Primavera,

Florianópolis, 10 de dezembro de 2019.

Prezada Maria do Sol,

Como vais? Lembro-me sempre de teu sorriso miúdo. Tomara que esta carta não te encontre mais no cárcere. Mas, se ainda estiveres, aproveito para cumprimentar as agentes de segurança prisional que nos leem, em uma das rotinas de inspeção no cotidiano laboral. Saibam que a experiência intramuros na interação com as “Marias no cárcere” se potencializa cada vez mais, por meio das cartas.

Escrevo-te porque no dia de hoje, especialmente, levantamos a questão do encarceramento de mulheres no mundo e, sobretudo no Brasil, durante a campanha dos 16 dias de ativismo da não violência contra as mulheres que contempla o dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Aliás, lembras quando contei à vocês sobre o projeto de extensão com mulheres no cárcere, em Mato Grosso? Então, na mesma data de hoje, em 2014, em uma Cadeia Feminina daquele estado realizamos uma ação relacionada às representações sociais, por parte das mulheres com as quais dialogamos.

A questão que me intrigou, à época, foi a referência às consequências da ausência de espelhos. Uma das interlocutoras, “Maria Mãe” disse “é como se eu não tivesse rosto. Não lembro mais como eu era antes. Olha meu cabelo, meus dentes…” Para outras, as mãos orientavam percepções da autoimagem, pois ao tatear a face e os cabelos, bem como se observar, ligeiramente, em alguns reflexos que conseguiam alcançar em, eventuais, deslocamentos das/nas celas intra ou extramuros, significava uma oportunidade de (re)conhecimento. “A mão me diz como fiquei aqui”, contou “Maria Piedade”.

Para “Maria Socorro” os olhos da “outra” serviam como espelho: “aqui a gente não tem espelho. Mas, dá pra olhar bem dentro do olho da outra e se enxergar lá”. Lembrei-me do episódio com vocês aqui em Santa Catarina. “Maria Livre” pediu pra se ver na câmera. “Nossa, como meu cabelo cresceu!”, expressou ela ao observar o cabelo castanho, ondulado, até a cintura. Então, passamos a imprimir algumas fotos para exposição nos encontros com vocês.

Maria do Sol, eu poderia continuar a carta refletindo sobre os sentidos possíveis para a representação mencionada: “não tenho rosto”, como nos ensinou “Maria mãe”, tendo em vista a relação com a invisibilidade das mulheres no cárcere em diferentes agendas, sobretudo, de Políticas Públicas e, como sabemos, também aos olhos da sociedade em geral.

Aliás, nos dois presídios que conheci, em Mato Grosso e Santa Catarina, observei que coincidem em relação à invisibilidade, apesar de estarem situados próximos ao centro  das cidades. As contribuições de Teresa Caldeira (2000), antropóloga, brasileira, no livro Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo, ajudam a compreender o padrão de organização espacial nas metrópoles brasileiras, também presente nas cidades médias, baseado na autossegregação que implica no isolamento de grupos sociais por meio dos enclaves fortificados cujo o sentido extrapola argumentos, tais como, o medo das violências.

Foto: Marinês Rosa

Assim, os presídios não são percebidos dentre tantos muros. Explico. O “muro cor de rosa”, da Cadeia no centro-oeste, localiza-se entre a delegacia de um lado, e do outro, um estabelecimento alimentício movimentado por pessoas detentoras de poder aquisitivo condizente com o status social daquela espaço que é de classe média e alta. Já no sul, apesar do complexo penitenciário ter destaque, pela opulência, se confunde e camufla entre os edifícios aos fundos de um importante Centro de Cultura, frequentado por pessoas com um certo capital econômico e/ou cultural,  conforme o entendimento de  Pierre Bourdieu (1975).

Apesar da aparente (in)visibilidade não é possível ocultar a dinâmica da estrutura prisional que anuncia o pulsar de vidas intra e extramuros. Há circulação de pessoas, no dia de visitas, nas atividades religiosas, educativas, dentre outras, além das escoltas. No caso de Santa Catarina, quem nunca observou a movimentação diante do complexo penitenciário? A cena muda quando se alcança o acesso ao presídio feminino, pois as mulheres são punidas pelo abandono de companheiros, quando se verifica o dia de visitas.

Algumas/uns teóricas/os como Erving Gofmann (2005) podem ajudar a compreender o fenômeno da mortificação de sujeitos, assim como a noção de necropolítica em Achille Mbembe (2018) no contexto  de políticas neoliberais que são políticas de morte contra vidas matáveis, vidas nuas (Giorgio AGAMBEN, 2014), vidas invisíveis, ou “sem rosto” como na representação mencionada, diante do processo de prisionização (Donald CLEMMER, 1958).

Afinal, corpos que não produzem nem consomem, são deixados para morrer no capitalismo neoliberal e me parece que essa prática também é uma forma de matar. Menciono algumas obras, dentre outras, que relacionam morte e encarceramento. Cemitério dos vivos, da socióloga brasileira Julita Lemgruber (1999) e, Recordações da Casa dos Mortos, de Fiódor Dostoiévski (2010), que escreve sobre sua experiência de encarceramento. Além disso, Vigiar e punir, de Michel Foucault (2008) e sua importante noção de corpos dóceis.

Nesse momento, talvez, recordes quando eu apresentei a proposta da pesquisa. Eu disse que recorreria às teóricas/os para problematizar o que se tem escrito sobre o cárcere e as pessoas que passam por ele. Assim, os nomes que encontras nesta carta não são tão estranhos pra ti, pois conversamos sobre algumas/uns delas/es. O fato é que a partir dos estudos surgem questões como: para que servem as prisões? Quem são as pessoas que estão encarceradas?

Sabes, Maria do Sol que me aproximo do entendimento de Angela Davis, filósofa, mulher negra, que viveu um período na prisão. Lembras-te de quando a conheceram por meio das cartas? Então, em uma de suas obras Estarão as prisões obsoletas? (2019), ela questiona como é possível sonharmos com liberdade, se ainda existem prisões. Em visita, recente, ao Brasil a filósofa problematizou o encarceramento em massa relacionado ao sistema capitalista. Para isso, coloca em questão o fundamento da seletividade sócio-política no sistema penal moderno.

Após a breve ênfase à necropolítica que constitui o cárcere, retomo o início da conversa e continuo te contando porquê o destaque para o encarceramento de mulheres no dia da Declaração Universal dos Direitos dos Humanos, para saberes que são lembradas e, que  algumas pessoas enxergam vidas humanas, apesar do cárcere.

Além disso, essa escrita é uma prática pedagógica decolonial, inspirada em bell hooks (2019), feminista, negra, teórica que nos ensina sobre teorias feministas que dialogam com as margens como propõe em Teoria feminista: da margem ao centro. Estou pensando também naquelas/es que podem estar se questionando: “mulheres encarceradas na pauta do ativismo das violências de gênero?” E, evidentemente, preciso mencionar a comum expressão, em dias atuais, no que se refere as pessoas encarceradas: “lá vem os direitos humanos!”

Lembro que a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi proclamada em 1948, numa Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris. É um documento marco na proteção dos direitos humanos, elaborado por representantes de todas as regiões do mundo e, portanto, com diferentes origens culturais e jurídicas.

Trata-se de uma norma comum a ser contemplada por todas as nações e povos. Em conjunto com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e seus dois Protocolos Opcionais (sobre procedimento de queixa e sobre pena de morte) e com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e seu Protocolo Opcional, formam a chamada Carta Internacional dos Direitos Humanos.

Perceba Maria do Sol, curiosamente, essa forma de comunicação tão importante no cárcere aparece aqui, a carta. Pois bem, a Declaração Universal dos Direitos Humanos que hoje, completa 71 anos, é constituída por 30 artigos cujo eixo é a dignidade humana. Portanto, ela diz respeito também às pessoas encarceradas, se avaliarmos: em que medida o que é preconizado por ela permeia a situação de vidas no cárcere?

Eu tenho evitado mencionar números quando me refiro ao encarceramento para não seguir o que chamo de “lógica da contagem”, em geral, enfatizada nas perspectivas que desconsideram a condição humana, ao contabilizar “presas/os” para justificar a construção de, ainda mais, prisões, como medidas punitivistas arquitetadas no que se concebe como políticas de/para a segurança pública.

No entanto, indicadores sociais propiciam um panorama sobre quem são as pessoas encarceradas em nosso país, ao passo que, evidenciam o cruzamento permanente da precariedade da vida que torna alguns corpos mais vulneráveis que outros, conforme definem algumas pesquisadoras, como a antropóloga brasileira Débora Diniz que escreveu “Cadeia: relatos de mulheres” (2015).

Ocorre que no Brasil, segundo o INFOPEN-Mulheres (2018), em junho de 2016, a população carcerária feminina brasileira aumentou 656% em relação ao total registrado no início dos anos 2000. As mulheres são jovens, negras, com filhos e baixa escolarização, na maioria dos casos. Assim, em relação à idade, 50% das mulheres no cárcere está na faixa etária entre 18 e 29 anos.

O pertencimento racial compreende 60% de mulheres negras, e quanto à escolaridade, 82% não completou a Educação Básica. Se observa que nesses dados 2% das mulheres são analfabetas e 3% declara-se alfabetizada, sem ter frequentado cursos regulares. O tráfico de drogas é o crime de acusação em 62% dos casos, sendo que na maioria são usuárias, condenadas por “serviços menores” no transporte e comércio de entorpecentes.

Sabe-se ainda, Maria do Sol, que o processo de prisionização acentua estigmas relacionados ao que se idealiza como padrão social para as mulheres. Quer dizer, todas são constantemente, lembradas que, de alguma maneira, não foram/são “boas” mães, esposas, filhas e, por isso precisam ser punidas. Portanto, as construções sociais de gênero, bem como as interseccionalidades precisam ser consideradas na problematização do fenômeno, visto que as condições estruturais do cárcere são incompativéis à humanização.

No que diz respeito ao contexto dos 16 dias de ativismo contra as violências de gênero, quero lembrar relatos de várias mulheres no cárcere à respeito de práticas de seus companheiros, familiares e/ou conhecidos. Recordo-me que durante as leituras, na interação com vocês, tais lembranças vieram à tona quando algumas se identificavam com personagens, donas de casa, mães, filhas, irmãs, que foram agredidas, torturadas e humilhadas com práticas de violências corriqueiras em suas vidas extramuros.

“Maria Auxiliadora” expressou: “essa sou, agredida e humilhada por meu companheiro. Sem saber o que fazer. Com filhos pra criar”.

Foto: Marinês Rosa

À propósito, “Maria do Sol”, hoje, às 10h, em uma atividade que integra os 16 dias de ativismo, organizado pelo Instituto de Estudos de Gênero, na UFSC, apresentaremos uma performance que nomeamos Corpos marcados: Marias no cárcere e as violências (in)visíveis, (in)dizíveis. Acredito que gostarás da notícia, pois te assisti em uma apresentação teatral, te recordas? E, pouco tempo atrás, soube que continuas no grupo de teatro feminino do projeto de extensão coordenado por colegas da UDESC.

Então, nomeei uma das cenas da performance como “lágrimas encarceradas”. Ocorre que “Maria Esperança” chegou para um dos encontros na pesquisa com uma expressão mais triste que a dos outros dias. Quando perguntei o que havia, ela disse que fazia tempo que estava com vontade chorar. “Saudade dos filhos”, disse ela. Revelou que não podia chorar na ala em que estava.

O assunto envolveu as demais “Marias”, que confirmaram:  “o choro pesa e bagunça a prisão”, destacou “Maria de luta”. Então, indaguei: “o que fazem quando as lágrimas chegam?” A resposta de “Maria Esperança” foi: “a gente coloca o travesseiro na cabeça e abafa”. A partir daí, passamos a ler Insubmissas lágrimas de mulher, de Conceição Evaristo (2011), a escritora negra que vocês gostaram muito, não é? Ficaram impressionadas quando viram a foto dela, lembras? De certa forma, muitas lágrimas se libertaram durante as leituras e relatos de experiências decorrentes dela.

Por fim, compreendo que o encarceramento de mulheres é pauta de agendas feministas, ao passo que têm sido protagonistas nas resistências ao agravamento de retrocessos em políticas públicas e poderes políticos institucionalizados. Para bell hooks (2019, 26):

“o movimento feminista continua sendo uma das frentes mais poderosas de luta por justiça social no mundo de hoje”.

Sobre isso, concordo com a afirmação de Julita Lemgruber (1983): “é impossível passar por uma prisão e sair sem marcas e feridas. Acontece com todos. Com os que pra lá são mandados, para cumprir uma pena. Com funcionários e visitantes. E, por que não, com pesquisadores?” Por certo, meu aprendizado sobre mulheres no cárcere implica uma perspectiva feminista abolicionista. Por outro lado, reconheço, entendo e defendo, como alternativas para o quadro vigente, algumas práticas que conheci relacionadas à educação e cultura com vistas à dignidade humana, por parte de entidades que se empenham no reconhecimento de vidas anteriores e posteriores ao cárcere. Sabes, melhor do que eu, o quanto essas possibilidades são importantes para vocês no sistema que temos.

Na medida em que as opressões constituem experiências das mulheres e são intensificadas no cárcere, resistências e agências são conspiradas pelas “Marias” que conheci. Nesse sentido, o enfrentamento às ideologias sexistas, racistas, heteronormativas, capitalistas deveria nos afetar pois, qualquer tipo de opressão sobre (entre) mulheres nos atravessa, posto que dias atuais se aproximam da ficção distópica O conto da aia, ao reportar uma estrutura patriarcal cunhada no fundamentalismo religioso, bem oportuna para pensar as práticas punitivistas. Diz-se em algum momento: “tudo o que deixamos é o uniforme. Esposa, aia, martha, mãe, filha, namorada, rainha, puta, criminosa, pecadora, herege, PRISIONEIRA”.

Receba esta carta com meu afeto e esperança de dias melhores para todas vocês. Siga com seus projetos e sonhos.

Até a próxima carta!

 

Marinês.

 

*Marinês é doutoranda no Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH), mestre em Sociologia Política e graduada em Ciências Sociais, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora efetiva na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), campus de Tangará da Serra/MT, desde 2006. Atualmente, na tese doutoral, discorre sobre a escuta, tendo em vista as epistemologias feministas, na interação com mulheres encarceradas. Integra a equipe de pesquisadoras no Núcleo de identidades de gênero e subjetividades (NIGS) e o Instituto de Estudos de Gênero (IEG) na UFSC. Tem se dedicado nos últimos anos à pesquisa e extensão na promoção dos Direitos Humanos. Faz parte das Madalenas na luta, teatro das oprimidas, em Santa Catarina.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

Últimas