros, entendemos bem. Aliás, nisso reside o ponto fulcral da nossa história, sob a égide do modo português de colonizar. Em tempos de barbárie política como o que enfrentamos agora, em que o ódio e o medo se disseminam na sociedade brasileira de forma sem precedentes, nada mais perigoso do que o retorno desses silenciamentos sobre as feridas coloniais, dentre elas, os crimes de ódio contra as mulheres.
Como afirma Miguel Vale Almeida, sobre o contexto português que neste caso, se parece tanto ao brasileiro, “Metemos o racismo, a escravatura, a violência e o colonialismo debaixo da cama” (apud HENRIQUES, 2018, p. 156).
Pensar os silenciamentos implica pensar também nas resistências que nunca deixaram de existir. Em A vida invisível, essa resistência de uma vida inteira sobrevive em palavras, em cartas trocadas e escondidas. Sua revelação ao final da trama é como uma revolução, tímida e apagada como as vidas invisíveis das personagens, mas potente nas verdades inapagáveis que revela.
A respeito dessa resistência ainda agora, no presente dos países que viveram na pele o colonialismo dos brandos/brancos costumes (para usar ainda aqui a proposição de Joana Gorjão Henriques), vale lembrar o episódio dos enfrentamentos que Joacine Katar Moreira tem travado. A resposta da deputada eleita nos evoca toda uma história de resistências: “Isto sempre foi uma guerra para pessoas como eu”, diz ela. Impossíveis de silenciar, estas vozes hoje transbordam para fora da ordem colonial-patriarcal.
*Simone Pereira Schmidt é professora titular aposentada da UFSC, área de Letras. Atua em Estudos Feministas e Pós-Coloniais.
[1] O filme, cuja estreia ocorreu em 2019, é baseado no romance A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha.
[2] Foram três, na verdade, as deputadas negras eleitas: Joacine Katar Moreira, cabeça de lista do Livre, Beatriz Gomes Dias, número três do Bloco de Esquerda, e Romualda Fernandes, em 19º lugar pelo Partido Socialista, todas por Lisboa.
[3] O pensamento decolonial se ampara na concepção, formulada por Aníbal Quijano, de colonialidade de poder. Tomando esse conceito como referência, Maria Lugones afirma que a colonialidade, cujo nascimento se acha estreitamente ligado ao colonialismo, estende e prolonga seus efeitos. Tais efeitos não se restringem às questões raciais, mas permeiam, segundo a autora, “todo o controle do sexo, a subjetividade, a autoridade e o trabalho” (LUGONES, 2008, p. 20-21).
Walter Mignolo, dialogando com as reflexões de Lugones, assinala que o processo colonial esteve ancorado sobre dois vetores fundamentais, que foram o patriarcado e o racismo (MIGNOLO, 2008, p. 9). Se pensarmos em termos das permanências da matriz colonial, encontramos no pensamento feminista decolonial a ideia da interseccionalidade, que compreende que as categorias de gênero e raça se entrelaçam inextrincavelmente na constituição do que Maria Lugones chama o ‘sistema moderno-colonial de gênero’ (LUGONES, 2008, p. 16).